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As cinzas do vulcão e a responsabilidade civil das companhias aéreas

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Atualizado em 15 de junho de 2011 09:49

Uma questão jurídica que tem gerado polêmica no tema da responsabilidade civil do transportador é a da definição do risco da atividade, especialmente no que diz respeito à sua extensão.

Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo - que, diga-se, não lhe pertence - e nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base).

O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz por que quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado podem ocasionar. O outro lado do risco da atividade é o do risco social engendrado pela exploração do mercado. A simples colocação de produtos e serviços gera esse risco. Inexoravelmente, a existência em si do empreendimento traz potencialmente risco de danos às pessoas.

Decorre disso que, quem se estabelece deve de antemão bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente irão ocorrer.

O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, como prestador de serviço que é, está enquadrado no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II).

Vê-se, portanto, que a lei consumerista não inclui como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa).

Acontece que o Código Civil de 2002 regulou amplamente o serviço de transporte e firmou no caput do art. 734 o seguinte:

"Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente a responsabilidade".

Pergunto: existe incoerência ou contradição entre esses dois textos legais? A resposta é não. Isso porque, quando o Código Civil fala em força maior, está claramente se referindo ao fortuito externo, isto é, o elemento exterior ao próprio risco específico da atividade do prestador do serviço de transporte. E, quando o Código de Defesa do Consumidor afasta a força maior e o caso fortuito, certamente os está afastando quando os mesmos digam respeito aos elementos intrínsecos ao risco da atividade do transportador, ou seja, o fortuito interno. Assim, tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto o Código Civil mantém o nexo de causalidade e a responsabilidade objetiva do transportador toda vez que o dano for ocasionado por força maior e fortuito internos.

Veja-se bem. A força maior e o caso fortuito interno, é verdade, não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo transportador nem por ele evitado. Todavia, não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar.

O risco da atividade implica na obrigação imposta ao empresário para que ele faça um cálculo, da melhor forma possível das várias possibilidades de ocorrências que possam afetar seu negócio. Certos fatos, necessariamente implicam agravamento do risco em função de sua latente possibilidade de ocorrência e, por isso, uma vez ocorrendo, não excluem o dever de indenizar. Examine-se um outro exemplo para reforçar esse aspecto: o caso das ocorrências da natureza, tais como tempestades e nevoeiros, no caso do transportador aéreo. Ainda que o transporte aéreo seja afetado por esse tipo de evento climático, o transportador não pode se escusar de indenizar os passageiros que sofreram danos porque o fenômeno - que, aliás, ocorre constantemente - é integrante típico do risco daquele negócio.

Quando se trata de fortuito externo, está se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. E, é aqui que eu coloco o caso do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode, de modo algum, ser previsto. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto (ou, como se diz modernamente, tsunami). Desse modo, penso que não respondem as companhias aéreas pelos atrasos e cancelamentos forçados pelas condições atmosféricas geradas pelas cinzas do vulcão e que impedem a navegação. Resguardados, claro, os direitos dos passageiros de remarcação de passagens e cancelamento da reserva com recebimento imediato dos valores pagos.

Já que estou tratando desse assunto, não posso deixar de abordar uma questão bastante discutida, relativamente ao evento de terceiro nessa questão da responsabilidade objetiva. Para excluir o nexo de causalidade, há necessidade do fato do terceiro ser de tal modo que não pudesse ser previsto como possibilidade dentro da estrutura do risco em cada espécie de negócio. Serve de exemplo o caso de ataques feitos por vândalos às composições ferroviárias, atirando pedras nos passageiros. Penso que a doutrina mais abalizada é aquela que entende que se trata de risco da atividade previsto no modo de oferta do serviço, de tal maneira que o usuário atingido deve ser indenizado pelo transportador. E, por causa desse exemplo, vale que se dê uma explicação, pois o risco da atividade muda com o passar do tempo.

Há cerca de vinte ou trinta anos, quando esses eventos não se davam com regularidade, poder-se-ia dizer que eram fatos típicos de terceiros a excluir o dever de indenizar porque não faziam parte do cálculo do risco. Mas, na medida em que foram se tornando mais frequentes, não puderam deixar de ser considerados. E, lamentavelmente, esse tipo de vandalismo se multiplicou. Desse modo, acabaram sendo incorporados no cálculo do risco, pois não podiam mais ser ignorados. Eles passaram a existir como possibilidade de existência no âmbito daquele negócio. O evento, apesar de inevitável, é atualmente previsível.

O evento produzido por terceiro capaz de evitar a responsabilidade tem de ser aquele, não só inevitável, como aquele que não faça parte do risco da atividade, isto é, que não tenha qualquer relação com a atividade do fornecedor. Cito um exemplo: suponha-se que uma pessoa queira se vingar de um inimigo e resolva matá-lo. Determinado, ele segue o desafeto até o cinema e lá dentro causa-lhe a morte. Trata-se de um evento que incidentalmente ocorreu no local onde se prestava um serviço, mas que com ele não tem nenhuma relação e nenhuma conexão. É fato típico de terceiro a excluir a responsabilidade do prestador do serviço.

E, para terminar, tenho de falar dos passageiros que foram obrigados a mudar seus planos de viagens por causa do vulcão. Os cancelamentos envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo a eles ligados, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados, etc.. A pergunta que se faz é: pode o fornecedor cobrar multa do consumidor que faz o cancelamento ou reter a entrada já paga? Ou, pior, pode se negar a aceitar o cancelamento? A resposta é evidentemente não.

Normalmente, nesse tipo de atividade, quando o consumidor desiste de empreender a viagem, é permitido que se cobre uma multa pela desistência, desde que esta não seja abusiva. O percentual dessa multa varia de acordo com as circunstâncias de cada negócio empreendido e somente pode ser avaliado em cada caso concreto. Por exemplo, a cobrança de 10% do valor da diária ou do passeio é considerado legal. Mas, no caso tratado, como disse, nada pode ser cobrado. Isto pelo mesmo motivo analisado neste artigo.

Quando o empresário do setor hoteleiro se estabelece e passa a oferecer seus produtos, evidentemente, assume o risco de sofrer certas perdas advindas de cancelamentos legítimos e também de não efetuar vendas. Esse risco é inerente à própria atividade e deve fazer parte, como mostrei, do cálculo do risco/custo/benefício efetuado. Lembro ademais que, como risco típico da atividade, o mesmo não pode ser repassado ao consumidor (anoto um dos direitos básicos do sistema capitalista: o consumidor não assume riscos. Apenas adquire os produtos e serviços oferecidos e deles desiste dentro das regras jurídicas estabelecidas).

Repito: no caso, o risco típico do não preenchimento das vagas oferecidas, da não entrega do produto ou do serviço prometido é do fornecedor. Some-se a isso, com mais força de razão, o fundamento legal e legítimo da desistência operada pelo consumidor, que se viu obrigado a fazê-la por razões alheias à sua vontade.