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A vida privada como produto de consumo - parte II

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Atualizado em 13 de novembro de 2013 09:53

Continuo hoje a desenvolver o tema iniciado na semana passada a respeito das biografias. Como antecipei, pretendo demonstrar que ambas as partes envolvidas na discussão pública da questão têm razão em parte. Prossigo, pois, cuidando agora da fofoca e do segredo.

A fofoca

O outro lado desse produto envolve não só a violação pura e simples da privacidade e da intimidade das pessoas como os malefícios da fofoca. Com efeito, o ato de fofocar é tão antigo como andar para trás, como se diz. na Grécia antiga fazia-se fofocas. É conhecida a objeção de Sócrates sobre ela:

Certo dia em Atenas, o filósofo encontrou com um conhecido que lhe disse:

- Sócrates, sabe o que acabo de ouvir sobre um de seus alunos?

- Um momento. Antes de me dizer, gostaria de submetê-lo a um pequeno teste. É o teste dos três filtros - respondeu Sócrates.

- Três filtros?

- Sim. Antes de me contar o que quer que seja sobre meu aluno, quero que você pense um pouco e reflita sobre o que vais me dizer - disse o filósofo. Depois continuou: O primeiro filtro é o da verdade. Estás completamente seguro de que o que vais me dizer é verdade?

- Bem... Acabo de saber... - respondeu reticente o amigo

- Então, sem saber se é verdade, ainda assim quer me contar? - perguntou e prosseguiu: Vamos ao segundo filtro, que é o da bondade. Quer me contar algo de bom sobre meu aluno?

- Não, pelo contrário - falou o outro.

- Então, queres me contar algo de ruim sobre ele, mas não sabes se é verdade! - exclamou e foi em frente: Veja! Ainda podes passar no teste, pois resta o terceiro filtro, que é o da utilidade. O que queres me contar vai ser útil para mim?

- Acho que não muito...

- Então, se o que você quer me contar sobre meu aluno pode não ser verdade, não é bom e pode não ser útil... Por que, então, quer me contar? - terminou magistralmente o filósofo.

Sabe-se que as objeções do filósofo grego nunca foram muito levadas a sério pelas pessoas. Nem antes e muito menos agora. A fofoca é não só prato de conversa como até matéria para programas de tevê, colunas de revistas, jornais, blogs, etc. Isso, independentemente do mal que possa causar aos terceiros envolvidos.

Veja, caro leitor, coloquei mais esse outro elemento para mostrar como o conjunto de fatos de comunicação social levianos - as fofocas -- misturam-se aos não levianos - por exemplo, os fatos jornalísticos relevantes - e geram uma confusão sobre os direitos envolvidos. Do modo como o sistema de transmissão de informações funciona nos dias de hoje, muitas vezes o leitor, o espectador, o ouvinte, enfim, as pessoas em geral e até os estudiosos das comunicações, da antropologia, da semiótica e de outras ciências não conseguem distinguir o que é um fato verdadeiro de uma fofoca, o que pode ser uma notícia com interesse público de uma informação inócua, o que é violação ou não é violação da vida de alguém.

Precisamos de cautela na análise jurídica dessas questões, deixando de lado paixões e opiniões pré-concebidas.

O segredo

Um dos componentes do direito à intimidade é o segredo. O segredo é também um direito subjetivo. Quem não os tem?

Ele está por todos os lados, inclusive, como direito não só da pessoa física como da jurídica e se apresenta de vários modos. Há, claro, o segredo humano, a base de todos os demais, este que cada um dos indivíduos tem, independentemente de origem ou idade: mesmo crianças, que ainda não compreendem bem as relações de comunicação, mantêm segredos.

Com efeito, o ser humano guarda segredos desde cedo, numa tenra idade. As crianças e adolescentes têm os seus e, claro, os adultos em profusão. Podem ser inocentes ou terríveis. A revelação de um segredo pode não ter qualquer consequência como pode ser devastadora. O fato é que as pessoas, como regra, os respeitam. Guardar segredo não tem, por exemplo, relação com amor, fidelidade ou confiança. Os filhos podem manter muitos segredos resguardados quanto aos pais e estes em relação àqueles, sem que a relação de amor e confiança entre eles se abale um centímetro. O mesmo pode ser dar na situação amorosa dos casais: manter segredos não implica traições (a não ser, claro, que a traição seja o segredo...). Enfim, é pacífico que as pessoas guardam segredos individualmente ou em duplas, grupos, amigos, parentes etc., como é pacífico que eles devem ser respeitados.

Muitos dos segredos individuais são repartidos entre amigos e parentes. Por ser de interesse mútuo ou por não suportar guarda-lo sozinho, a pessoa o divide com alguém de sua confiança (e aqui começa a morar o perigo...).

Há também segredos de ordem profissional: o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, um direito (do confidente e do profissional - psicólogo, psiquiatra, médico, advogado, padre, etc. ) e uma obrigação, pois o profissional não pode dele abrir mão, mesmo que a pedido do juiz num processo instaurado.

Há segredos que são comerciais e industriais e ninguém duvida que eles não podem ser revelados. Eles se traduzem nas fórmulas, práticas, procedimentos e instrumentos de negócios, no design, padrões, etc. São também as informações confidenciais. Esses segredos podem pertencer a pessoa física ou a pessoa jurídica e estão salvaguardados da bisbilhotice alheia, limitados que estão no círculo concêntrico da intimidade.

Meu caro leitor, você acredita que a violação de um segredo poderia ser resolvida pelo pagamento de uma indenização?

Há um episódio da série da tevê norte americana Seinfeld em que a personagem Elaine resolve fazer consultas com um Rabino e conta para ele alguns segredos, inclusive da vida pessoal e sexual de seu amigo, o personagem George. O episódio termina com George deitado na cama vendo tevê com sua noiva, assistindo a um Programa no qual o Rabino trabalha dando depoimentos. Ele e sua noiva, com os olhos arregalados (ela mais que ele) veem e ouvem o Rabino dizer: "Uma pessoa, digamos, de nome Elaine, disse-me que seu amigo... Vamos chama-lo de George... Ele lhe perguntou se sair com uma prostituta antes do casamento seria traição".

Claro que se trata de uma brincadeira numa sitcom, mas serve para vermos o que é sentir-se traído em função de um segredo revelado publicamente. Indenizar o quê?

É conhecida uma piada que ajuda também a ilustrar o segredo e as consequências de sua violação. Veja.

Um doente está deitado na cama, na verdade, seu leito de morte. Ele está definhando, faltando pouco para morrer. Ao lado dele está sua esposa, de mãos dadas com ele. Ela parece estar rezando. Ele, então, interrompe e diz:

- Amor, eu preciso confessar algo.

Chio... Fique quieto, poupe sua energia - diz ela, passando a mão em seu cabelo.

- Não, eu não posso partir com esse peso... Eu preciso revelar um segredo...

- Não precisa, fique calmo.

Ele, num esforço hercúleo, insiste:

- Não...Não... Tenho que te falar. Contar o que eu fiz...

Ela, segurando sua mão, põe o ouvido do lado de sua boca, para ouvir. Ele diz, com uma voz embargada e arrependida:

- Eu traí você várias vezes.. Com sua melhor amiga, Alice e também com nossa vizinha do andar de baixo...

Ela, então, colocou a mão suavemente em sua boca, aproximou-se de seu ouvido e disse bem baixinho:

- Eu sei, eu sei. Foi por isso que te envenenei.

Segredo e sigilo

Os termos segredo e sigilo são usados como sinônimos, mas de fato, embora imbricados, têm conotações um pouco diversas. Ambos traduzem aquilo que não pode ser exposto publicamente, aquilo que não pode ser comunicado. Mas, o sigilo indica um dever legal, uma determinação para que o segredo seja mantido e que é conhecido como regra em várias profissões: na advocacia, na psiquiatria e na psicanálise, na medicina e até na confissão que é feita ao religioso (padre, bispo, etc.). O jornalista, por exemplo, deve resguardar o sigilo de fonte quando as circunstâncias o exigirem. Entre nós, está estabelecido o sigilo fiscal e o sigilo bancário. Há também o sigilo das telecomunicações e o sigilo das correspondências, enfim, uma enorme gama de situações de segredos resguardada pelas leis. Na sequência, abordarei algumas delas, mas desde logo anoto que é consensual que esse tipo de sigilo deve ser resguardado, não podendo ninguém violá-los. Aliás, não parece que exista alguém defendendo suas violações.

Interesse público e segredo

Penso que a chave para a resolução de alguns dos problemas existentes entre biógrafos e biografados é a busca do interesse público. A divulgação de informações deve ter por suporte esse interesse. E mais: existem fatos que devem ser mantidos em segredo, exatamente por causa do interesse público.

Há situações que naturalmente nascem bloqueadas. Vejamos alguns exemplos: nas licitações públicas para venda de companhias estatais, deve ser guardado segredo das ofertas dos interessados; nos vários tipos de concursos públicos para ingressos nos cargos estatais ou para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados, ou na Magistratura, no Ministério Público e em todas as carreiras públicas em todos os níveis, as questões não podem tornar-se públicas antecipadamente (óbvio!); o mesmo se dá no Enad, nos vestibulares etc.; acaso o ministro da Fazenda e seus subordinados resolvam baixar medidas que afetarão o câmbio ou a bolsa de valores, tais resoluções devem ser guardadas até que possam ser levadas a público; há um longo etc. de situações que devem permanecer em segredo. O fato é que o interesse público exige o segredo, algo que não é contestado.

Sigilo profissional

O sigilo profissional se impõe a certas pessoas que exercem atividades, que em função de suas especificidades e competências, possibilitam o conhecimento de fatos que envolvem a esfera íntima e privada de outras pessoas (em alguns casos, como dos advogados, esses fatos dizem respeito a pessoas físicas e também jurídicas). Essas informações privadas são, como regra, fornecidas pelo próprio interessado (cliente, paciente, fonte) para que a relação profissional possa ter andamento. Pode se tratar de um cliente acusado de um crime, que deve revelar fatos para seu advogado; pode ser um paciente fazendo suas confissões no consultório do psiquiatra ou alguém confessando seus pecados a um padre; pode ser, também, um cliente recebendo diagnóstico de seu médico ou um jornalista colhendo informações de interesse público de uma fonte não revelada (e que ele promete resguardar) etc.

No Brasil, o sigilo profissional nasce no texto constitucional:

"É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional" (inciso XIV do art. 5º da Constituição Federal - CF).

E é garantido em várias normas relacionadas às profissões específicas. Cito, a título de exemplo, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que regula o tema nos artigos 25 a 27; refiro também o Código de Ética Médica, que normatiza a questão nos artigos 73 a 79.

De maneira mais ampla o Código Civil também regula o sigilo no inciso I do artigo 229, dispondo que "Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I - a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo". E, na mesma linha, o Código Penal no seu artigo 154 já dispunha: "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa".

Sigilo bancário

O sigilo bancário é decorrente da garantia da inviolabilidade da vida privada e da intimidade tanto das pessoas físicas como das pessoas jurídicas, garantida no art. 5º, inciso X da CF. Ele está ligado a comunicação privada feita pelos clientes com as instituições financeiras. Daí que esse direito ao segredo dos dados existentes na instituição financeira decorre de dois direitos fundamentais: o do direito à vida privada e intimidade e o do dever de sigilo profissional, conforme visto no item anterior, eis que o banqueiro ou administrador está de posse dos dados em função de sua atividade profissional.

Além disso, A lei Complementar nº 105 de 10 de janeiro de 2001 estabelece para as instituições financeiras o sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

Sigilo fiscal

O segredo aqui diz respeito às informações fiscais prestadas pelos contribuintes à Fazenda Pública. É sigilo que se impõe também pela garantia de vida privada e intimidade das pessoas físicas e jurídicas (Conf. inciso X do art. 5º da CF). Há, pois, proibição de divulgação dos dados registrados, eis que as informações fornecidas pelo contribuinte ao Estado diretamente ou a seus agentes são de foro íntimo, uma vez que envolvem não só seus dados cadastrais como uma detalhada descrição do patrimônio, suas receitas, seus ganhos e suas perdas, seus investimentos etc.

O Código Tributário Nacional, por sua vez, impõe o sigilo: "Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades"

E o Código Penal dispõe: "Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.

§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I - permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II - se utiliza, indevidamente, do acesso restrito".

Sigilo de correspondência e das telecomunicações

O sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas é direito fundamental, garantido no inciso XII do art. 5º da CF:

"É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal"

Veja-se que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e de dados não pode ser quebrado nem por ordem judicial para fins de investigação criminal ou instrução processual. A CF abre exceção apenas na decretação do Estado de Sítio (art. 139, III).

E o Código Penal estipula:

"Art. 151 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa".

Sigilo de domicílio, segredos comerciais, industriais, etc.

ainda uma série de situações protegidas pela legislação constitucional e infraconstitucional, tais como a inviolabilidade do domicílio, os segredos industriais e de comércio, de marca, de projetos, etc., como acima já apresentei. Na Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, é motivo de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho a violação do segredo da empresa pelo empregado. Enfim, há vários outros sigilos impostos, mas penso que o que já referi é suficiente para demonstrar que não é tudo que pode ser levado a conhecimento do público, independentemente do fato pertencer ao campo do público ou do privado. Além disso, como visto, em algumas situações o interesse público impõe o segredo.