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Ecos do mensalão

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Atualizado em 20 de dezembro de 2012 09:01

Ao ensejo do encerramento do mais importante julgamento já realizado por um tribunal do país, cabe a pergunta: que lembranças deixará o processo 470 naqueles que acompanharam as quase 53 sessões passo a passo?

Muita gente, em primeiro lugar, concluirá que, positivamente, juiz é uma criatura especial. Veja, por exemplo, o início de uma sessão plenária no STF. O presidente manda o secretário ler a ata da sessão anterior e o secretário repete o mesmo bla bla bla que havia lido na sessão anterior, igual à da sessão da outra semana, igual à da sessão do mês passado. Em suma, perda de tempo, pois a finalidade da ata é registrar o que ocorreu na sessão, da mesma forma como a ata de uma assembleia deve conter um resumo do que aconteceu na assembleia respectiva. Ou seja, quem presidiu, quem saiu mais cedo, quem chegou mais tarde, quem aparteou, que providências tomou o presidente, quem puxou a orelha de quem, quem trocou sopapos com quem e por aí vai. Resultado: o presidente do STF é que acaba lendo o resumo da sessão anterior, especificando o conteúdo dos votos proferidos pelos julgadores. E o secretário ali ao lado, como uma estátua, ganhando sem trabalhar.

Outro ponto a notar é que, nos órgãos colegiados, quando relator e revisor estão de acordo e o vogal, isto é, o juiz que não é relator nem revisor, pretende votar no mesmo sentido, ele simplesmente adere aos votos já proferidos, até mesmo para economizar tempo. No processo 470, porém, talvez pela sua repercussão, não é raro um vogal derramar-se em considerações para dizer aquilo que já havia sido dito anteriormente por um colega. Como dizem os juízes de uma turma julgadora, em cochicho, quando o advogado assoma à tribuna para falar sobre o óbvio: "Tomando o nosso tempo para dizer que a chuva molha".

No que diz com os jornalistas e seus comentários sobre o julgamento, valha repetir o que disse um colega deles: "Jornalista é alguém que deve falar sobre o que sabe e também sobre o que não sabe". Quando o comentário sobre um processo será feito por escrito, é comum o seu autor consultar previamente operadores do Direito para bem calçar-se, quer depois indiquem ou não o nome do profissional escolhido, como sabemos todos os que já fomos consultados a respeito de temas jurídicos por jornalistas leigos. Quando o comentário vai ao ar, porém, a coisa fica mais complicada e o jornalista acaba mostrando sua ignorância sobre o tema. Não houve uma apresentadora de TV célebre, já falecida, que, antes de sapecar-lhe um selinho, perguntou ao famoso Dr. Zerbini, pai dos transplantes de coração no Brasil, se aquele que recebeu o coração de outro homem se apaixonaria, só por isso, pela viúva do doador?

Dia desses, uma simpática jornalista mostrava sua indignação diante do fato de relator e revisor divergirem tão profundamente que um condenava e outro absolvia. "Que Justiça é essa?" indagava ela do paciente professor de Direito ali ao lado. Minha cara jornalista, se fosse para prevalecer a opinião (o voto dado por um juiz, em inglês, chama-se opinion, para não deixar dúvida quanto à carga de subjetivismo que há nele) do relator, qual o sentido de colocarem-se onze juízes dias e dias ali sentados, a ouvir toda aquela arenga? No Brasil, os julgamentos nos tribunais exigem, em regra, o voto de três juízes, sendo excepcional que o relator decida um recurso individualmente. Aliás, certa ocasião escandalizei uma audiência, composta majoritariamente de estudantes de Direito, com um exemplo bastante ilustrativo. Um réu é denunciado sob a acusação de haver subtraído a carteira de A, a caneta de B e o relógio de C. O juiz singular, talvez um Dr. Barbosa, acolhe integralmente a denúncia e, assim, condena o réu pela prática dos três furtos. A defensoria apela. Para o relator, a prova quanto ao furto da carteira é satisfatória (beyond a reazonable doubt, como se diz alhures). Quanto aos demais furtos, porém, o apelante deve ser absolvido. Para o revisor, o fato cuja prova está além de qualquer dúvida razoável é apenas a relativa à caneta de B, devendo o réu ser absolvido quanto ao mais. Já o juiz vogal, discordando de seus colegas, mantém a condenação apenas no que diz com o furto do relógio de C. Feita a narrativa, desafiei os ouvintes a dizerem qual seria o resultado do julgamento a ser proclamado pelo presidente da sessão. Estão discutindo até hoje.

No caso do mensalão, há um complicador: são mais de 30 réus, acusados da prática de vários crimes, tais como peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, formação de quadrilha e branqueamento de capitais. Combinando-se o número de réus e o número de crimes, teremos tantas possibilidades que só um matemático para enumerá-las. Não seria, portanto, impossível que nenhum dos onze votos coincidisse completamente com outro. Basta ver o bate-boca sobre se este ou aquele expediente caracteriza lavagem de dinheiro ou mero exaurimento do crime de corrupção passiva. Para não falar na tal "teoria do domínio dos fatos", que nem advogados sabem muito bem o que seja. Aliás, nenhum dos atuais membros da Corte foi juiz criminal, o que explica, por exemplo, certa dificuldade na hora de fixarem as penas. Ministro do Supremo não foi feito para isso.

Isso para não falar se a reunião de quatro ou mais pessoas para o cometimento de determinado crime caracteriza crime de quadrilha ou se, para isso, deve haver um propósito genérico de cometer crimes vários.

A popularização do STF (para não falar em "vulgarização") chegou a tal ponto que um motorista de táxi, travestido de humorista de terceira categoria, permitiu-se imaginar a seguinte situação: certo magistrado comenta com um colega que ontem, ao chegar do serviço, surpreendeu a esposa nua no quarto, tendo ao lado dela outro homem, também nu. E o que você fez? Indaga o colega, aflito. Evidentemente nada. Que provas eu teria para acusá-los de adultério? teria respondido o magistrado. Perguntei-lhe se sabia o que queria dizer solus cum sola in solitudine. Ele não sabia.

Fosse ele um técnico e teria lamentado, como eu, o golpe de mão tentado dar pelo relator, com apoio de um dos colegas, quando, surpreendido a basear a pena proposta em legislação posterior ao fato criminoso, que elevou o mínimo dela de 1 para 2 anos, dando como argumento que, qualquer que fosse o mínimo legal a ser considerado, a pena final não ultrapassa o máximo previsto na lei anterior, que deve incidir no caso. O que ele quer dizer, com apoio de um colega, é que a lei perde tempo ao exigir que o juiz fundamente a pena final a ser aplicada, pois essa pena já está adrede fixada pelo juiz, sendo a referência feita por ele aos elementos levados em conta para isso, o tal sistema trifásico, mera formalidade. Chegar à mesma pena final quer adotando-se a pena inicial de 1 ano quer adotando a pena inicial de 2 anos será valer-se de um faz-de-conta. Para não dizer um embuste, o que a maioria impediu que ocorresse, com direito a desabafos como "Vossa Excelência parece advogado dos réus" e "E Vossa Excelência parece esquecer que não é mais promotor".

Como quer que seja, porém, esse julgamento é, de fato, um marco não apenas no âmbito do Poder Judiciário, mas de toda a nação, pois diz, fundamentalmente, com o aprimoramento de nossa Democracia. Já era tempo de pôr-se um fim a essa sujidade que está por aí. Esperemos que a faxina se alastre pelos demais patamares.

Como disse, com toda propriedade, a ministra Cármen Lúcia, que atualmente preside o Tribunal Superior Eleitoral, ao votar pela condenação de políticos, "Eu não gostaria que o jovem brasileiro desacreditasse da política pelo erro de um ou de outro".

Muito embora seja próprio do poder, qualquer poder, tender a corromper e ser corrompido, como disse há tanto tempo o político John Emerich Edward Dalberg-Acton, o conhecido Lord Acton, é preciso, tal como afirmou, com toda propriedade, aquela ministra, deixar claro que isso não passa de mera tendência, cabendo aos cidadãos de bem impedir que essa tendência se concretize em uma prática rotineira.