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Morte (A)

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Atualizado em 20 de setembro de 2007 14:30

Ao André, que um dia descobrirá que nem nós adultos sabemos muito bem o que é isso.

Dizem que os chineses (quais deles ?) choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna ? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo ? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão.

Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta "como vai você ?" tentei brincar: "cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura". Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu "pessimismo". E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente ?

O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica ?

Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda ? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda ? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Se há um nada antes do início da corda é porque esse nada não se confunde com o início da corda. Se há um nada depois do fim da corda é porque o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda.

Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama "nascimento" e o fim da vida se chama "morte". Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. O que veio antes e o que virá depois são outros trezentos e cinqüenta.

Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio ? Você não sabe. Para onde ele foi ? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou vôo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde ? Quando ? Como ? Você também não sabe.

Será difícil imaginar a vida como esse vôo ?

Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, mais velhos do que eu, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n'água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse ? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte.

Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo "praia de tombo", diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia. Com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui.

Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranqüila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. "Help! Help!" foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma bóia amarrada numa corda. Agarrei a bóia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro.

Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de "Cooper". Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: "Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só para o câncer os cretinos insistem em por apelido". Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: "Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!" Agora é enfrentar seis meses de quimoterapia e seus efeitos colaterais quase-insuportáveis e estarei novinho em folha. Para morrer com saúde.

Por que trago tal assunto para este espaço ? Porque ainda há entre nós essa cultura estranha de achar que, mascarando a realidade, a vida fica mais fácil. É claro que não fica. Ouvi de uma senhora que caminhava comigo pelos corredores do hospital a estranha frase: "Nós não merecemos isso!" Pensei em indagar-lhe o que ela entendia por "merecimento". Onde está o certificado de garantia que nos dá a certeza de que nossa vida durará no mínimo 80 anos e que as doenças só atingirão nossos vizinhos e nossos desafetos ?

Repare bem: quase sempre nós perdemos muito do nosso tempo preocupados com o futuro ou lamentando o passado. O presente, com a alegria proporcionada pelo fato de saber que um tumor canceroso agora está fora do meu corpo, pode passar batido.

Nossa vida, estou convencido, é aquilo que nós fazemos dela.