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Poesia e Direito Constitucional: a utopia imortal de Peter Häberle

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Atualizado às 13:00

O que seria das Constituições sem os poetas e as poetisas, esses ourives das palavras, escultores dos sentimentos que vivem a lapidar, desde a aurora dos tempos, a existência humana? Para Peter Häberle, diretor do Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica Europeia da Universidade de Bayreuth, Alemanha, pouco restaria do Estado Constitucional sem os poetas, as poetisas e sua arte imortal.

Na obra "Um diálogo entre Poesia e Direito Constitucional", recém-publicada pela Série IDP/Saraiva de Direito Comparado, traduzida por Gercélia Batista de Oliveira Mendes, o espanhol Héctor López Bofill, professor de Direito Constitucional e uma das vozes mais influentes da poesia catalã, trava com o seu mestre, Peter Häberle, um diálogo em torno do papel da poesia no Estado Constitucional. A conversa se deu em Munique, em 23 de junho de 2003.

Coube ao ministro Gilmar Mendes a apresentação da obra: "Que têm a ver poesia e Direito? Tudo. Afinal, se, pela via das definições, a jurisprudência persegue a certeza, é a indeterminação da poesia que possibilita a abertura e a transformação do sentido necessárias à apreensão dos conceitos jurídicos, principalmente numa sociedade aberta de intérpretes constitucionais", introduz o ministro.

O livro é curto. Não pequeno. Um sopro. Daqueles sopros que, mesmo fugaz, acaricia a face e corteja as lembranças.

Héctor López Bofill, poeta talentoso, abre o trabalho agitando as águas do oceano poético no qual vive mergulhado: "Aquilo que permanece é fundado pelos poetas", diz, recordando o verso de Friedrich Hölderlin, para refletir sobre o papel da poesia na ordem política e no Estado Constitucional.

Do outro lado, Häberle, que é do ramo. No Brasil, suas obras têm extraordinária aceitação. Fale em "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" numa aula de Direito Constitucional, ou na tribuna do Supremo Tribunal Federal, e não demorará para alguém balbuciar falando consigo mesmo: "Peter Häberle". No imaginário da nossa comunidade jurídica, é forte a lembrança do seu nome.

O professor estruturou a sua "Teoria da Constituição como Ciência da Cultura" incorporando a literatura e a poesia como elementos centrais na compreensão dos textos constitucionais e como fatores que contribuem para a integração e a estabilidade das comunidades políticas. Há tempos ele tem tentado explicar a influência que a poesia exerce sobre a Constituição como conceito de cultura. Nesse particular, cita Friedrich Schiller, que estabeleceu uma relação direta entre poesia e política em "Carta sobre a Educação Estética do Homem", ou Jean-Jacques Rousseau, que escrevia poesias ("o que é conceito de 'vontade geral' senão um conceito de matriz poética?", indaga Häberle, em referência a Rousseau).

Na obra, o Hino à Alegria, de Beethoven, é apontado como um "texto clássico" para a Europa. A letra traz um poema de Friedrich Schiller, de 1785, cantado no quarto movimento da 9ª sinfonia. Expressa os ideais de liberdade, paz e solidariedade. É a demonstração de uma firme crença na nossa humanidade.

Häberle menciona também o papel da crítica poética de Bertold Bretch: "Todo o poder do Estado procede do povo, mas até onde vai?", anotou Bretch. O questionamento encontrou ressonância na redação que abre o parágrafo único do art. 1o da Constituição brasileira, que diz: "Todo o poder emana do povo".

Para Häberle, "alguns aspectos do Direito Constitucional são especialmente sensíveis à atividade criadora dos poetas". Os exemplos são os preâmbulos das constituições e os enunciados de direitos fundamentais. "Os poetas proporcionam a dose suficiente de utopia que orienta o sentido da realidade constitucional", anota, antes de citar a nova Constituição da Suíça, de 1999, em que parte do preâmbulo foi inspirado no poeta suíço Adolf Muschg. Diz o verso: "a força do povo é medida pelo bem-estar dos fracos".

Preâmbulos são mesmo poéticos. Basta ouvir na paz do silêncio a redação dada por Thomas Jefferson - conhecido como "a caneta magistral" - à Declaração de Independência dos Estados Unidos: "Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade". É a frase em língua inglesa mais conhecida do mundo. Pura poesia.

Nesse âmbito preambular, a nossa Constituição não decepciona. Firma-se o compromisso de "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos".

Se a Constituição suíça de 1999, no preâmbulo, não se esquece dos fracos, a nossa vai além. O inciso III do art. 3o aponta como um dos objetivos fundamentais da República erradicar a "pobreza e a marginalização" e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Nas alíneas 'a' e 'b' do inciso LXXVI do art. 5o, assegura-se para os "reconhecidamente pobres" (na forma da lei), o registro civil de nascimento e a certidão de óbito. O art. 6o traz, como direito social, a assistência aos "desamparados". Consta que a Defensoria Pública promoverá a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos "necessitados" (art. 134). São comandos batizados nas águas do Brasil. "Pobres", "marginalizados", "desamparados" e "necessitados". Os personagens silenciados pela desigualdade social que uma história de escravidão, corrupção e privilégios vergonhosamente legou. Constituição e cultura, como quer Häberle.

Seguindo o raciocínio, o professor pondera: "os valores derivados de alguns princípios e objetivos constitucionais, como a tolerância e a educação democrática, podem se fundar na formulação linguística e no conteúdo material enunciado pelos poetas". Ele recorda a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, "cujo êxito universal foi propiciado, em parte, pelo caráter contundente, sugestivo e penetrante do estilo que lhe foi conferido por alguns dos literatos reunidos na Assembleia Nacional Francesa, como Mirabeau", diz.

Não é só o professor que enxerga poesia na Declaração de Direitos de 1789. A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, também.

Em sua obra "Direito para todos", publicado pela Fórum, a ministra comenta poeticamente todos os artigos da Declaração. De um por um. No material, muito de sua personalidade e sensibilidade é dividido com os leitores. Uma exposição infrequente aos juristas, mas sem a qual as poetisas não conseguem viver. "Às vezes, já se vislumbra um céu mais claro a guiar o homem para novas possibilidades. Essa estrela guia pode não ser seguida, mas segue o homem mostrando-lhe direitos que podem clarear, em muito, o seu trajeto com o outro", anotou a ministra, no livro.

Quanto à tolerância, o art. 3º, I, da Constituição aponta como um dos objetivos fundamentais da República, "construir uma sociedade livre, justa e solidária". Sobre a educação, dispõe: "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205).

No diálogo com o seu mestre, Héctor López Bofill fala sobre a influência da poesia na hermenêutica constitucional. "Se a poesia está na origem da ordem constitucional, também se pode afirmar que a poesia é um meio de interpretação dos conceitos constitucionais. A interpretação é extraída de uma sistemática das diferentes partes (preâmbulo, conteúdo dos direitos e objetivos ou fins constitucionais) em relação com a palavra poética que os estabeleceu", diz o professor e poeta.

Häberle aproveita a deixa e engata: "na Constituição, são abundantes os conceitos mutantes, como o de 'dignidade', 'família', 'arte', que são quase tão indeterminados como aqueles empregados na poesia".

No Brasil, família e dignidade estão unidos no art. 230 da Constituição: "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Quanto à arte, o inciso II do art. 206 dispõe que um dos princípios que servirá de base para que o ensino seja ministrado é o da "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber".

"Essa analogia entre Direito Constitucional e poesia também explica a peculiaridade dos métodos interpretativos desenvolvidos pelo Direito Constitucional, qual seja, a interpretação tópica ou a interpretação da sociedade aberta de intérpretes constitucionais, na qual, na minha perspectiva, a palavra poética encontra seu espaço", esclarece Peter Häberle. Aludindo à terminologia aplicada à interpretação de textos orais e escritos desde Friedrich Schleiermacher e Hans-Georg Gadamer, "a poesia seria um marco de pré-compreensão na arte da interpretação jurídica".

Será? Onde se encontram o poeta e o hermeneuta? Quem fala mais alto? Qual deles escuta melhor? Quem governa quem? Há, no Direito Constitucional brasileiro, uma fresta de luz a nos iluminar na busca pelas respostas a essas perguntas? Nesse particular, considerando a presença marcante do ministro Carlos Ayres Britto, talentoso poeta, no constitucionalismo brasileiro, uma breve investigação histórica pode confirmar se Häberle tem razão quanto à relação entre o poeta e a hermenêutica constitucional. Vamos ver.

O ministro Luís Roberto Barroso conheceu o ministro Carlos Ayres Britto em Belo Horizonte, no ano em que eu nasci, 1982. Confessando ter, em sua estante, "com dedicatórias que os tornam infungíveis", alguns de seus livros de poesia, o ministro Barroso dá a sua opinião quanto às poesias do amigo: "Ele é bom nisso também". Em seguida, arremata, ainda em inconfidências: "Muito antes de Carlos ir para o Supremo Tribunal Federal, entreguei a ele uma separata de um artigo constitucional brasileiro, com a seguinte dedicatória: 'Querido Carlos, você já na poesia e eu ainda no Direito'".

A impressão é que a poesia, e o direito, sempre andaram juntos na vida do ministro Carlos Ayres Britto. Basta ver. E sentir. Quando o ministro apreciou o caso que discutia se a imunidade tributária para templos religiosos poderia se aplicar aos cemitérios (RE 578.562), pontificou: "Quer dizer, nem a última morada do indivíduo é subtraída à longa manus fiscal". Antes, o poeta já havia anotado:

O governo confunde FISCO com confisco.
Até o pôr-do-sol por trás dos prédios incrementa o IPTU1.

Noutra oportunidade, o STF discutia a continuidade, ou não, da ação penal contra um caseiro que havia furtado cinco galinhas do seu patrão. Para o ministro, a conduta se deveu "muito mais a extrema carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em franca aproximação da delituosidade". A posição poderia ter sido antevista da leitura de um dos seus poemas:

Três meninos-de-rua a furtar cenouras numa hortaliça
E as cenouras a se dar a eles com um sumarento gosto de Justiça2.

Mais à frente, ao proferir o voto no caso das uniões homoafetivas, leading case de sua relatoria (ADI 4277 e ADPF 132), o Ministro registrou: "É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração". O último trecho - "amarras desse navio de nome coração" - é o fecho do seu poema Experiência.

Há 45 anos atrás
Eu tinha treze anos.
Poucas ideias na cachola,
É verdade.
Mas sonhos em profusão
E uma experiência enorme
No soltar as amarras desse navio
De nome coração3.

Por fim, ao deliberar sobre a recepção, ou não, da Lei de Imprensa (ADPF 130), também como relator do célebre leading case, o Ministro uniu liberdade de expressão e democracia. Isso, ele já tinha feito no poema "Primeiro botão":

O que quer que seja
pode ser dito por quem quer que seja.
- Esse primeiro botão que eu trançaria
No colar de flores da Democracia4.

Héctor e Häberle estão certos. Rousseau e Mirabeau também. O poeta habita a alma do jurista, especialmente a do juiz constitucional. Poesia e Constituição. Poeta e hermeneuta. Verso e texto. Poema e norma. São elementos que não dá para apartar.

E não são apenas versos. Albie Sachs, que foi juiz da Corte Constitucional da África do Sul indicado por Nelson Mandela, confessa não dispensar, na redação de seus votos, uma prosa que forneça aconchego às emoções de quem lê a decisão.

Sachs explica: "O direito depende grandemente da mística. A própria noção de justiça apresenta uma profunda dimensão moral-histórica. Conceitos como o estado de direito, direitos fundamentais e a independência do judiciário ocupam espaços distintos, sagrados, que irradiam energias com grande poder de atração. Caso sejam devidamente empregados, esses princípios podem proporcionar sentido de forma, de dignidade, de estilo". Quanto à redação dos votos, ele fornece a receita: "Ornamentação é aquele 'bocadinho de exibição' que acrescenta uma voz e registro distintos à exposição. Se quiser, chame a isso 'brilho'; se não, chame 'adrenalina'". E justifica: "contato que seja mantido sob controle, acho que esse 'bocadinho de ornamentação' ou, mais delicadamente, certa expressão cuidadosamente modulada de orgulho jurídico, não viola a compostura esperada de um juiz"5.

Rudolf Smend, no seu Constituição e Direito Constitucional, publicado em 1928, no final da República de Weimar, apresentou suas ideias sobre os fatores emocionais como fonte de consenso que devem ser fornecidos a partir do Direito Constitucional. A esse respeito, o professor Peter Häberle diz: "podemos incluir entre os elementos emocionais os hinos nacionais como a Lied de Haydn, no caso da República Federal da Alemanha".

Mas as emoções que encurralam os poetas e poetisas também podem ser agoniantes. A distância entre eles e o Estado Constitucional em que costumam viver é enorme. "Ao poeta é permitido praticamente tudo, ele transita além do sentido comum, nas fronteiras da ordem. O jurista, ao contrário, é um mediador entre cidadãos e deve ter como horizonte o sentir e o pensar do homem comum. Por isso, sua atuação é presidida pela ideia de tolerância e atenção à dignidade do outro, do próximo", anota Häberle.

O professor recorda que "a proteção do meio ambiente já esteve na sensibilidade dos poetas românticos, não compartilhada na época pelo homem comum". É apenas um exemplo. No Brasil, o art. 225, caput, da Constituição, dispõe: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações".

Häberle lembra ainda que ninguém soube descrever melhor do que Shakespeare e Goethe as características e as preocupações que hoje impregnam o homem contemporâneo. "Essa vocação profética de alguns artistas possui, em sua vertente pessimista, a faculdade de nos anunciar realidades sinistras: Kafka e Orwell fizeram a descrição de um mundo de pesadelo que se transformou, posteriormente, em uma triste realidade, como o que aconteceu na República Democrática Alemã (RDA). Eles prognosticaram como uma ordem constitucional pode se degenerar em uma tirania", anota. É o grave preço suportado pelas almas sensíveis. "Os regimes totalitários, como o nazismo e o comunismo da União soviética, tendiam ao extermínio das diferenças ególatras que o artista representava", diz Häberle. O Estado Constitucional, todavia, tem a obrigação de conviver com elas.

O professor também destaca a larga tradição de artistas e poetas que eram juristas ou que tiveram formação jurídica: Heinrich von Kleist, Franz Kafka e o próprio Goethe, cujas inquietações sobre sociedade e a justiça elevaram-se à mais alta categoria expressiva. As reflexões de Friedrich Schiller sobre a dignidade do homem impregnaram um grande número de cláusulas constitucionais.

"Os clássicos não só vinculam os poetas, filósofos e músicos, mas também os juristas, que bebem de suas fontes, como demonstram as obras de Savigny e Radbruch na história do pensamento jurídico alemão", anotou Häberle, afirmando que na função de legitimação e participação, os criadores devem se aprofundar na representação de um espaço comum cujos antecedentes remotos são encontrados na obra do poeta francês Victor Hugo.

O livro "Um diálogo entre Poesia e Direito Constitucional" traz, então, trechos de "A Constituição dos Literatos", publicada em 1983 por Häberle, que aborda a relação entre poetas, narradores e intelectuais alemães com a Lei Fundamental de Bonn de 1949. É a segunda joia dada ao leitor. Um novo sopro, ainda mais generoso.

"Interpreto a tese de Walter Jens, que afirmou que não existe nenhum âmbito, por mais recôndito que seja, que não possa ser iluminado com a ajuda da poesia", registra Häberle, abrindo a segunda obra. Para ele, os textos literários e outras cristalizações culturais podem ser entendidos como textos constitucionais em sentido amplo: "muitas vezes, eles contêm uma retrospectiva da construção e da erosão do Estado Constitucional".

O professor recorda os textos de Gotthold Lessing sobre tolerância em "Nathan, o Sábio"; de Schiller, em "Don Carlos", sobre a liberdade ideológica ou as máximas de Ernst Bloch e Bertolt Brecht sobre a dignidade do homem e a democracia. Lembra ainda que o Hino Nacional da França, a Marselhesa, "é um desses textos musicais e literários em sentido constitucional, em que parte da república e da identidade francesa reproduzem-se". O mesmo se dá com o Salmo Suíço e, na Alemanha, com a Deutschland-Lied, de Joseph Haydn.

No Brasil, penso que a declaração de Dom Pedro I, no Dia do Fico, seria um desses clássicos: "Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico". Novamente, a poesia e sua infinitude.

Häberle indica o texto "O mensageiro de Hesse", de Georg Büchner, com o lema da Revolução Francesa: "Paz nas cabanas! Luta nos palácios!", que, segundo ele, pode ser interpretado, sob a ótica constitucional, como uma defesa da não violência. É um princípio contemplado pelos incisos VI e VII do art. 4º da Constituição brasileira, segundos os quais a República rege-se, nas suas relações internacionais, pelos princípios da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos.

E quanto à morte das Constituições? Seria essa uma partida desejada? Para muitos, as Constituições hão de ser eternas. Nascem para não morrer. A poesia também. Ela se lança à eternidade. A este respeito, desabafa Häberle: "Certamente os poetas possuem um olfato especial para captar o sentido das relações jurídicas e políticas que acontecerão no futuro. Pode-se pensar que a ambivalência de suas afirmações consegue inspirar outros escritores atuais e impregna suas abordagens futuras".

Häberle diz que teóricos de grande estilo, como Otto Mayer e Georg Jellinek, sempre tiveram consciência disso (o mesmo valeria no Direito Civil para as obras de F. K. Von Savigny, nos tempos de Goethe e Martin Wolf em Weimar, ou de Ernest Rabel): "sua literatura jurídica ocupava a posição de verdadeira prosa e configurou parte essencial da cultura jurídica", diz. E prossegue: "Não devemos estranhar se, alguma vez, um poeta houver pronunciado uma máxima do tipo: 'A constituição é algo demasiado importante para ser deixada apenas na mão dos juristas'. Em outras palavras: todos somos guardiões da Constituição!".

Sendo o poeta um guardião da Constituição numa sociedade aberta de intérpretes, então a poesia também serve como crítica pública. Para ilustrar, uma crítica ao Tribunal Constitucional Federal alemão foi feita poeticamente por Erich Fried, decepcionado com a construção de uma jurisprudência que se distanciava de valores cultivados pela esquerda no país. O poeta escreveu:

Aonde foram as esperanças?
Na Constituição
E sua decepção?
Em sua interpretação.

Não há morte capaz de sepultar a beleza da simplicidade desse poema crítico de E. Fried.

Para Häberle, "a Ciência do Direito do Estado não deveria esquecer que ela mesma poderia constituir uma parte da literatura e que um teórico do Estado é, de certo modo, um escritor". Logo, é preciso haver um reforço às exigências sobre a qualidade dos textos e a preocupação dos juristas sobre a formulação linguística que utilizam. "Isso poderia ser um veículo de aproximação e maior compreensão entre escritores e constitucionalistas", anota o Professor, coberto de razão.

A obra "Um diálogo entre poesia e Direito Constitucional" é uma viagem marcante. Ela mostra que a poesia é uma utopia, mas que isso não é feio, nem indigno. Utopias são mais do que ideias, são ideais e a vida dos poetas, e dos constitucionalistas, hão de ser impulsionadas por ideais.

A poesia "não pode prescindir de um mundo utópico, do mesmo modo que a Teoria do Estado também requer utopias", escreveu Häberle. Mesmo porque, segundo ele, o próprio Estado Constitucional era uma utopia quando foi esboçado pela primeira vez por John Locke.

Constituições transformadoras, como a brasileira, trazem em si espaços de utopias. Assim como a poesia, esses espaços não nos limitam nem nos impedem de sonhar. Pelo contrário. Eles nos convidam a sonhar e a realizar. Vem dessa utopia o convite insistente à esperança. Uma esperança que não é inerte, mas cheia de vontade de implementar a Constituição e transformar a realidade. Viver não basta. Por isso, a arte poética é necessária às constituições.

"A arte existe porque a vida não basta", imortalizou Ferreira Gullar. A obra "Um diálogo entre Poesia e Direito Constitucional" nos mostra que, também no Direito Constitucional, não basta. Simplesmente não basta.

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1 Varal de borboletras. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 48.

2 Varal de borboletras. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 97.

3 A Pele do ar. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 121.

4 Ópera do silêncio. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 100.

5 Vida e Direito: Uma estranha alquimia, Série IDP/Saraiva de Direito Comparado, 2017, p. 67.