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O ópio da "ciência" toma conta de Brasília

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Atualizado em 12 de janeiro de 2015 16:15

Em seu marcante livro "O Ópio dos Intelectuais" (1955) naquela marcada época, o filósofo e jornalista Raymond Aron (1905-1983) se perguntava sobre o porquê do marxismo ter se mantido tão popular dentre a intelectualidade francesa (e mundial, diria eu) quando já havia tanta evidência de que a rota capitalista não seguiria conforme a previsão do velho barbudo. A conclusão de Aron é lapidar: já nos anos 1950 o marxismo provava-se como falsa ciência, mas ingressava no campo da ideologia, a "política em ação" para tomar o poder, tornando-se para a intelectualidade o seu ópio. Se para Marx a religião era o "ópio do povo", para Aron o marxismo era o ópio da intelectualidade. Uma sentença como a de Aron nos anos 50 do século XX, ainda mais na França, era de uma coragem e tanto.

Não precisamos regredir à queda do muro de Berlim para verificarmos que o fracasso aparente vislumbrado por Aron chegou à categoria de "mais que evidente" a partir dos anos 1990.

Ocorre que o tempo passa e com certa rapidez hordas de intelectuais e "formadores de opinião" acabam por adotar modelos, utopias, ideologias ou coisa semelhante sobre os quais já não repousam dúvidas ou críticas. Todos, e não somente a chamada "esquerda", ficam novamente inebriados pelo ópio que Raymond Aron identificou no marxismo.

Nos tempos atuais, a Política (com "p" maiúsculo) é metodologicamente separada da economia e do direito, como se as raízes destas últimas não estivessem deitadas no próprio fenômeno humano que forjou a Política. Por meio deste raciocínio funcional, a economia e o direito, insuladas da "influência" da Política, podem ser adstritos à qualidade de "ciências" com objeto e métodos correspondentes que lhes dão um sabor de perfeição ou, se preferirem, état de l'art. O isolamento da Política, enquanto elemento norteador da economia e do direito tem consequências bastante visíveis, como a rejeição aos naturais e essenciais choques entre visões contrárias, bem como o esvaziamento dos processos políticos materiais os quais apenas sobrevivem enquanto conceito formal. Com efeito, os diagnósticos e as políticas (aqui com "p" minúsculo) voltadas para a economia, o mercado, bem como a correspondente ordem jurídica decorrente, tem de obedecer a arquétipos e modelos verdadeiramente incontestáveis com o objetivo de liberar a expansão econômica capitalista no sentido do infinito. Nada pode se opor a este processo, sob pena de ser rechaçado "cientificamente" pela intelectualidade e pelos "formadores de opinião" ou pelo "mercado". Eis o novo ópio à solta. Senão, vejamos o que está a ocorrer na inauguração de 2015 no nosso país.

A nova administração da presidente Dilma Rousseff nasceu com a revitalização da "velha política". Incluiu-se aí todas as mazelas conhecidas da politicalha brasileira, bem como, diga-se em voz alta, a atração para a seara do governo petista da nova equipe da Fazenda e do Planejamento que desembarcou em Brasília com ares restauradores da ordem econômica. De fato, há de se reconhecer que ajustes são mais que necessários, não propriamente porque tenhamos algo de errado que seja, ao mesmo tempo "novo", mas muito mais em função da inconsistência básica da política anterior em função de "velhos" erros. Na gestão Dilma I não se obedeceu a uma lógica básica das identidades das principais equações econômicas, sobretudo em relação àquelas relativas à frouxidão fiscal concomitante à queda dos juros. Adicione-se a esta inequação um déficit cambial cavalar da ordem de US$ 85 bilhões/ano. Ora, neste contexto não seria de se esperar uma queda da inflação, mesmo com todas as tentativas de despistes via controle de preços. A questão da frouxidão fiscal ainda contou com a grave ausência de transparência dos gastos e investimentos, maquiados à sombra das noites mal dormidas do ex-secretário do Tesouro de Dilma I. Como se vê, em tudo isso o que se vê é não apenas erros de política econômica, mais um pensamento e uma prática quase analfabeta na gestão da coisa pública e com evidentes intenções eleitorais.

Agora, o cenário adquire outra coloração. Joaquim e seus Chigago caps retornam à Capital Federal para introduzir os valores científicos que faltaram no passado recente à economia e, com efeito, à ordem jurídica decorrente, sobretudo na área tributária. A correção do analfabetismo anterior se fará de diversas formas.

No que diz respeito à finança pública a lógica é a do "equilíbrio". Feitos os cálculos chegou-se à conclusão de que 1,2% do PIB gera algum "equilíbrio". Há que se aceitar sem retruques ou contraditórios que a taxa de juros básica que gravitará ao redor dos 12,5% é perfeitamente adequada. "Cientificamente", o BC provará, por meio de seu conselho de sábios (o COPOM) que tudo está bem calculado nas planilhas. Além disso, o crescimento do PIB ao redor de zero e igualmente "cientificamente" previsto nas máquinas racionais da nova equipe econômica também está corretíssimo. Sendo o crescimento do PIB o multiplicador das receitas e, em alguns casos, das despesas, não se pode duvidar de que a conta está perfeita. Se houver saldo primário negativo (não apenas provável, mas quase certo!) se procurará com "mãos de tesoura" despesas a se cortar (não muitas porque o Congresso e a Constituição não deixam, que horror!) ou receitas a se engordar (muitas possibilidades, inclusive se puder contra legem). Note-se que a educação, prioridade manifesta de Dilma II já terá um corte de R$ 7 bilhões.

Logicamente, a taxa de juros incidente sobre a dívida pública não pode ser investigada, pois os fatores não estão apenas absolutamente certos e adequados às "expectativas do mercado". Ou seja, a maior despesa do orçamento do Erário simplesmente não é passível de debate, inquietações, análises, contraditórios, etc. Se houver questionamentos da academia, do Congresso Nacional ou de outros quaisquer que pouco sabem sobre a "ciência econômica", haverá volatilidade no mercado financeiro, aqui e alhures e o país não resistirá à implacável lógica dos agentes econômicos em movimento de fuga.

Com uma rapidez de cometa, passamos do analfabetismo econômico para o "estado da arte" da ciência. Por força das circunstâncias aponta a mídia e fim de papo.

Aqueles que são cidadãos têm de se ajustar aos cortes das despesas - alguns cortes justos como dos critérios de concessão de benefícios previdenciários e outros duvidosos. Para atender às premissas científicas, Joaquim e seus Chicago caps aumentarão impostos, reintroduzirão outros (Cide, CPMF) e restringirão o financiamento ao investimento público. Contarão com amplo apoio da chamada elite, outrora fustigada pelo discurso eleitoral.

Joaquim e seus Chicago caps não informaram se cotejaram "politicamente" despesas e receitas para estabelecer prioridades, como por exemplo, as isenções fiscais de certos setores abençoados (refiro-me não apenas à renúncia fiscal manteguiana), ou mesmo se consideraram a tributação de setores altamente beneficiados durante anos pelo seu status de oligopólio ou pelas receitas crescentes obtidas com o retorno "campeão mundial" da taxa de juros brasileira, como no caso da banca. A ciência de Joaquim e seus Chicago caps não pode ir tão longe, pois afinal isso seria "politizá-la" e isso os princípios epistemológicos e metodológicos da economia jamais permitem.

Em meio a tudo isso, há que se ter um pouco de ideologia na ciência, pois que o ópio científico do momento, precisa de certo tempero intelectual. Neste sentido, Joaquim foi longe. Recorreu ao saudoso Raymundo Faoro e o seu magnífico Os Donos do Poder para informar à corte de Brasília e aos distintos cidadãos que a nova equipe econômica haverá de lutar pela purificação da esfera pública dos vícios privados. Eis a tarefa da revogação do renitente patrimonialismo brasileiro.

Bem, observada a Política, o que vemos é a reedição do "presidencialismo de coalizão" que combina uma presidente liberta nas urnas e aprisionada no Congresso. A alforria, parcial e volátil ao humor dos políticos de plantão, é concedida por meio do loteamento meramente politiqueiro da administração do governo. Há surpresa nisso tudo? Fosse Aécio o presidente, seria diferente? Não bastasse o destino, há no governo eleito a estrita observância da regra geral de que, enquanto o tumor do "caso Petrobrás" não explodir, todos podem ser suspeitos da prática do verdadeiro esporte nacional, a corrupção. Dilma Rousseff até que tentou fazer melhor, mas o "regime" não deixa, não é mesmo?

Ademais, como se pode conviver com a ideia republicana, representada pelo chamado Estado Democrático de Direito que limita a sociedade e um regime político de "presidencialismo de coalizão" que é parido por um jogo plutocrático que atrai recursos para os partidos políticos nas eleições? De duas uma: ou as coisas não combinam mesmo e isso tudo não passa de uma ideia meramente formal ou esta combinação é a representação verdadeira do que somos. Vale combinar hipóteses e criar outras tantas.

Neste contexto, será curioso saber, do ponto de vista da Política qual será a contribuição de Joaquim e seus Chicago caps para o fim do patrimonialismo. Sobretudo, interessante será verificar se a racionalidade científica de suas medidas econômicas combinará com a separação do interesse público e privado nas esferas dos Donos do Poder os quais não pagarão as contas cortadas por suas "mãos de tesoura".

Raymond Aron preconizava que a dúvida deveria ser o principal estímulo para os intelectuais e para os "formadores de opinião". É a incerteza e o conflito que a Política apazigua e dá racionalidade orgânica, baseada no jogo natural e legítimo dos interesses e pela saudável intervenção do Poder Estatal. A administração da economia e a ordem jurídica ganhariam muito se admitissem que a "ciência" destas decorre da Política e a racionalidade mecânica que se presume ter para preservar e melhorar a coisa pública não passa de um ópio que pressupõe uma ordem divina para a realidade humana (e brasileira).

Estou cheio de dúvidas sobre a "ciência" que levaram no andor para a Cidade de Niemayer e Lúcio Costa. A burrice da política econômica de Dilma I não justifica o "caráter científico" de Dilma II na Fazenda, em meio a um detestável "presidencialismo de coalizão".