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A pele que habito - parte 1

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Atualizado em 20 de janeiro de 2012 10:48

 

A pele que habito1

Todo mundo já deve ter passado por uma situação em que foi mal entendido. Nessas horas, é comum nos lembramos de nossos pais, irmãos, amigos, enfim, de gente próxima que certamente nos 'entenderia'. E essa lembrança é perfeitamente justificável. Deve-se ao poder comunicativo que uma relação fraternal nos concede. Roland Barthes, em seus Fragmentos de um Discurso Amoroso, descreveu essa relação como portadora de uma linguagem semelhante a uma pele. Uma pessoa "esfregaria sua pele" na outra. Ela teria "palavras no lugar dos dedos, ou dedos na ponta das palavras".

Entretanto, a maioria das relações interpessoais não é regida pelo espírito fraternal, no qual, além das palavras, todo o contexto é identificável por ser, em grande extensão, compartilhado e envolvido por uma mesma pele. Para sermos capazes de nos comunicar além das relações fraternais e de modo a assegurar as demais relações interpessoais criam-se convenções sociais que, uma vez eleitas, compõem um sistema legitimado - e compartilhado - por uma comunidade maior.

O sistema jurídico é reflexo dessa convencionalização, pois por meio dele são organizadas e interpretadas determinadas convenções com o intuito de garantir e atribuir, aos que estão inseridos em uma comunidade, direitos e deveres. Cria-se, dessa maneira, além das obrigações jurídicas, todo um subuniverso linguístico especializado, que existe paralelamente ao da comunidade. Um subuniverso com particularidades próprias, cujo aspecto fraternal é mínimo e afasta - ou até mesmo repele - aqueles que não possuem o domínio de sua linguagem e convenções. Ainda assim, em um mesmo universo linguístico (e.g. que adota o português do Brasil), ao menos todos que nele estão inseridos, falam a mesma língua e entendem em maior ou menor grau a complexidade das relações sociais. Consequentemente, nesse contexto, os agentes do poder judiciário são capazes de articular sem grandes conflitos - porém não livre deles - a relação entre o leigo e a linguagem específica.

Agora, reflita sobre quando diferentes sistemas se cruzam ou se sobrepõem colocando os especialistas de ambos os lados em contato. Obviamente é necessária a correta tradução de termos específicos que não encontram correspondentes diretos em cada um dos universos envolvidos. Essa, por si só, já seria uma tarefa dotada de significativa complexidade, já que nela se encontram, não só as dificuldades de comunicação resultantes das particularidades dos sistemas jurídicos envolvidos, mas também a possibilidade de ruídos decorrentes das diferenças culturais entre os dois sistemas.

Nesse caso, além dos desafios linguísticos códigos éticos, há possibilidade de haver choque cultural2. Esse ocorre toda vez que uma manifestação que produz um elemento estrangeiro ao sistema se vê nele entrelaçado produzindo efeito outro que não o desejado pelo emitente. Fica então evidente, e se prova necessária, a atuação de um mediador que domine tanto a linguagem dos sistemas em questão quanto os hábitos linguísticos das culturas estrangeiras que se encontram. Um profissional capaz de fazer tanto a correspondência terminológica específica dos sistemas jurídicos entre os dois universos linguísticos como a orientação dos interlocutores envolvidos.

Da primeira situação, um exemplo seria a necessidade de o tradutor ou intérprete de conhecer as nuanças do termo law3 no inglês, e ser competente para decidir em que situações empregar as diversas traduções desse termo em português.

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1A autora é fã incondicional de Pedro.

2Para ler mais sobre choque cultural: Carvalho, L. (2010) Tradução Jurídica e Choque Cultural. In: Ciclo de Palestras sobre Tradução do CITRAT & DLM, FFLCH, USP.  (clique aqui)

3Para ler mais sobre a tradução de Law: Carvalho, L.  (2008) 'Leis, convênios e resoluções' (clique aqui)  e Carvalho, L. (2008) 'Mais sobre law e act' (clique aqui)

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