Artigo - STF proíbe dispensa imotivada em empresas públicas, sociedades de economia mista da União, dos Estados, do DF e dos municípios

22/7/2017
Guilherme dos Santos Todeschini

"Com certeza uma bela e exemplar decisão do STF, a ser compreendida e estudada pela seara jurídico-trabalhista (Migalhas de peso - 22/3/13 - clique aqui). Proponho filtrarmos a leitura das regras incidentes à luz da realidade que elas pretendem reger. Primeiramente, cabe salientar que, apesar de a Constituição versar que às empresas públicas e sociedades de economia mista se aplicam as mesmas regras que as aplicáveis às suas concorrentes no mercado, a própria Constituição também veicula regras que relativizam essa equiparação. Um exemplo disso é o de que, diferentemente das empresas puramente privadas, as estatais devem recrutar pessoal mediante concurso público. A tal regra subjaz o princípio da impessoalidade na administração pública, ou seja: ao passo que as empresas privadas contratam quem bem quiserem, mediante análise de currículo e escolha arbitrária da pessoa a ser contratada (uma vez que um particular ou particulares são donos do negócio), as estatais estão vinculadas a um modelo impessoal de recrutamento de pessoal (o concurso público), uma vez que não há um dono do negócio, já que se trata de empreendimento de interesse de toda a coletividade. Ora, se o princípio da impessoalidade na administração pública é observado na entrada do empregado na administração pública, nada mais coerente que esse também seja observada na eventual dispensa do empregado - e daí (do princípio da impessoalidade) que deriva a necessidade de motivação do ato demissional, e não da estabilidade. Vamos ao mundo real, o qual de fato demonstra o acerto da decisão: as posições de comando das empresas públicas são todas ocupadas por pessoas indicadas politicamente (cargos em comissão). Ainda, cabe lembrar que tais pessoas, apesar de terem legitimidade política para dar o norte de atuação da entidade, não são donas do empreendimento (mas sim a coletividade). Assim, pertinente que se façam as seguintes perguntas: É plausível que agentes de indicados politicamente (compromissados, portanto, com o sucesso do governo, o que os leva, por vezes, a querer empreender ações nem sempre saudáveis do ponto de vista da ordem legal institucional) possam ter o poder de livremente demitir agentes públicos que ingressaram por concurso na instituição (os quais, por assim terem ingressado, só têm compromisso técnico-institucional, de carreira pública)? Teria o empregado respaldo para negar-se a cumprir ordens flagrantemente ilegais ou temerárias (obrigação do agente público) de sua chefia se essa puder demiti-lo a qualquer tempo e de modo arbitrário? Qual a segurança e o destino do empregado técnico exercente de função de controle interno que tem que manifestar contrariedade (por obrigação funcional), e por vezes reiterá-la, às ações empreendidas pelos órgãos de comando da instituição? Qual o destino do advogado concursado que, dentro da melhor técnica e no regular exercício de suas funções, der parecer contrário numa licitação que, se feita, apesar de irregular, gerará grandes ganhos ao governo ou a instituições ou pessoas a ele vinculadas? Seria plausível que em um governo do PSOL todos os empregados concursados filiados ou simpatizantes de partidos de direita fosse demitidos por não 'vestirem a nova camisa' da instituição, ou que em um governo do PP o todos os concursados simpatizantes ou filiados a partidos políticos de esquerda fossem demitidos pelo mesmos motivos (escamoteados na possibilidade de demissão imotivada)? Seria possível que um presidente de estatal com fortes ideais religiosos demitisse todos ou parte dos concursados ateus, ou que um presidente ateu demitisse todos ou parte dos concursados religiosos? As possíveis respostas a essas perguntas somente demonstram uma coisa: se as estatais tiverem o poder de demitir concursados sem motivação, estará aberta a porta para qualquer tipo de perseguição arbitrária (em entidades que, apesar de atuarem no mercado, também são orientadas em grande parte pelo regime jurídico de direito público, que tem como um de seus pilares o princípio da impessoalidade). Cabe salientar que tais perseguições podem ser de diversas ordens (políticas, por questões de gênero, raciais, ou qualquer outro tipo de discriminação, por simples rusgas, por vingança), e são elementos possivelmente subjacentes às arbitrariedades na maioria das vezes, motivo pelo qual não pode tal arbitrariedade se sobrepor à impessoalidade e à eficiência (elementos subjacentes ao concurso público). Desse modo, necessário sim que o ato de despedida seja motivado, de modo que a demissão (que pode sim ocorrer) ocorra somente quando é devida (ou seja , quando se sustenta porque demonstrado que o empregado violou normas de conduta funcional). Observe-se, ainda, que a despedida justificada em nada afeta a higidez do ato demissional se o motivo determinante do ato se sustentar, ao passo que aceitar que o critério é mesmo arbitrário, ou que cabe ao demitido provar o desvio de finalidade do ato demissional, viola o princípio da impessoalidade na primeira hipótese, e gera a obrigação de realização de prova leonina pelo empregado na segunda hipótese na tentativa de reverter a atuação anti-jurídica do gestor público. Em resumo, o simples filtro da questão à situação de fato demonstra a correção da decisão do STF - uma vez que, se prevalecesse o entendimento contrário ao do Supremo, estaria consagrada a quebra do princípio da impessoalidade na administração pública, o que abriria margens à utilização arbitrária e para fins desviados de órgãos da administração pública, à violação de direitos dos integrantes do quadro técnico dessas instituições ingressantes por concurso público, e à total inviabilização dos sistemas de controle interno desses órgãos (os quais são fundamentais a qualquer entidade pública). Inclusive, em épocas de investigação sobre abusos de governos em estatais, é de se perguntar sobre as condições de atuação do quadro técnico interno nessas entidades frente ao interesses dos gestores. Concluindo, tal decisão afigura-se como digna de estudo do regime de emprego público pela seara trabalhista - a qual deve rever seus conceitos quanto à matéria, passando a adotar também os seguintes entendimentos: Não deve sobre ele incidir o princípio da imediatidade na aplicação da pena (uma vez que desarmônico com os trâmites comuns da administração pública, bem como com o princípio do contraditório no processo disciplinar); Não deve sobre ele incidir o instituto do perdão tácito (uma vez que o interesse público na responsabilização funcional é indisponível, diferentemente do que ocorre no regime de emprego puramente privado); Não deve o comissionado receber parcelas de natureza indenizatória na rescisão de seu contrato de trabalho, uma vez que não tem tal relação trabalhista expectativa de continuidade (além de tal entendimento abrir margem ao gestor mal intencionado para favorecer 'pessoas ao seus olhos especiais', às custas dos recursos públicos, com constantes nomeações em rodízio nas posições de comando dessas entidades)."

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