Lava Jato

16/10/2017
João Fleury

"Sem cansar de acompanhar o precioso substrato diário do árduo trabalho desse poderoso rotativo especializado, mas às mudas ultimamente, até em função da imposição da causa que fez com que eu viesse a me hospedar por uma semana na indesejável suíte 26 da UTI do Hospital Oswaldo Cruz (três arroubos de excesso de emoção e uma parada total para descanso inadiável, com direito à reanimação forçada), reporto-me à nota 'Depoimento de Funaro' e à nota subsequente, na qual o gentil termo consignado, 'inabilidade', me fez lembrar de episódio havido no exercício de minha especialização principal de antanho, acompanhamento de inquéritos policiais, e subsequentes desdobramentos, a qual passo a relatar, até por entender oportuna lição para se lembrar nos dias correntes (Migalhas 4.215 - 16/10/17 - "Depoimento de Funaro"). Como o convite da vida a assistir aos telejornais durante o fim de semana foi irrecusável, tive a oportunidade de me deparar com as tais gravações de alguns desses depoimentos referidos na migalha citada, e considerações do interlocutor oculto me fizeram trazer à lembrança a assertiva e as ponderações de um delegado de polícia, durante a oitiva de um acusado, que a certa altura disse ao implicado: 'abstenha-se de tentar me revelar os segredos dos outros envolvidos e atenha-se ao relato de sua própria participação nos fatos'. Aquela recusa aparentemente injustificada e tola, em receber um relato de atividades criminosas de várias pessoas, me pareceu um tanto inadequada a alguém que tem por função investigar e esclarecer crimes. Passados alguns dias do fato, e depois de ter me aventurado a compreender a razão daquela recusa, tive a oportunidade de estar novamente com tal inusitada figura e lhe perguntar, a título de estudo e instrução, a razão que o levara a se portar daquela maneira. Ele me disse que já era profissional da investigação policial a muito tempo e que a edição e entrada em vigor da nova Constituição (de 1988) o havia inspirado a tomar muitos outros cuidados durante cada passo do inquérito, mormente em função do inciso LVI, do artigo 5º, para que nenhuma prova pudesse ser anulada ou tida como nula. Daí não permitir que no depoimento de qualquer acusado, ou na declaração de qualquer testemunha, estivesse consignado, de qualquer forma, o dolo específico do tipo contido no artigo 154 do Código Penal. Ao lhe perguntar se não era justa causa a revelação do inteiro teor da verdade dos fatos à autoridade policial ele me ponderou que naquilo que dissesse respeito ao próprio depoente, sim, mas que o que envolvesse outras pessoas, a obtenção de eventual efeito de confissão (enquanto atenuante penal) não poderia assim ser considerado porque violaria a disposição expressa do inciso X do mesmo artigo 5º da Constituição. Ou seja, o sistema penal brasileiro não admite que a alcagoetagem para obtenção de atenuante penal seja justa causa para excludente do tipo penal em questão. E ainda me disse que, nesse caso, com a eventual representação tratada nesse artigo, com eventual condenação do infrator, a utilização pela autoridade policial em qualquer sentido (e, especificamente, a utilização pelo Ministério Público em caso de denúncia) poderia até, no caso de um magistrado mais exigente no respeito às garantias fundamentais e à legislação penal, ser entendida como infração ao disposto no artigo 180 do Código Penal, por tratar-se de recepção e utilização ilegal de objeto de crime em proveito de terceiro (no caso, o próprio Estado). É uma pena que esta singular figura já não esteja mais entre nós para emitir sua opinião neste cenário que transformou o Brasil numa verdadeira 'República de Matildes'."

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