COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Marizalhas >
  4. A coragem do livre pensador

A coragem do livre pensador

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Atualizado em 6 de agosto de 2010 15:28

Atuei muito pouco na Justiça Militar. Formei-me em 1970 e à época grandes advogados defendiam presos políticos, perante os Tribunais castrenses. Inúmeros eram os processos mensalmente instaurados, oriundos dos inquéritos das Comissões Gerais de Investigação e de outros órgãos da repressão. A esses colegas, militantes de todos os Estados da Federação, devemos tributar nosso mais profundo respeito, pela sua coragem e pelo seu desprendimento postos à prova em embates profundamente desiguais travados perante órgãos do judiciário que nem sempre primavam pela imparcialidade. Não raras vezes esses advogados eram igualados aos próprios clientes, pois defensor de subversivo, subversivo era.

Minha atuação na Justiça Militar, como disse, foi insignificante, pois limitou-se à defesa de um único acusado.

Uma única causa, no entanto, proporcionou-me riquíssima experiência profissional e valiosa contribuição para minha formação pessoal, mercê do convívio com um homem excepcional, o Professor Roberto Jorge Hadock Lobo Neto.

Com 69 anos de idade, ele fora, em abril de 1972, denunciado perante a Segunda Auditoria Militar, sob a acusação de haver incitado alunos da Faculdade de São José dos Campos, onde lecionava História da Educação, "à subversão da ordem política vigente no país, quer de forma sorrateira, inoculando no espírito dos desavisados o germe da guerra psicológica e subversiva, no ensinamento preconcebido e deturpado da doutrina marxista, quer de forma ostensiva, ao mandar que os alunos se sublevassem, por ocasião da morte do estudante Edson Luiz".

A acusação o rotulou de "velho militante comunista", fato por ele não negado em seu interrogatório, o que, por si só, já demonstrou a sua coragem e retidão de caráter. Para ele, se tal circunstância o incriminasse, pouco se lhe daria, pois preferiria arcar com as conseqüências de uma condenação, do que negar as suas convicções ideológicas. Negou, isso sim, e o fez veementemente, qualquer ação de incitação à luta armada ou qualquer espécie de sublevação.

A denúncia foi julgada improcedente, por unanimidade, após a defesa por mim produzida e a manifestação do procurador Henrique Vailate que postulou a absolvição do acusado.

O processo instaurado contra o Professor Roberto Jorge Hadock Lobo Neto representou, à época, a indisfarçável aversão do poder político de então pela liberdade de pensamento. A prova oral constante dos autos, mesmo aquela produzida a pedido do MP, realçou os aspectos exclusivamente didáticos das exposições e mesmo das digressões políticas feitas pelo Professor. Ficou patente que a sua divergência com o governo dito revolucionário se situava no campo ideológico e no que representava de afronta à democracia. A prova demonstrou, outrossim, e seus livros já mostravam, que embora de formação marxista, Hadock Lobo era um democrata e acima de tudo um humanista. As críticas que fazia a ações concretas do governo, como, por exemplo, à Lei de Diretrizes e Bases, possuíam forte embasamento fático e teórico e tinham sempre um acentuado sentido construtivo.

Sempre reconheceu a grande influência de Marx, especialmente no que tange à importância dos fatores econômicos na evolução da humanidade. Jamais no entanto fez proselitismo da doutrina marxista em sala de aula. Verberava sim as vergonhosas diferenças sociais marcantes em nossa realidade passada e presente e ressaltava como um dos seus preponderantes fatores a quase inexistente distribuição de renda.

Como livre pensador, envolveu-se em inúmeras e célebres polêmicas sempre defendendo os postulados éticos e humanistas como os norteadores das atividades e das condutas humanas. E possível que seu notório ateísmo deve ter refletido no processo a que respondeu, pelo menos na acusação que lhe deu início.

Tenho, hoje, absoluta certeza que a sinceridade demonstrada durante o julgamento, a sua transparente honestidade de propósitos e o seu elevado porte intelectual, somados à carência de apoio probatório para a imputação contra si feita, constituíram fatores preponderantes para a sua absolvição.

Parece-me ter sido esse um caso emblemático. Os governantes procurando punir um homem de pensamento, que o extemava com denodo e independência, mas, aos olhos dos detentores do poder, com insolência e petulância. Assistiu-se a um confronto da cultura, da inteligência, da liberdade de pensamento e do destemor com o obscurantismo, o arbítrio e a violência.

Prevaleceu o senso de justiça do juiz auditor, dos juízes militares e do próprio acusador, que se renderam à força da coragem, do caráter, do intelecto de um homem verdadeiramente singular.