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Futebol, Direito Societário e Governança: a reforma do Estatuto do São Paulo Futebol Clube - Parte I

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Atualizado às 08:28

A solução para os problemas do futebol é o mercado. Não um mercado selvagem, desregulado, libertário.

Mas um ambiente concebido para aproximar os instrumentos de financiamento da empresa econômica de uma atividade - o futebol - que se confunde com a própria formação cultural do brasileiro.

Esse ambiente não se formará sem a observância e a preservação de valores caros tanto aos agentes futebolísticos como aos de mercado.

Aí reside o segredo, portanto: o encontro de culturas, ou de segmentos que, em uma perspectiva realmente democrática, já teriam se envolvido e se relacionado (provavelmente) há muito tempo.

Os clubes, para que atraiam o que o mercado pode lhes oferecer, devem rever o modelo de propriedade do futebol, separando-o das demais atividades clubísticas, e estruturar um modelo de governança compassado com as necessidades e (legítimas) exigências dos provedores de capital.

Os agentes de mercado, de seu turno, devem se sujeitar a uma regulação que, apesar de não controlar fluxos de entrada e saída, protege um bem com o qual o cidadão-torcedor estabelece uma relação que transcende racionalizações.

Esse modelo ideal ainda está longe de ser atingido. Não existe um time brasileiro que o tenha adotado em sua plenitude. Longe disso, aliás: as experiências tentadas se protagonizaram especialmente pelo discurso, e não pelo efetivo movimento transformacional.

O motivo é - ou deveria - ser evidente: enquanto não se operar a separação do associativismo político da empresa econômica futebolística, qualquer reforma organizacional não irá além de um maior ou menor controle sobre processos essencialmente amadores e delimitados por um estatuto concebido para pacificar relações associativas.

Por isso, aliás, que o mercado também não se deu conta da potencialidade da atividade futebolística. Ou, se deu, não se deixou seduzir pelo seu canto de sereia.

Uma recente iniciativa, porém, pode inaugurar uma nova fase do futebol brasileiro.

O São Paulo Futebol Clube ("SPFC") nomeou uma Comissão de Associados ("Comissão"), formada por 9 membros, para propor uma reforma de seu marco estatutário. Após uma rodada inicial de sugestões por parte dos próprios associados, a Comissão produziu um trabalho sistematizado, e o devolveu, para nova consulta, aos associados e membros de órgãos sociais.

Quando essa segunda fase de consultas terminar, a Comissão irá produzir o texto final, que deverá ser votado, em caráter definitivo, pela Assembleia Geral, em dezembro de 2016.

A aprovação do texto poderá revelar-se paradigmática sobretudo por: (i) determinar que se realize, dentro de determinado prazo, um estudo de viabilidade econômica da separação do futebol das demais atividades do clube; e (ii) prever um modelo de governação realmente evoluído em relação ao que se pratica localmente.

Na presente Coluna se abordará a proposta de separação (e, no texto da próxima semana, a governança).

De acordo com a proposta de reforma, o presidente do SPFC deverá realizar, no prazo de 12 meses, um estudo de viabilidade econômica da separação do futebol das demais atividades do clube.

Participarão do estudo especialistas com notável conhecimento dos temas envolvidos. A contratação dessas pessoas se sujeitará à aprovação do Conselho de Administração do SPFC (um órgão criado pela reforma estatutária em curso, e sobre o qual se discorrerá na próxima semana).  

O Conselho de Administração criará um Comitê Especial de Acompanhamento do Estudo de Separação, composto por 3 membros. Um deles poderá acompanhar os trabalhos dos especialistas, sem interferir no poder e na autonomia do Presidente do SPFC.

Espera-se que esse membro acompanhante elabore relatórios mensais ao Conselho de Administração, reportando suas atividades e emitindo opiniões, para apreciação dos demais membros, aproximando o órgão colegiado da diretoria.

Concluído o estudo, o presidente emitirá opinião, recomendando ou não, a separação. A opinião, acompanhada do estudo completo, será então encaminhada ao Conselho de Administração.

O Conselho de Administração também emitirá uma opinião, podendo, inclusive, divergir daquela formulada pelo presidente.

Na sequência, ambas as opiniões serão remetidas, simultaneamente, ao Conselho Deliberativo e ao Conselho Consultivo. 

O Conselho Consultivo se manifestará previamente, compondo um conjunto de 3 opiniões, que servirá de referência para o Conselho Deliberativo, que irá, enfim, deliberar a respeito do mérito, recomendando ou não a separação.

No caso de recomendação, passa-se ao derradeiro escrutínio, da Assembleia Geral de Associados, que deliberará, em caráter definitivo, sobre o tema. A deliberação será tomada pela maioria dos Associados presentes à Assembleia Geral.

Esse procedimento é necessário por um motivo estrutural: considerando a inexistência de uma via de direito específica destinada a regular a passagem do modelo amador ao profissional, os mecanismos disponíveis aos clubes são os mesmos utilizados por qualquer empresa.

As empresas, porém, sujeitam-se a regimes ordinários, distintos daqueles extraordinários aplicáveis ao futebol, que é tratado de modo especial e subvencionado pelo Estado.

Daí a necessidade de se confirmar, por meio de um estudo de viabilidade, sobretudo enquanto o novo marco regulatório do futebol não seja votado e entre em vigor, a sustentabilidade da separação.

No caso do SPFC, aliás, a proposta de estatuto aborda essa realidade, e estabelece que, se o Conselho Deliberativo não convocar a Assembleia Geral, em decorrência da reprovação do estudo, ou se a Assembleia Geral reprovar a separação, o processo deva ser renovado na hipótese de promulgação de uma nova lei que crie um tipo ou uma forma societária visando justamente à separação do futebol profissional das demais atividades dos clubes associativos.

Enfim, o caminho proposto na reforma estatutária do SPFC, se aprovado pela Assembleia Geral, e, posteriormente, se confirmada a viabilidade separatória, poderá inaugurar uma nova - e necessária - fase, que implicará possível libertação de um modelo arcaico e impeditivo do acesso a meios de financiamento para o desenvolvimento social e econômico do futebol no Brasil.