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Inexistência, nulidade e outras perplexidades

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Atualizado às 10:19

Jorge Amaury Maia Nunes

Há algumas coisas que temos como sedimentadas no âmbito doutrinário e que não se chocam com o que está no CPC de 2015. Outras, certamente, podem assustar. Quando queremos entender a teoria do direito processual, primeiramente temos de entender a teoria do direito com amparo em suas categorias mais fundamentais, por exemplo, lícito e ilícito. Ora, o lícito e o ilícito são, sobretudo, uma ideia que se tem sobre eles. Não existe uma coisa essencial em um ilícito.

Então a ideia de lícito ou ilícito vai depender, sempre e sempre, de um dizer da sociedade. Vai depender de um dizer do detentor do poder político naquela sociedade. Esse detentor do poder político é que vai, de acordo com a sociedade, dizer: vamos nos comportar desta maneira. E essa maneira vai ser a forma lícita de comportamento.

Toda vez que uma conduta ou apropriação de qualquer natureza, e não necessariamente de natureza patrimonial, escapulir da forma estipulada pelo detentor do poder político para dizer que essa apropriação é válida, este escapulir constituirá um ilícito. Essa é a regra geral das licitudes e ilicitudes.

Essa ilicitude vai coincidir, em grande medida, com a teoria das validades ou das invalidades, que é apropriada pelos outros ramos do direito. Pelo direito penal, que vai apenar essas condutas; pelo direito civil, que vai dizer se a forma de apropriação de que se lançou mão é válida ou inválida e, portanto, se sua apropriação pode ser eficaz no mundo da sociedade; e assim sucessivamente, até chegarmos ao direito processual civil.

Aqui, também, o detentor do poder político há de traçar um figurino, que entre nós atende pelo apelido de Código de Processo Civil.

Este figurino é que vai dar os moldes, os modelos que podem ser utilizados pela sociedade; em particular, pela sociedade daqueles que atuam no foro, para provocar a prestação da atividade jurisdicional do Estado.

Diante disso, aparecem teorias várias sobre eventual desrespeito ao figurino preconcebido, não sendo raro falar-se em teorias dicotômicas e tricotômicas de nulidades. Temos muita preocupação com relação a esses desenhos que se fazem, até porque não se vê um magistrado dizer assim: "Declaro que aqui acontece uma nulidade relativa e, portanto, desconstituo o ato". Ou: "Declaro que essa nulidade é absoluta e desconstituo o ato".

Essas manifestações no âmbito do judiciário, sobre ser a nulidade absoluta ou relativa, acontecem no máximo quando ele quer afastar uma eventual preclusão para pronúncia da nulidade, apenas e tão somente isso, mas não é usual encontrar-se uma manifestação dizendo que tal nulidade é absoluta ou relativa, por parte do magistrado.

No máximo, as partes que, quando se defendem, dizem: é absoluta, é relativa, porque perderam o tempo para a sua arguição. Ou, "essa nulidade é cominada ou não é cominada", expressão que era utilizada no CPC de 1973 e que foi afastada no Código de 2015.

Posto o cenário, vamos tentar apenas ressuscitar a discussão sobre a inexistência de um ato jurídico processual.

Parece certo afirmar que, entre os antigos, conceito de inexistência do processo coincidia, mais ou menos, com a chamada nulidade absoluta ou com o ilícito absoluto, e que, talvez, a ideia sobre inexistência não fizesse nenhuma falta para a teoria das nulidades. Não havia discrímen entre o nulo absoluto e o inexistente. As Ordenações Filipinas também não tinham muita clareza quanto à diferença existente entre o nulo absoluto e a inexistência, mas preferiam cuidar da inexistência.

Tanto é assim que, numa passagem das Ordenações Filipinas, Livro III, LXXV, está escrito assim: "a sentença, que é per direito nenhuma [inexistente], nunca jamais em tempo algum transita em cousa julgada". Quer dizer que a sentença jamais será exigível. As Ordenações, então, trabalhavam com a ideia de inexistência, mas em detrimento da ideia de nulidade absoluta.

Pode parecer que um estudo dessa natureza seja obra de mero diletantismo. Deveras, se se trabalha somente com as consequências do reconhecimento da inexistência de um ato ou com a pronúncia de sua nulidade, não haverá distinção, mas quando se pretende verticalizar o exame do tema - até na aplicação prática - a ideia do inexistente e do nulo começam a gerar conseqüências diversas. Vamos investigar.

Imagine-se uma sentença proferida por um cidadão que não é mais juiz. Aposentado compulsoriamente porque completou setenta anos (ou setenta e cinco!), esse cidadão, muito zeloso e cumpridor dos seus deveres, um dia após o septuagésimo aniversario, foi ao gabinete para encerrar sentenças que estavam praticamente produzidas, faltava um detalhezinho ou outro. Fez as correções e assinou as peças processuais.

Ocorre que esse cidadão, com setenta anos e um dia, não tem mais jurisdição. Tecnicamente, ele é um ex-juiz, um não-juiz, mas assinou a peça processual. Para os fins do direito, essa sentença vale tanto quanto uma sentença que tenha sido assinada por um advogado militante. É a mesma coisa, é uma não-sentença. O ato, entretanto, tem forma, cara e jeito de sentença.

Pois bem, identificado que a sentença foi proferida por um não-juiz, não é necessário fazer nada em relação a ela, não é necessária nenhuma providência, porque ela em si não tem o "pressuposto mínimo de identificabilidade" com um ato sentencial que exige, para merecer essa qualificação, ser proferido por alguém dotado de jurisdição.

No processo civil brasileiro, havia (e ainda há) o exemplo clássico da inexistência dos atos processuais quando firmados por advogado desdotado de procuração e que não a apresentara no prazo que lhe fora conferido. Dizia-se que aqueles atos eram considerados inexistentes, porque assim dispunha o texto do Código de Processo Civil de 1973. Ocorre que o novo Código não diz isso, com o que talvez se pudesse alegar que o arrimo da construção doutrinária, da construção teórica, está afastado. Apesar de afastado, seria possível insistir: se o ato é praticado e tem até o jeito de sentença, mas sentença não é, então não é preciso fazer nada para hostilizar esse ato. E ele em si jamais vai existir.

De outra sorte, um ato sentencial viciado é válido, sem que isso represente uma contradição. Deveras, a nulidade é sempre um fenômeno endoprocessual, um fenômeno que ocorre dentro do processo. Exatamente por isso, uma vez transitada em julgado a sentença, aquele ato sentencial revestido de algum vício que costuma ser apelidado de nulidade, vale e pode ser cumprido, se for o caso de se tratar cumprimento, evidentemente.

É claro, dir-se-ia, "cabe ação rescisória". Considere-se, entretanto, que somente cabe ação rescisória de ato que é, de ato que vale. Tanto que a ação rescisória é, sobretudo, uma ação de natureza constitutiva-negativa. Então, se o ato não fosse nada, não seria necessário lançar mão da rescisória. Do ato que é, mas é nulamente, cabe o uso da rescisória para sua desconstituição. Assim, até do ponto de vista prático, é possível sustentar que há atos que são inexistentes (a rigor, não-atos) e atos que são viciados e que existem válida ou invalidamente.

Isso parece tão mais claro quando se percebe o trânsito em julgado e nota o seguinte: se existe uma nulidade processual no ato chamado sentença, a apelação, aviada no tempo próprio, pode versar sobre os chamados errores in procedendo, ao lado dos erros de julgamento, errores in iudicando.

Então, é possível encontrar um vício processual e arguir a seu respeito para que o tribunal, em exame do recurso de apelação, casse aquela decisão, desconstitua aquela decisão e determine a volta do processo ao primeiro grau de jurisdição, se for o caso, para que o magistrado profira outra sentença, escoimada do vício que foi apontado, evidentemente se o vício permitir sanação.

Uma coisa deve ficar clara: só existe, segundo pensamos, uma teoria das nulidades universal na medida em que todos os ordenamentos sejam os mesmos. Como isso não acontece, não se pode falar em uma teoria universal das nulidades. As nossas teorias de nulidade têm a ver com aquelas coisas que julgamos ser logicamente adequadas, e com aquelas coisas que aparecem em determinado ordenamento positivo, em determinado código.

Em outras palavras, uma teoria das nulidades deve estar baseada no código de processo civil respectivo, essa a regra; mas, humanamente, devemos ser capazes de entender que há categorias lógicas que podem, primeiro, alimentar o texto legal chamado código de processo e, depois, podem hostilizar esse mesmo código.

Toda a ideia de nulidade no CPC visa a retirar a eficácia do ato cujo vício tenha sido judicialmente reconhecido. No que concerne à chamada eficácia normativa, parece que os resultados são alcançáveis, mas a eficácia social, o ato nulo pode ter e normalmente tem. Isso é inevitável, inescapável, até porque CHIOVENDA sempre suscitou, com muita pertinência, que o processo por si só gera um dano para o autor que tem razão. Pelo só decurso do tempo, o autor que tem razão perde alguma coisa.

Um ato viciado, praticado em determinado processo, pode ter a nulidade pronunciada no futuro e até com eficácia retro-operante; mas não interessa, ele já gerou um dano, o desenvolvimento da máquina processual contra o autor. Então, eficácia social o ato viciado pode ter. O que se afasta com a decretação da nulidade é a eficácia normativa prevista para aquele ato em específico.

Nulidade declarada ou decretada?

Havia certo consenso de que nulidade era declarada e não decretada.

Temos afirmado que a nulidade processual é apenas o reconhecimento da desconformidade do ato praticado com a sua previsão in abstracto. O código faz uma previsão, e um sujeito do processo, na hora de praticar o ato, desborda da previsão e constrói um ato seu, um ato próprio, que não é aquele que está no figurino legal.

Essa desconformidade existe desde o momento que o ato é praticado. Então a nulidade seria apenas a declaração dessa desconformidade. Apesar de não haver muita discussão a esse respeito, a generalidade da doutrina, ao se manifestar, fala em anular o ato. Ora, toda vez que se disser "anular o ato", não se está praticando ato verdadeiramente declaratório, e sim ato desconstitutivo ou, se quiserem, constitutivo-negativo.

Isso conduz a questões bastante interessantes. Primus: há diferença entre desconstituir o ato e declarar que o ato é nulo, se for levada a ferro e fogo a questão dos efeitos? Sim, poderia haver, mas é bom lembrar que os conceitos jurídicos não possuem nenhuma essencialidade. Então é plenamente possível construir uma teoria como parece pretender o Código de 2015, desde que se afirme: uma decretação de nulidade de ato (uma desconstituição de ato) pode ter efeitos retro-operantes.

É certo que atos com natureza constitutiva têm (admitindo-se uma categoria lógica para esse fim) a tendência natural para operar efeitos prospectivos, daqui para frente, jamais retrospectivos.

Assim é porque houve uma convenção coletiva, uma convenção comunitária da nossa linguagem que levou a esse resultado; mas nada impede que se pense diferente e construa diferente, exatamente porque a linguagem do direito não possui nenhuma essencialidade.

Um exemplo pode demonstrar isso de maneira mais clara. Quando o Ministro CÉSAR PELUSO apresentou o projeto de alteração da Constituição para fazer que a coisa julgada se operasse assim que esgotada a instância ordinária, houve uma grita da comunidade acadêmica, porque isso ofenderia o "princípio da coisa julgada".

Ora, de que princípio superior e divino decorre a afirmação de que a coisa julgada só pode ser constituída após o julgamento em quatro instâncias, duas ordinárias e duas de superposição? Onde está escrito isso? Não está escrito em lugar nenhum do mundo!

Ao contrário, em vários ordenamentos da Europa continental, a coisa julgada se opera justamente no segundo grau. Acabou o segundo grau, transitou em julgado. Não por outro motivo, os recursos extraordinários, na França, por exemplo - e na Itália -, são recursos que hostilizam o quê? Hostilizam a coisa julgada. Só há recurso extraordinário da decisão que transitou em julgado.

Secundus: diz o art. 276 do CPC de 2015: "quando a lei prescrever determinada forma sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa." Ora, como não há essencialidade, poder-se-ia pensar assim: apesar de ser decretação, deve possuir efeitos retro-operantes, se não vai haver um ato que vale na metade no processo e não vale na outra metade.

CALMON DE PASSOS, no livro que escreveu sobre nulidades, já na introdução faz advertências belíssimas quanto ao fato de que a única coisa que nos legitima como operadores do direito, já que a nossa língua é imperfeita, é a precisão terminológica. A nossa precisão terminológica, o nosso não-render ao arbítrio, é que vão fazer de nós, operadores do direito, dignos de legitimação social.

Assim, se o legislador pretendeu, ao tratar o ato judicial de reconhecimento do vício processual, atribuir-lhe eficácia constitutiva-negativa, então deveria encontrar uma fórmula de deixar claro que abandonara a linguagem comunitariamente aceita, que estabeleceu uma espécie de correspondência biunívoca: a nulidade se declara; a anulação se decreta.

Assim não se houve, entretanto, o novo CPC.