O que é a "Common Law", em particular, a dos EUA[1]

 

* Guido Fernando Silva Soares

 

1. Introdução

 

Atividade instigante e extremamente enriquecedora no universo do Direito, entendido como ciência Jurídica, é a comparação entre sistemas jurídicos, que, em geral, se denomina Direito Comparado. Os termos de comparação, tomando-se como referência um determinado sistema jurídico nacional, o qual deve estar plenamente vigente no momento da análise, podem ser considerados em duas grandes perspectivas: a) da sucessividade, no tempo, de dois sistemas, partindo-se do pressuposto de que o direito anterior teria ficado cristalizado, e que o direito tomado por referência, se originou daquele e b) da concomitância de dois sistemas, ambos vigentes no momento da análise, de um lado, o sistema de um país estrangeiro, e de outro, o sistema nacional, que é tomado por referência. No primeiro caso, que melhor seria descrito como um fenômeno de História do Direito, toma-se um sistema vigente em épocas anteriores, e a comparação se faz com a época atual, onde o interesse residiria na evolução histórica de um mesmo organismo normativo, nas suas etapas estanques no tempo; no segundo caso, tomam-se dois sistemas distintos, vigentes em países distintos, num mesmo momento histórico, e as comparações se efetuam, a partir de uma metodologia científica rigorosa, onde apareceriam elementos comuns e os diferenciados.

 

Contudo, o comparativismo jurídico tem outra finalidade, além do simples conhecimento científico de outros sistemas, de outras "famílias" de Direito: a importante tarefa de auxiliar o aplicador do direito, a fazer valer, num sistema jurídico determinado, os efeitos de um instituto jurídico desconhecido neste, e que necessitam ser reconhecidos, ou seja, necessitam produzir seus efeitos no mundo da realidade social, sob pena de cometer-se uma autêntica denegação de justiça e causar-se uma situação de anomia.

 

2. Os Percalços do Comparativismo Jurídico

 

Direito Comparado  é uma expressão enganadora no universo do direito-norma. Os únicos fenômenos normativos que existem entre sistemas jurídicos nacionais, são aqueles oriundos do Direito Internacional Público (com todas as contaminações de "Internacional" que sofram os ramos dos direitos internos dos Estados, como Direito Penal Internacional, Direito Tributário Internacional, etc.), do Direito do Comércio Internacional ou do Direito Internacional Privado, este último, quando tem suas fontes internacionais.

 

Contudo, o “Direito Comparado” tem uma realidade no universo do direito-ciência, uma vez que sempre será possível realizar-se uma comparação de sistemas jurídicos de países diferentes, com metodologia cientifica, estabelecer princípios comuns e diferenciados, inclusive até mesmo uma teoria geral do comparativismo jurídico, (à maneira de uma gramática universal de todas as línguas existentes). No Direito Comparado, o que se tem em mira, é realizar uma comparação e, feita esta, partir para uma dupla tarefa: a) conhecer cada termo, isoladamente, na sua individualidade e especificidade, em cada sistema frente a frente e b) da aproximação de ambos, distinguir os elementos que existem em comum e, a partir do descobrimento de valores comuns, realizar a Comparação. O Direito Comparado deverá propiciar julgamentos de valor do tipo “são equivalentes”, “produzem efeitos semelhantes, dadas as mesmas circunstâncias”, “são equiparáveis, desde que se desprezem tais ou quais elementos factuais”, julgamentos esses que devem propiciar a uma decisão final que, no fundo, residiria em “reconhecer um instituto desconhecido” nos seus efeitos, num determinado ordenamento jurídico.

 

O direito, concebido como um sistema originário da cultura e da civilização de um povo, reflete seus valores, e sendo uma cultura de um povo ou da civilização de uma época, vale enquanto valem os valores inconfundíveis e irredutíveis daquela cultura e civilização. Um paralelismo com as línguas vivas, que igualmente são fruto da cultura e da civilização de um povo, mostra ser totalmente improcedente dizer-se que uma língua viva é melhor ou pior que outra. Engana-se quem pensar que a língua inglesa seria melhor ou pior que a portuguesa, ou que uma seria mais clara do que esta ou aquela, ou ainda, que a língua inglesa seria mais concisa do que o Português; o que importa, em qualquer caso, é saber-se que tanto numa quanto noutra, as idéias são expressas com igual clareza e os valores são transmitidos de pessoa a pessoa. 2

 

Se considerarmos o direito-norma como uma linguagem que se auto-explica, porquanto se destina a ser aplicado no mundo das condutas livres do homem, e o direito-ciência como uma metalinguagem, isto é, uma linguagem que "fala" do direito-norma, poderemos melhor compreender os problemas da passagem de um sistema jurídico nacional para outro. O direito-norma tem necessariamente de ser expresso na língua do povo que o criou (ao usar a única língua que dela se utiliza no seu dia-a-dia) mas que, no entanto, na maioria das vezes, pode ser igualmente uma língua de outros povos, como o português, o espanhol, o inglês, ou o francês, caso em que poderá  haver significativas variações dentro do mesmo universo lingüístico3. Contudo, o direito-ciência pode ser expresso em qualquer língua, inclusive naquela do povo que criou o objeto da análise, e, no caso de ser esta uma língua comum a outros povos, haverá  necessidade de explicações das citadas variações lingüísticas, caso se explique, com a mesma língua, sistemas jurídicos nacionais de povos distintos, que falam o mesmo idioma!

 

O Direito Comparado vai além do campo da Lingüística. Quem faz Direito Comparado, além de buscar sinonimias ou traduções, procura equivalência de significados, tanto numa tradução linear, quanto nos resultados de atribuição de sentido a palavras e criação de institutos complexos!

 

O português aparece utilizado como metalinguagem na apresentação de outros sistemas.

 

Quando linguagem e metalinguagem se confundem na mesma exposição de idéias o empreendimento resulta em obra de grande precisão e desnecessidade de explicação de termos. Neste particular, o comparativismo perde em muito, pois, se trata de continuar-se num mesmo sistema, tautologicamente descrevendo o mesmo fenômeno. Contudo, quando se tem de utilizar uma metalinguagem distinta daquela da língua explicada (leia-se: uma compreensão do mundo jurídico estrangeiro, a partir de uma visão de outro sistema distinto do analisado), há  duas operações envolvidas, como no caso do presente trabalho: a)  a explicitação na metalinguagem, o português do Brasil (e não de Portugal, porque se trata de linguagem técnica), dos institutos jurídicos norte-americanos e b) a explicitação em português (igualmente do Brasil) da exata ou aproximada correspondência dos institutos norte-americanos com os existentes no direito brasileiro. Trata-se, assim, de duas traduções: a tradução-explicitação e a tradução-equivalência!

 

Para evitar que o presente estudo se torne uma enciclopédia repleta de rodapés explicativos das nuanças dos termos, iremos usar e abusar de aspas e parênteses, e dos itálicos e negritos. Inexiste, de nosso conhecimento, um dicionário confiável inglês-português de termos jurídicos. Utilizamos o Black's Law Dictionary4 e o Jowitt's Dictionary of English Law5 , recomendados, respectivamente para o Direito norte-americano e para a Common Law  da Inglaterra, ambos inglês-inglês (portanto de tradução-explicitação).

 

3.  Notas Introdutórias sobre os Grandes Sistemas de Direito

 

O Direito Comparado, como ciência de comparação dos sistemas jurídicos, tem agrupado os diversos ordenamentos jurídicos nacionais, em grandes conjuntos, que a prática tem denominado de “famílias de direitos”. O critério para tal agrupamento tem variado, segundo podem variar as concepções dos autores, em razão das classificações que adotam.

 

Uma classificação bastante útil parece-nos a do Professor René David6 , na qual se reuniram os subsistemas de direitos nacionais, nos seguintes sistemas ou famílias:

 

a) o sistema romano-germânico, que os autores ingleses e norte-americanos do sistema da "Common-Law" denominam "civil law", família essa na qual se encontra o Direito brasileiro;

 

b) o sistema da "Common-Law", que, conforme ser  esclarecido mais além, não deve ser confundido com "sistema inglês" (porque se aplica a vários países, embora nascido na Inglaterra), nem com "britânico" (adjetivo relativo a Grã-Bretanha, entidade política que inclui a Escócia, país que pertence ao sistema da família romano-germânica), nem com anglo-saxão (porque este adjetivo designa o sistema dos direitos que regiam as tribos, antes da conquista normanda da Inglaterra, portanto, anterior à criação da "Common Law" naquele país);

 

c) o sistema dos direitos socialistas, realidade que necessitaria de uma leitura histórica na atualidade, e que incluía os países da antiga Europa do Leste, capitaneados pela URSS, e que acabaram por abandonar o mesmo, a partir da re-arrumação da Europa, após a Queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da citada URSS. Sua nota principal reside na forte e inescapável presença de fatores ideológicos e leigos no sistema jurídico, os quais perpassam por todo ele, não só em termos de interpretação teleológica de quaisquer institutos jurídicos (concepções típicas da participação popular na feitura do direito), bem como na emergência de institutos desconhecidos em outras famílias de direito, que acabam por negar a existência de outros institutos, como a propriedade privada dos bens de produção. Encontram-se em tal família de direito, o direito da República Popular da China e o de Cuba;

 

d) outras concepções da ordem social e do direito, com forte e decisiva influência de fatores religiosos, como o direito muçulmano, indiano, direitos do Extremo Oriente, direito judaico, direitos da África e de Madagascar. Em tal família de direitos, em determinados países, a principal fonte das normas jurídicas nacionais (Irã, Iraque), reside em textos religiosos e nas interpretações oficiais conferidas por líderes religiosos reconhecidos como autoridades aptas a definir as normas jurídicas. Em outros sistemas nacionais, as normas jurídicas assim definidas, passam a ser relevantes para determinados ramos do direito privado, em particular, em matéria de família, permanecendo os demais campos, ora na família romano-germânica (Israel e Líbano) ora na "Common law" (Índia, Paquistão).

 

De tal classificação, no presente estudo, interessa o contraste entre, de um lado, o sistema romano-germânico e, de outro, a "Common-Law", dadas as peculiaridades de cada família de direitos. Na verdade, o contraste entre ambas as “famílias de direito” que permite uma certa sistematização no Direito Comparado. Além do mais, prestigiar-se um estudo comparativo de ambas as famílias, estaria justificado pelo fato de a elas pertencerem a maioria dos sistema jurídicos nacionais da atualidade. O direito norte-americano, com exceção do Estado da Luisiana, é  considerado como um direito da família da "Common Law" misto, ou seja, pertence àquela família, mas sintonizado muito perto da "Civil Law" (compare-se com o direito da Escócia, considerado da "Civil Law" misto, ou seja parente do direito brasileiro, mas muito perto da "Common Law").

 

4. O Sistema Romano-Germânico

 

A descrição da família romano-germânica, (a "Civil Law",  conforme a denominam doutrinadores ingleses e norte-americanos), deve ser  feita com um propósito deliberado: apontar os elementos que permitam comparação com a "Common Law". Na verdade, comparar, em Direito Comparado, deve ser uma atitude racional, determinada por critérios metodológicos funcionais, de tal maneira, que não se tenham dois quadros estanques, pintados por pintores diversos, mas se possa ver, nos dois quadros, a mesma mão do pintor, que é o homem em sociedade, que ao pintá-los deixou sua marca personalíssima em ambos, conquanto tenha feito obra totalmente distinta uma da outra.

 

Fato marcante na infância da família romano-germânica, foi a compilação e codificação do Direito Romano, que acabaram por cristalizar, em textos harmônicos, as antigas normas costumeiras, as normas escritas esparsas saídas de decisões de autoridades, as normas contidas em decisões jurisprudenciais e doutrinárias, juntamente com a obra dos glosadores que, aos poucos foram, em particular nas universidades medievais, (que vicejavam à sombra dos  cultores do Direito Canônico), dando uma feição racional às soluções casuísticas e assistemáticas dos jurisconsultos romanos. Na sua gênese, portanto, nota-se a preocupação com uma ordem racional de conceitos, aparecendo o direito como um sistema: um conjunto de preceitos que deveriam estar agrupados, tal qual um organismo vivo. Mesmo que se reconhecesse a máxima do Direito Romano de que "ex facto oritur jus", o direito, em tal família, sempre foi concebido como uma criatura conceitual perfeita, um modelo de justiça racional a ser atingido, a estrutura basilar de uma sociedade ideal, à  qual a sociedade real e existente deveria ser conduzida. Note-se que, mesmo que os fatos não correspondessem ao ideal do direito, este teria sua precedência sobre os fatos.

 

De tal postura, nascida do exame erudito dos autores considerados aceitos (vide a Lei das Citações do Imperador Valentiniano, 426 d.C.), com a conseqüente fixação na forma de preceitos escritos, os brocardos, até a reunião, por eruditos, de normas esparsas, em códigos, ordenados pelos governantes (e são vários, ao lado da codificação do Imperador Justiniano, os Rôles d'Oléron, as Siete Partidas...); perpassando pela autoridade dos reis ou outros poderes legiferantes, o sistema já  marcava sua presença na história das civilizações: a preocupação com a lei escrita, onde deveria haver uma sistematização de princípios gerais, em detrimento de particularismos. Em tal universo geométrico, a dedução, também denominada "silogismo", foi o método exegético empregado, copiando dos estudos universitários medievais, o rigor lógico de sua apresentação formal, até mesmo com o exagero de se dizer que a verdade é somente a proposição que formalmente se conclui ou se infere por um raciocínio bem construído, de acordo com a Lógica Menor!

 

Nas universidade medievais, estudantes e professores, antes estavam preocupados com a racionalidade e logicidade do sistema, do que com os reais efeitos da aplicação da norma jurídica, (que era sempre uma proposição abstrata e geral), na vida corrente da sociedade. As construções silogísticas foram apuradas, e seus edifícios lógicos se tornaram de tal sofisticação7, que seus processos mnemônicos fariam as atuais linguagens dos "softwares" hoje disponíveis, parecer jogos infantis.

 

No sistema da família romano-germância dos direitos, o verdadeiro fantasma a ser evitado era e, de certa forma, continua sendo o casuísmo na lei. A certeza da existência e do conteúdo da norma que o direito escrito apresentava, bem como a busca das generalidades racionais que o conjunto normativo (códigos) representava, fizeram com que a "glosa judiciária" (jurisprudência casuística) fosse afastada, em favor da "glosa erudita" (a doutrina) e que tanto o costume geral (os usos e costumes do povo), como o assim dito "costume judiciário" (a jurisprudência) fossem desprezados, em benefício da lei escrita  e da doutrina dos jurisconsultos. Sempre que possível, as normas escritas deveriam estar reunidas em conjuntos harmônicos e racionais, os códigos.

 

Por mais que se queira atribuir um papel importante de fonte formal do direito à jurisprudência dos tribunais, o conceito corrente na "Common Law" de uma regra tipo "judge-made law", vai ter uma aceitação sujeita a críticas das mais ferozes por parte dos doutrinadores, na "Civil Law", sobretudo após a doutrina da separação dos poderes à la Montesquieu. Na verdade, Montesquieu adaptaria a teoria do inglês John Locke da separação dos poderes; para este, Executivo, Legislativo e Federativo (ou seja, muito mais preocupado com as relações de equilíbrio entre o Executivo e Legislativo, sendo o Poder Federativo aquele referente ao direito da representação exterior do Estado, de fazer a guerra, que deveria estar controlado pelo Legislativo) deveriam estar separados (o que já  se verificava na Inglaterra do tempo, em certa medida e o que Locke preconizava, era uma separação declarada e fixada por princípios imutáveis); o importante era controlar o rei (e menos os juizes, que faziam a lei). Na teoria de Montesquieu, qualquer veleidade de dar-se aos juizes o poder de fazer a lei, seria ir contra o postulado da separação dos poderes. Reforça-se, assim, a concepção piramidal do direito no sistema romano-germânico: o Judiciário constitui um poder que tem atributos dos mais amplos, não sendo controlado por nenhum dos outros dois, mas não tem iniciativa e a força de suas decisões se encontra limitada pela "res judicata"; as generalizações somente são permitidas, a partir de casos julgados, só numa matéria "sub judice" e sem qualquer possibilidade de criar precedentes, ou seja, de imporem-se a casos semelhantes no futuro, pela sua própria efetividade.

 

Com a formação dos Estados modernos, onde emerge a figura primordial do legislador leigo e centralizador da função de elaborar o direito, o sistema dos direitos romano-germânicos ganha sua feição atual, com temperamentos de considerar-se como legislador, não mais o rei, mas o povo. O Judiciário passa a ser uma instituição unificada, seja na época do Estado absolutista, seja no Estado democrático, e suas funções passam a ser personalizadas em figuras leigas, funcionários do Estado; não mais se admitem jurisdições eclesiásticas, (que se recolhem a assuntos de direito canônico, restritos "ratione personae" e "ratione materiae") sendo dado que a jurisdição se define como uma atividade eminentemente civil e aberta a quaisquer pessoas, e que as jurisdições estamentais, passam a se configurar como jurisdições permitidas, da mesma maneira que se permite a liberdade contratual (a arbitragem comercial se transforma em soluções negociais entre as partes e perde seu caráter de obrigatoriedade e de força coativa, ao lado das soluções judiciárias típicas).

 

O pensador que melhor caracteriza o sistema romano-germânico é Hans Kelsen: o direito é concebido como uma construção escalonada (Stufenbau), tão racional e geométrica, que por isso mesmo, tem a forma de uma pirâmide, no  ápice da qual se encontra uma norma fundamental (Grundnorm), a partir da qual, as normas menos gerais, retiram sua eficácia, e vão perdendo sua generalidade, até aquelas normas colocadas na base, (os contratos e as sentenças) onde o princípio geral tem sua eficácia, após percorrer outros campos de particularismos crescentes (a constituição, a lei ordinária, o artigo...).

 

Os perigos em tal tipo de sistema se referem ao culto desmesurado à lógica formal e à racionalidade da construção dedutiva, tida como válida, por seu próprio rigor arquitetural; a norma é por ela mesma válida, porque uma construção racional e coerente, aplicável a partir de um rigoroso raciocínio abstrato, mas com um acentuado desprezo pelos resultados, na vida corrente. Efetividade, no sentido da atuação da norma na realidade do dia a dia, é preocupação de certa maneira, secundária. Um exemplo típico residiria na própria filosofia que preside certas posturas: no Direito Penal, ou mesmo no campo das reparações em matéria cível, há uma desmesurada preocupação em definir a tipologia dos ilícitos, em função da gravidade abstrata do dano à sociedade, em detrimento de uma postura de definirem-se os tipos, a partir dos remédios pretendidos pelo legislador. Ao aplicar a norma, o intérprete do Direito Criminal da "Common law" ou mesmo dos tipos da responsabilidade civil por danos criminais ou não criminais (os “torts”), as figuras jurídicas são descobertas a partir dos resultados que se pretende, ou seja, dos remédios buscados e menos pela tipologia abstrata dos institutos.

 

Contudo, se há tais perigos, há suas soluções. A eqüidade, aquela virtude de temperar o rigor da lei, que força tanto o legislador quanto o juiz a lembrar-se que o direito constitui uma construção que tem sua validade na medida em que realiza os valores transcendentais da justiça (o suum cuique tribuer), frontalmente proíbe que se satisfaça o disposto na lei, se houver ofensa à idéia magna da realização da justiça. Por outro lado, conforme se caminha nas complexidades do direito moderno, há outras maneiras de temperar o distanciamento do sistema da realidade dos fatos, como provam, no Brasil, a exemplo, as discussões sobre a possível emergência das súmulas vinculantes e da possibilidade de recursos para harmonizar a jurisprudência do mesmo tribunal ou de tribunais inferiores. Nenhum advogado praticante irá  negar a importância de um arquivo de jurisprudência dominante nos vários assuntos de seu interesse e, qualquer acadêmico de direito sabe da importância do conhecimento da jurisprudência como um dos mais poderosos instrumentos na aplicação do Direito. De qualquer forma, o casuísmo (doença da casuística) constitui o grande mal que o sistema romano-germânico teme, de tal forma, que mesmo a higidez do estudo de casos‚ é de certa forma, evitado, ou pelo menos, olhado com suspeição de vir a causar caos no edifício geométrico e piramidal.

 

5. Os sentidos da expressão "Common Law"

 

Iinteressante observar como, por vezes, o objeto analisado influi na escolha da metodologia da análise. Esta, que pretendemos fazer, deveria, após os esclarecimentos iniciais, começar por definir "família de direitos" ou "família de sistemas jurídicos", numa das quais, se situa a Common Law, em comparação com o sistema brasileiro. Assim deveria proceder um analista formado na tradição romanística, de conceber o Direito como um sistema racionalmente coerente e bem ordenado, a partir de conceitos gerais, ideais e típicos (muitas vezes tão abstratos que refogem  à sua praticidade), em direção a particularidades. Antecipando conceitos que serão avançados mais além, diremos que a Common Law constitui uma "família de direitos",         à qual pertence a maioria dos direitos dos Estados da Federação norte-americana, em contraste com a "família dos direitos romano-germânicos",  à qual se filia o Direito brasileiro. Contudo, daremos preferência a um enfoque na formação histórica da Common Law, de raízes profundamente pragmáticas e despregadas de qualquer compromisso com modelos abstratos e, influenciados pelo método indutivo, começaremos pelo particular. Em tal tarefa, para melhor estudar os sentidos da expressão Common Law, faremos referência a conceitos em relação aos quais existe um outro conceito, cujo contraste permite uma explicitação dos significados daquele.

 

5.1. Common Law e Equity Law

 

A primeira acepção de Common Law é a de um "direito comum", ou seja, aquele nascido das sentenças judiciais dos Tribunais de Westminster, cortes essas constituídas pelo Rei, na sua tarefa de impor uma lei comum a toda Inglaterra; tais cortes estavam subordinadas diretamente ao Rei, e suas decisões acabaram por suplantar os direitos costumeiros e particulares de cada tribo dos primitivos povos da Inglaterra (este, portanto, antes da conquista normanda em 1066, denominado direito anglo-saxônico) 8 . Ao direito denominado Common Law, haveria um outro direito, a Equity, sistema jurídico emergente das decisões dos Tribunais do Chanceler do Rei, originado de uma necessidade de temperar o rigor daquele sistema e de atender a questões de eqüidade.

 

Após a conquista normanda da Inglaterra, o direito que os Tribunais de Westminster criavam, era denominado common law (corruptela da expressão dita na língua do Rei: commune ley) em oposição aos direitos costumeiros e locais dos primitivos habitantes, aplicados pelas County Courts, e que logo seriam suplantados. A distribuição da justiça era considerada como uma prerrogativa real, que os reis outorgavam a funcionários, os judges, que perambulavam pelo reino (a idéia de circuit que permanece na denominação de alguns tribunais nos EUA e da Inglaterra, como circunscrição delimitativa de jurisdição de um tribunal), na sua tarefa de representar o Rei. À semelhança dos praetores do Direito Romano da época formular, os judges ouviam as queixas e davam (ou antes, "vendiam", no sentido de pagamento por um serviço público, de custas processuais) um writ9, que era uma ação nominada e com fórmulas fixadas pelos costumes e que correspondia à obtenção de um remédio adequado à situação. A idéia do writ era de que se constitua numa ordem dada pelo Rei às autoridades, a fim de respeitarem, em relação ao beneficiado que obtinha o remédio, sua situação jurídica, definida pelo julgamento a seu favor. Se não houvesse um writ determinado para a situação, não haveria possibilidade de dizer-se o direito.  Concedido o writ, posteriormente, um jury composto de leigos, em certos casos, julgaria as pretensões da pessoa beneficiada pelo writ (à semelhança do judex no processo formular romano), em razão de determinar os fatos, em função da norma predeterminada; a decisão dos jurors era denominada finding10 .

 

Enquanto os juristas da Europa continental da época esforçavam-se por determinar as regras do direito material (as regras de fundo), na Inglaterra elaboravam-se as regras quanto às possibilidades de obterem-se as ações processuais; obtidas essas, quanto ao julgamento sobre o direito contestado, não havia a menor previsão ou a menor preocupação. Na expressão da época: remedies precede rights (os remédios têm precedência aos direitos subjetivos). O sistema era  pesado, a ver-se pelo fato de que dos 56 writs existentes em 1227, seu número somente em 1832, ser  elevado para 72, data em que o sistema seria profundamente reformado. Contudo, por analogia,  concediam-se writs para situações novas. A exemplo: inexistia um writ determinado para os contratos; contudo, por um writ of detinue, destinado a beneficiar um possuidor de boa fé, protegia-se quem detivesse sem justo titulo uma propriedade, portanto, quem detivesse a coisa sem ter um contrato que legitimasse a posse; ou ainda o writ of trespas, que servia para proteger um dano causado por ato ilícito, seria aplicado, analogicamente, para proteger um contratante que tivesse sido prejudicado pela inadimplência do contrato. Note-se que não havia maneira de fazer cumprir-se compulsoriamente o contrato: inadimplido, partia-se para perdas e danos.

 

Tal sistema, formalístico e rígido, logo deveria sofrer radicais modificações, premido pelos fatos das patentes injustiças; os recursos ao Rei, fora das regras processuais da Common Law, aos poucos, se tornam possíveis, sendo que o Rei os decidia em matéria de consciência e não mais por motivos estritamente jurídicos. Um eclesiástico, (ao tempo em que ainda não existia a Reforma Anglicana, portanto católico e altamente influenciado pelo Direito Canônico da época), o confessor do rei, o Chanceler, cognominado the keeper of the king's conscience, passaria a conceder certas medidas, que aos poucos, foram-se estendendo, não mais em recursos de decisões, mas para o  conhecimento originário das causas. A freqüência de tais procedimentos excepcionais, sempre concedidos quando não houvesse um writ da Common Law, fez com que se firmasse a prática de uma verdadeira justiça paralela às Courts of Westminster, com uma linguagem própria, seus precedentes próprios, e que acabariam por constituir um corpo de decisões judiciais elaboradas pelos tribunais do Chanceler:  as Courts of Chancery. Estas, aos poucos, acabaram por rivalizar-se com as Courts of Westminster, e, ao lado da common law, aos poucos foi-se firmando uma jurisprudência paralela, cujo conjunto passou a ser denominado:  Equity. As "Courts of Chancery" apoiavam-se nas normas do direito canônico, mais evoluídas e racionais que o casuísmo dos procedimentos da Common Law. Por várias razões históricas, a Equity teve um desenvolvimento portentoso naqueles períodos em que o Rei, por questões de guerras internas (a ex.: a Guerra das Duas Rosas) se encontrava na impossibilidade de reunir seu Conselho e julgar os recursos em matéria de Common Law, ganhando, assim relevância a figura do Chanceler e de sua justiça. Com a Reforma Anglicana de Henrique VIII (e relembre-se a aguda oposição entre este e seu Chanceler, Thomas Moore, posteriormente santificado pela Igreja Católica), consagrou-se em norma escrita um costume, anterior à Reforma, de o Chanceler passar a ser um cargo ocupado não mais por um eclesiástico. Conquanto na época a Equity  se encontrasse afastada do direito canônico e em ritmo de desenvolver suas regras próprias, por outro lado, já  se encontrava contaminada pelo mesmo formalismo da Common Law, sendo ambos os sistemas dominados pela regra do stare decisis11  (coisa julgada) ou seja, de que o direito é  revelado a partir da atuação do juiz (portanto,  tanto a commom law quanto a equity seriam uma judge-made law). Finalmente, os Judicature Acts de 1873 e 1875 suprimiram as Courts of Chancery passando a competência de aplicação, tanto da Common Law, quanto da Equity, aos tribunais comuns na Inglaterra.

 

Mesmo unificados os órgãos de aplicação da Common Law e da Equity, ambos os subsistemas conservaram suas características originais e suas regras próprias; o principio, que sempre foi dominante e que, em certa medida continua, tanto na Inglaterra como nos EUA, é de que a utilização da Equity só é possível, quanto inexistir remédio na Common Law. Na atualidade, tal princípio nem tanto quer significar a aplicação da Common Law ou da Equity em função do remédio pretendido, mas muito mais pela classificação do instituto jurídico neste ou naquele direito12 .

 

Hoje, na Inglaterra, pertencem ao domínio da Common Law as seguintes matérias: o direito criminal, todo o direito dos contratos (originário na Equity) e o da responsabilidade civil (torts), nos quais se especializaram os common lawyers, e no qual a atuação do jury é de sua essência. Ao domínio da Equity, pertencem as matérias relacionadas aos direitos da real property13 , dos trusts (contratos fiduciários, pelos quais o settlor transfere uma propriedade móvel ou imóvel para o trustee para que a administre em favor de um beneficiário, o cestui que trust) das sociedades comerciais, das falências (bankruptcy) das questões de interpretações de testamentos e da liquidação de heranças14 .

 

Embora na Inglaterra permaneça um contraste entre common lawyers e equity lawyers, mais pelo estilo de atuação, a unificação dos órgãos judiciários permite hoje afirmar que a diferença entre Common law e Equity, se prende mais às tipicidades dos institutos abrigados em um ou outro ramo do direito, submetidos a interpretações judiciárias próprias.  Uma ilustração interessante de como funciona a Equity pode ser dada pela emergência da denominada doutrina da piercing the corporate veil (desconsideração da personalidade jurídica). Para ter-se acesso aos bens dos sócios e evitar a fraude a credores, num procedimento falimentar, em particular, na obtenção de uma concordata; segundo a teoria da Equity, das clean hands (quem vem solicitar um benefício ao juiz, deve vir de mãos limpas, ou seja, quem solicita uma concordata judicial deve estar de boa fé), é permitido desconsiderar-se a personalidade jurídica e trazer os bens dos sócios para o patrimônio em discussão (e não a mera colação de bens da sociedade), na medida em que se prove ter havido fraude aos credores.

 

Os EUA receberam a Equity no momento histórico em que as oposições Common Law versus Equity  se encontravam esmaecidas. Nos EUA inexistem common lawyers e equity lawyers e, desde a unificação em 1938 (na justiça federal), as actions at law e os suits in equity  se encontram reunidas no que se denomina as civil actions.

 

Embora unificados na civil action, os procedimentos de Common law e da Equity guardam nos EUA importantes traços diferenciadores. Nos procedimentos triable at law, nos quais se buscam common law reliefs, é possível, como regra, o julgamento, tanto nos processos civis, quanto nos criminais, pelo jury; o processo é inflexível, sendo que os remédios oferecidos resultam sempre numa indenização em dinheiro (award of money damages). Já  nos procedimentos triable in equity, os equity reliefs, se traduzem em operações contra a pessoa do réu, não mais condenações em dinheiro, mas em injunctions, ordens judiciais de fazer ou deixar de fazer (specific performanc"), multas compensatórias ou prisão, sob sanção por desrespeito a uma ordem judicial (contempt of court). Nos procedimentos da equity, verifica-se a ausência do jury, bem como maior alargamento dos julgamentos em recurso (wider scope of review on appeal). Em geral, as questões disputadas que pertencem à equidade (equitable issues) são julgadas pelo juiz togado, e as questões que pertencem à Common Law (legal issues) são julgadas pelo júri; nos conflitos para determinar-se se uma questão (issue) é de Equity ou da Common Law, resolve-se como um equitable issue, pelo juiz, sem a participação de um júri.

 

Alguns Estados da federação norte-americana ainda conservam tribunais unicamente dedicados aos julgamentos em equity. Montana tem uma codificação da Equity Maxims, no seu Revised Code, Chapter 49". Curiosa esta codificação, porque a característica fundamental que distingue a família dos direitos do sistema da "common law", face à família romano-germânica, é  resistência à codificação (statutory law) e entre as normas da Equity e da Common Law, estas últimas talvez fossem as que mais se prestariam à transformação em direito escrito, dado seu maior formalismo!

 

5.2. Common Law e Statute Law

 

O segundo sentido de common law, se refere ao contraste existente entre, de um lado, a common law, o direito criado pelo juiz (judge-made law) e, de outro, o direito criado pelo legislador postado fora do Poder Judiciário (statute law). Neste segundo sentido, de judge-made law, Common Law opõe-se a Statute Law, entendido este direito, como aquele resultante dos enactements of legislature (tratados internacionais, nos EUA, a constituição federal escrita, as constituições estaduais, leis ordinárias federais e estaduais, regulamentos administrativos federais, estaduais e locais, leia-se: municipais, inclusive os diplomas legislativos elaborados pelo Poder Judiciário, como o Code of Civil Procedure, elaborado pela Corte Suprema dos EUA). Na segunda acepção de common law, deve-se entender como o direito laid down by the courts, rather than by legislature. O contraste é igualmente expresso com os conceitos: case law versus statute law, entendendo-se como case, o precedente judiciário, o judge-made law15 . O case law não se confunde com o decisional law, que, embora possa ter a metodologia do estudo e aplicação dos precedentes, em analogia com os julgados pelo Judiciário, refere-se às decisões em matéria contenciosa pelos tribunais administrativos ou outros órgãos judicantes do Executivo (administrative courts, no sentido de "justiça de órgãos quasi-judiciários do Executivo e não no sentido de "justiça administrativa"16 ).

 

É igualmente necessária prudência na tradução da palavra "legislador", conforme empregada no sistema jurídico brasileiro, (menos que suas correlatas como "legislativo", "legislatura"), quando se analisa a Commo Law. Naquele sistema, "legislator" aplica-se tanto aos órgãos do Poder Judiciário, como os do Legislativo e do Executivo! A oposição que se pretende dar entre a típica atividade do Judiciário naquele sistema e os outros órgãos legiferantes, deve ser case versus statute, como nas expressões: "uma solução dada por um case, outra por um statute; um case relief ou um statutory relie" (remédios previstos na jurisprudência ou na lei escrita).

 

Outro esclarecimento necessário é do uso da palavra court  para designar o lugar e a atividade do Poder Judiciário; refere-se ela tanto ao juiz singular de 1º grau (original court) quanto aqueles de 2º ou 3º graus, portanto, ao que designamos como tribunais (appellate courts). A palavra  inglesa "tribunal" é  reservada para designar, usualmente, o  árbitro ou o colégio arbitral ("arbitral tribunal"). Vara se traduz, em geral por "division" e turma por "panel" ou por "bench". Nos EUA,  tribunal pleno é "full court" ou "en bench" ou ainda "en banc" e foro se traduz por "venue" .

 

Embora seja o case law a principal fonte do direito, pode ele ser modificada pela lei escrita, que, nos EUA, lhe é hierarquicamente superior; diz-se então que um "case" foi "reversed by statute".  Portanto, é  inexato dizer-se que na "Common Law" os juizes não aplicam um "statute law", enquanto não houver um "case", no qual seja o mesmo decidido. Trata-se de uma questão  de método:  enquanto no nosso sistema a primeira leitura do advogado e do juiz é a lei escrita e, subsidiariamente, a doutrina e a jurisprudência, na "common law" o caminho é o inverso: primeiro os "cases" e, a partir da constatação de uma lacuna, vai-se à lei escrita (“statute”) . Na verdade, tal atitude reflete a mentalidade dominante na Common Law: o "case law" constitui a regra e o "statute" é o direito de exceção, portanto integrativo. Neste particular, a diferença entre o Direito inglês e o federal norte-americano torna-se fundamental: a Inglaterra, que consideramos uma "Common Law" mais pura, desconhece a primazia de uma constituição escrita e que é colocada numa organização jurídica piramidal (à la "civil law"), nem tem ela idéia da primazia dos "statutes", tais as constituições estaduais do sistema federativo norte-americano, igualmente direito escrito, constituições estaduais essas que se colocam no  ápice da lei estadual, que nos EUA é a maioria das disposições normativas. Nos EUA os precedentes judiciários segundo os "case law" dos Estados, são a regra, e as decisões baseadas na lei federal são aquelas intersticiais, mas fique desde já anotado que nos EUA (por tratar-se de um sistema misto entre a "Common Law" e "Civil Law") permanece o traço característico do sistema: o "judge-made law".

 

É necessário considerar-se o crescente intervencionismo do Estado na vida da sociedade: a implantação do Welfare State, tanto nos EUA como na Inglaterra, tem trazido alterações no sistema tradicional. A Common Law pura seria aquela existente na Inglaterra, antes da Rainha Victoria, anterior à revolução industrial. No caso da Inglaterra  é mister ter-se  presente sua ativa participação na Comunidade Européia e na União Européia,  onde existe um direito escrito elaborado por legisladores supranacionais, e que por decisões reiteradas da Corte da Comunidade Européia, tem vigência imediata na ordem jurídica interna, revertendo-se as prioridades que os intérpretes e aplicadores ingleses do direito local, tradicionalmente, praticam.

 

Outra consideração é de saber-se até que ponto o juiz (melhor dito: os tribunais superiores) cria ou revela o direito preexistente. Na Civil Law a discussão tem sua importância, dada a concepção vigente da separação dos Poderes, na maioria dos países da família dos direitos romano-germânicos.  Na Common Law o assunto também foi ventilado, mas hoje prevalece a teoria de que o juiz verdadeiramente cria o direito (donde a prudência na utilização do termo "legislador" quando se estuda a "Common Law"!).

 

Nos EUA, como na Inglaterra, o ponto fulcral do sistema, é a doctrine of stare decisis, também chamada doctrine of precedents.  A melhor tradução para "doctrine", no presente contexto, seria "regra"; doctrine of precedents seria, em português: "regra do precedente". Precedente pode ser definido como a única ou vá rias decisões de um appellate court,  órgão coletivo de segundo grau, que obriga sempre o mesmo tribunal ou os juizes singulares que lhe são subordinados. Nos EUA, a organização federal e a independência dos Estados federados (fala-se numa State sovereignty soberania dos Estados-membros) vêm trazer algumas complicações à jurisdição, permanecendo a norma de que são obrigatórios os precedentes conforme julgados pelos tribunais superiores (os julgados das inferior courts of original jurisdiction, órgãos de primeiro grau, não constituem precedents).

 

Uma decisão que se tenha constituído em regra importante, em torno do qual outras decisões gravitam, se denomina um leading case, que passa a ser determinante para o estudante e o advogado, como primeiro approach na solução de uma questão prática. Em matéria de torts o leading case é Babcock v. Jackson; em matéria de direito constitucional da competência revisional da Corte Suprema sobre a legislação estadual, o leading case é  Marbury v. Madison; em matéria de competência para decretação de divórcio, há  dois casos Williams v. North Carolina (I) e Williams v. North Carolina (II), que estudantes e advogados citam como Williams-I e Williams-II.

 

Uma judicial decision tanto na Inglaterra, como nos EUA, tem uma dupla função:

 

a) decide o caso sub judice e faz coisa julgada (res judicata é expressão corrente nos EUA), dizendo os doutrinadores dos EUA, que assim se cria o direito, como o faz o legislador, porém limitado às questões em controvérsia (issues) e às partes. Neste particular, nada de diferente existe quanto ao sistema romano-germânico, no relativo aos efeitos da coisa julgada material, salvo no que diz respeito ao poder de "criação" de direito por parte do juiz;

 

b) tem um efeito além das partes ou da questão resolvida (e aqui reside a tipicidade da Common Law), pois cria o precedente, com força obrigatória para casos futuros. O precedente não é uma regra abstrata, mas uma regra intimamente ligada aos fatos que lhe deram origem. Por tal motivo, o conhecimento das razões da decisão e seu íntimo relacionamento com os fatos discutidos, torna-se imprescindível. A exemplo, as regras contidas num case que envolveu uma anulação de casamento, não tem qualquer serventia para resolver questões relativas a divórcio, ou a questões sobre contratos entre esposos ou obrigações alimentícias, embora possam ser bastante semelhantes.

 

O Prof. E. Allan Farnsworth aponta as razões da vitalidade da "Common Law" nos EUA, que, no fundo, são as qualidades do sistema:  1o ) "equality" (possibilidade de que, em futuros casos iguais ou semelhantes aos julgados, a solução tender  a ser a mesma); 2o) "predictability" (virtualidade de que futuros casos com elementos factuais semelhantes ao julgados, serão julgados da mesma maneira, o que permite ao advogado, em particular o consultor, melhor aconselhamento de seus clientes na prevenção de futuros pleitos);  3o)  "economy" (o que denominamos economia processual, uma vez que já    "issues" decididos, as matérias novas serão resolvidas com mais rapidez);  4o) "respect" (soluções que dão grande responsabilidade, pela sua força suasória, ao próprio Poder Judiciário).

 

Mister se faz explicar, inda que por alto, como funciona a "doctrine of precedents", tendo-se, contudo, em mente, como adverte o referido Prof. Farnsworth, que o sistema é altamente sofisticado e prático, e, sobretudo que não se aprende a andar de bicicleta com a leitura de um manual sobre mecânica!

 

Explicar-se a aplicação de uma norma geral a um caso particular, como no sistema do direito brasileiro (partir do geral ao particular), parece ser bem mais fácil do que explicar a metodologia de partir de vários casos particulares para outros particulares, através de generalizações parciais, sem sair do contexto! A experiência pessoal mostra que, para alguém formado no sistema da "Civil Law", os primeiros passos na metodologia dos "cases law" parece embaraçosa, com a impressão de caminhar-se num campo caótico; no entanto, à medida em que se vai familiarizando com o sistema, ele se torna interessante e instigante. Na verdade, para o estudante é muito difícil, mesmo no nosso sistema, entender, pela pura teoria, as v árias colorações conceituais da linguagem jurídica, que mostram as sofisticações dos institutos jurídicos; contudo, se alguém já  tiver trabalhado em um caso prático, se tiver vivenciado uma questão igual ou assimilável à que tem de ser resolvida, o caminho é, certamente, mais f fácil. Esta a vantagem dos precedentes: um arquivo da micro-história das relações conflituais humanas, com as soluções que tal micro-história já formulou; um formulário já pronto, que se preenche com modificações factuais. A dificuldade maior residiria, portanto, saber se existe tal formulário e onde encontrá-lo!

 

A autoridade (authority), a força de impor-se a futuros casos dos case law, segundo a doutrina, pode ser dividida em duas classes:

 

a) persuasive, em geral de decisões de cortes de jurisdição paralela (nos EUA, a mesma jurisdição federal, em outros Estados federados, ou cortes dos Estados, que aplicam a mesma norma, estadual ou federal), ou de votos vencidos ou minoritários da mesma corte ou de cortes superiores em determinados assuntos (as cortes de Dellaware, especializadas em corporations e direitos de arena, ou as de Nova York, especializadas em comércio exterior), quando invocadas em outros Estados;

 

b) binding authorithy, as decisões das cortes superiores de mesma jurisdição, ou as decisões da mesma corte.

 

Nas decisions que criam precedentes, na common law dos EUA, é necessário distinguir o que é um holding (na Inglaterra: ratio decidendi) de um dictum (proveniente da expressão obiter dictum). Considera-se holding tudo o que foi discutido e argüido perante o juiz e para cuja solução, foi necessário "fazer" (criar/descobrir) a norma jurídica; reafirme-se, assim, a importância do conhecimento dos facts of a case, aos quais a norma jurídica está  ligada. Dictum é tudo o que se afirma na decision, mas que não constitui elemento decisivo para o deslinde da questão e, embora seja meramente persuasive, tem importância suasória para as cortes subordinadas e para o advogado, no aconselhamento de seus clientes.

 

Nos casos novos, apresentados na lacuna de case laws, um tribunal pode reler os holdings anteriores, tanto com um espírito de interpretação restritiva (to narrow the holding), quanto de uma interpretação extensiva (to read a holding more broadly), ou, numa interpretação meramente declarativa (na afirmação de que o caso se aplica à espécie, tal qual). Em tais operações a técnica mais comum é do distinguo, e que permite transformar o que era holding em dictum e vice-versa. Podem as cortes superiores, desconsiderar um precedent e decidir com novas razões um caso semelhante: trata-se do overruling (autêntica abrogação do precedente, ou sua derrogarão, continuando o mesmo válido para certos aspectos da questão examinada - o que nada mais é do que transformar um holding num dictum!).

 

É necessário acrescentar que entre to follow a precedent, estabelecendo distinções até o limite de uma racionalidade ou to overrule a precedent, as cortes dos EUA preferem "to honor the doctrine of precedent by carefully distinguishing rather by outright overruling of objectionable decisions" (Farnsworth, id.).

 

O statute law nos EUA tem uma posição de criação do direito, muito mais vinculante do que na Inglaterra, pela presença marcante de uma norma fundamental, a Constituição dos EUA, escrita e rígida, com vigência por em cima de quaisquer outras normas escritas federais ou estaduais. Não só a Constituição dos EUA, que foi redigida em 1788 (!), e as Constituições dos Estados, bem como as leis infraconstitucionais, federais ou estaduais nos EUA, se apresentam de maneira totalmente diferentes daquelas dos países do sistema romano-germânico: em geral têm considerandos extensíssimos, redigem-se com artigos (sections) quilométricos, onde, num único período, se escrevem as regras, as exceções, as enumerações e as interpretações particulares para cada assunto particularizado. Uma matéria, que na técnica conhecida das leis escritas da família dos direitos romano-germânica, se desdobra em incisos, alíneas, itens, aberturas de parágrafos ou novos artigos, nas leis norte-americanas, são um único período, com centenas de vírgulas, inúmeras orações intercaladas e contra-referências a outros artigos da mesma lei.

 

A primeira observação quanto ao Statute Law, diz respeito a ser ele susceptível de ser arrumado num sistema piramidal (o que não se verifica nos case laws, uma vez fixado o precedente, tem ele seu valor dentro do sistema judiciário no qual foi concebido, sem que se possa dizer de hierarquia entre os mesmos, mas de conflitos de competência). Portanto, nos EUA, em muito pouco diferindo quanto ao jus scriptum da família dos direitos romano-germânicos; e mais ainda, num sistema federal, que para o estudioso brasileiro, apresenta ainda menores diferenças em relação ao próprio sistema jurídico. A hierarquia constitucional nos EUA é determinada não só pelas próprias normas da Constituição Federal, como também pelos case laws. Isto posto, explica-se como tendo emergido um ramo do direito, o Conflict of Law, especialmente dirigido a dirimir conflitos na esfera das jurisdições federal e dos Estados membros da Federação, bem como os conflitos no espaço entre as normas de tais sistemas, conflitos esses que são suscitados entre subsistemas que se encontram dentro de um único país. 17  

 

Segundo uma estrutura piramidal à la Kelsen, no  ápice do ordenamento jurídico norte-americano encontra-se a Constituição dos EUA, aprovada por um Congresso Constituinte em 17 de setembro de 1787 e ratificada pelos Estados da Federação, em 1788. Suas dez primeiras emendas, elaboradas naquela época e em vigor a partir de 1789, são denominadas Bill of Rights e até a presente data, sofreu um total de 26 emendas (que exigem a votação de 2/3 de ambas as Casas do Legislativo e ratificação por 3/4 das casas legislativas dos Estados, sendo esta exigência passível de ser substituída por convenções entre os Estados). Espalhados por entre os dispositivos primitivos e as emendas posteriores, há  princípios jurídicos e regras hermenêuticas e de aplicação, que se denominam clauses, em razão dos artigos ("clauses" seriam para nós os "artigos") da Constituição: Supremacy Clause (superioridade da constituição e da legislação federal sobre as constituições e a legislação dos Estados membros, inclusive sobre os tratados internacionais); Full Faith and Credit Clause (obrigatoriedade dos Estados atribuírem aos statutes e cases de sister states o mesmo valor jurídicos dos statutes e cases nascidos no próprio território); Due Process Clause (obrigatoriedade da União e os Estados respeitarem os princípios fundamentais e constitucionais relativos a direitos a um processo civil e criminal onde se assegurem ampla defesa, o contraditório, a proibição de dupla condenação...), Commerce Clause (proibição de leis estaduais ou federais que criem empecilhos ao livre comércio de bens entre os Estados da União).

 

A seguir, encontram-se os tratados internacionais e os Executive Agreements que vêm logo abaixo da Constituição Federal, na hierarquia das leis. Em virtude da Supremacy Clause, os atos internacionais são superiores às leis federais (federal statutes) revogando-as, mas são por elas revogáveis. Os tratados em devida forma, devem ter a aprovação de 2/3 do Senado Federal (assim devendo entender-se os tratados assinados pelo Executivo com Estados estrangeiros, e submetidos à aprovação do Senado), Os Executiva Agramente18, igualmente atos internacionais bi- ou multilaterais, são aqueles atos  que não necessitam, para seu vigor interno nos EUA, da aprovação legislativa; quanto à  obrigatoriedade de submissão de atos internacionais ao Senado Federal, inexiste dispositivo constitucional expresso, sendo dado que é bastante limitado o número de Executive Agreements que os federal cases e a doutrina têm considerado como aqueles que versam sobre uma competência exclusiva do Presidente, enquanto Chefe do Poder Executivo (e que dispensariam a remessa ao Senado dos EUA).

 

Federal Statutes são as normas federais assim entendidas:

 

1º) os atos normativos elaborados com a participação do Executivo e do Legislativo, com suas duas Casas: a House of Representatives e o  (Federal) Senate; denominam-se Act e, por vezes, levam o nome do deputado ou senador que lhe dá paternidade: Shermmann Act (uma das leis sobre anti-truste), Norris-LaGuardia Act (1932) (primeira lei sobre relações trabalhistas), ou se denominam com os nomes que a própria lei manda chamar: National Labor Relations Act (também chamado Wagner Act);

 

2º) os atos normativos elaborados pelo Poder Executivo (na sua competência exclusiva ou vinculada a um Act), diretamente (o Presidente com a cooperação dos Departments, que são os nossos Ministérios) ou indiretamente, pelas inúmeras Federal Agencies (órgãos da Administração Indireta) com denominações que revelam mais sua finalidade do que a origem: Order, Administrative Rules (ou simplesmente Rules of...), Regulations;

 

3º) os atos normativos elaborados pela Supreme Court, em especial em matéria de processo, devendo destacar-se o que seria o equivalente ao nosso Código de Processo Civil, vigente para os órgãos do Judiciário federal: as Federal Rules of Civil Procedure of 1938.

 

Abaixo do US statutes, vêm os States statutes. "State Statutes" são as normas votadas na jurisdição do território dos Estados membros, são as mais detalhadas, uma vez que a legislação federal é intersticial, ou, em outras palavras: a legislação federal aquela criada pela União (e quando se quer isso acentuar, se diz que‚ uma USA rule, um US statute  e toda vez que aparecer as siglas US ou USA se sabe que se trata de algo federal), por mandamento direto da Constituição Federal, ou pelos poderes implícitos (implied powers) sendo dado que a legislação federal é superior à estadual ("federal statutes supersedes State statutes"). O controle é realizado pela Supreme Court, numa maneira negativa (declaração de inconstitucionalidade por ter havido uma "unconstitutional intrusion by the State into the comprehensive federal competence"), é o chamado negative control ou, ainda, de maneira positiva, ao declarar que, num caso de competência concorrente entre União e Estado, a competência deste cessou, ou não existia, e que o legislador federal exerceu corretamente sua própria competência (é o que se denomina preemption). Tais controles são levados a cabo por writ of certiorari (mutatis mutandis nosso recurso extraordinário).

 

States Statutes são: as Constituições dos Estados (devendo dizer-se que os Estados tem um Governor e um Legislativo bicameral: General Assembly e State Senate, sendo os órgãos do Judiciário compostos de maneira diferente, segundo cada Estado), os atos elaborados entre Executivo e Legislativo estaduais (Acts), ou só pelo Executivo (Orders, Administrative Rules ou Rules e Regulations) e pelos Judiciários Estaduais (a exemplo, muitos Codes em matéria processual). A federação norte-americana é bem diferente da brasileira  e, dada a maior autonomia dos Estados membros nos EUA, muita matéria que no Brasil é de competência da União, constitui matéria  de competência exclusiva dos Estados membros naquele País, razão pela qual, a nossos olhos, a legislação dos Estados membros nos EUA é muito mais extensa, ratione materiae,  e muito mais complexa do que no Brasil.

 

Quanto à competência legislativa dos municípios, que tanto podem ser organizados como municipalities (correspondendo a uma cidade ou região metropolitana) ou counties (organização política territorial que engloba varias cidades, "towns" ou "regions") variando muito em cada "State", são regidos pela "Home Rule" (o equivalente à nossa "lei orgânica dos municípios") elaboradas de maneira mais diversa nos vários Estados (seja pelo Legislativo estadual, seja pelos órgãos legisladores das unidades pol¡tico-administrativas interessadas). Expedem-se a novel municipal (a melhor tradução para o termo: "local") "local ordinances", "local rules" e "local regulations". Em geral, nas "municipalities" e nos "counties", há um prefeito ("Mayor” e uma assembléia unicameral, o "Council"), reservando-se para o que denominamos "leis municipais", a apelação de "Municipal Ordinances".

 

5.3. "Common Law" e "Civil Law"

 

No sentido amplo, "Common Law" quer referir-se ao sistema da família dos direitos que receberam a influência do direito da Inglaterra (onde vicejam os contrastes apontados, entre Common Law versus Equity Law, e Common Law versus Statute Law) e de outro lado, o sistema da família dos direitos romano-germânicos, que igualmente se denominam "Civil Law", conforme apelação que os doutrinadores daquele sistema costumam conferir a esta última. Trata-se, portanto, agoira, não de descrever o sistema da "Common Law", seus componentes, as relações "internae corporis", mas de descrever as relações intersistemáticas entre a "Common Law" e outros sistemas (que, neste estudo, se referem tão somente ao sistema romano-germânico, com a exclusão dos outros: socialistas, religiosos, tradicionais etc.). Quanto ao que se entende por relações, a ênfase deve ser considerada  no aspecto do comparativismo, e não no sentido de cooperação e/ou confronto (o que, de igual forma, permitiria estudos de empréstimos de instituições entre os sistemas, de adaptações, de hermenêutica intersistemática) 19 .

 

Deve dizer-se que há  ainda as seguintes oposições conceituais no que diz respeito à expressão "Common Law", porém  dentro do próprio sistema da "Common Law":

 

a) "common law" v. "ecclesiastical law" ou ainda "canon law", portanto, como sinônimo de direito civil, ou leigo, ou secular, por oposição a direito canônico20 ;

 

b) "common law" v. "criminal law", ou seja, direito civil, por contraste a direito criminal, sendo que no Brasil, no caso, o adjetivo correspondente a "common law" seria: "cível"21 ;

 

c) "common-law" v. "Roman Law or modern civil law", de pura sinonimia com o que temos expressado como "Common Law v. sistema romano-germânico” 22 .

 

Contudo, o contraste no direito brasileiro entre civil e militar, no direito dos EUA se expressa como os contrastes "civil law" v. "military law", ou, em caso muito especial: "civil law v. martial law", (e não "common-law" v. "military law", nem "common-law" v. "martial law"), o que pode ser extraído do conceito "civil war" (aquela levada avante por forças oponentes no mesmo país; "internecine war" em contraste com "international war")23 .  Isto posto, segue-se que no direito dos EUA, "civil law" se opõe a "military law", entendido este como as normas de caráter disciplinar que regem o pessoal profissional a serviço do Governo dos EUA, nas suas forças armadas federais, portanto, "The Army", "The Navy" e "The Air Force", e o pessoal a seu serviço (e portanto, também o "military service"), em tempo de paz, ou em tempo de guerra, mas uma legislação ordinária. A oposição entre "civil law" v. "martial law" deve ser considerada, pelo fato de este reger tanto "civilians", quanto "soldiers" e o país inteiro, sendo uma legislação absolutamente excepcional, que pode abrogar até mesmo as regras da Constituição ("it is over and above all of them'!).

 

Enfim, outra acepção do conceito "Common Law" é intrigante, como aparece no instituto "common-law marriage". Trata-se do casamento de facto, ou como também se diz nos EUA, "informal marriages", reconhecido em todos os seus efeitos, havendo alguns requisitos, como: promessa de casamento, coabitação de fato, representação de terceiros ou mera apresentação a comunidade do casal como marido e mulher, e assunção de casamento, como se fosse válido, por pessoas da comunidade. Tal instituição faz mais pensar na "equity"; por outro lado, a informalidade existente nos "common-law marriages", estaria a indicar uma criação jurisprudencial da "case law", por certo para evitar os formalismos criados pela "statute law". Certamente, porém, a expressão não pode ser reservada a um instituto que seria típico do sistema da "common-law", pois, em graus variáveis, o casamento de facto existe nos sistemas romano-germânicos. Registre-se, assim, mais essa acepção do adjetivo "common-law".

 

Conforme já  foi anunciado, na sua origem, a "Common Law" (entendida esta expressão como "família de direito", por oposição à família romano-germânica) é "English", porquanto nascida na Inglaterra e com a expansão pelo mundo da cultura e civilização daquele país. Na atualidade, a grosso modo,  pode-se dizer que aquele sistema de direito se encontra nos países de fala inglesa (devendo notar-se que, enquanto o latim era a língua judiciária na Europa Continental, o normando e, posteriormente, o latim e o francês passaram a ser as línguas forenses nos tribunais inglesas, até 1731, quando se passou a adotar o inglês como língua oficial24 . Seu início, como já destacado no presente trabalho,  coincide com a conquista da Inglaterra pelos normandos, chefiados por Guilherme o Conquistador, que se tornaria Guilherme I da Inglaterra, o qual proclamaria em 1066, a continuidade dos direitos anglo-saxônicos que já  existiam na ilha, desde antes mesmo da formação do Reino da Inglaterra, em meados do Século X, semi bárbaros e costumeiros, conquanto impusesse o direito normando. Em meados do Século XII, os normandos conquistam a ilha da Irlanda, para lá  carregando o feudalismo e o cristianismo; posteriormente, seria a vez, em meados do Século XIII, da proclamação da "overlordship" inglesa sobre o País de Gales. Durante o reinado dos Tudors, consolida-se o poder inglês na Irlanda, e após a morte da Rainha Elizabeth I, sem herdeiros, sobe ao trono inglês, o Rei Jaime VI da Escócia, que passaria a ser Jaime I da Inglaterra, realizando-se uma união pessoal entre ambos os países. Na verdade, a Escócia nunca chegou a ser dominada pela Inglaterra, o que, talvez, explique este país estar excluído do rol daqueles que compõem a família da "common-law"; em 1707, proclama-se a união real da Inglaterra e Escócia, formando-se o que se denominou a Grã-Bretanha. Quanto à ilha da Irlanda, foi dominada pelos ingleses na sua totalidade até  os inícios do Século XX, tendo sido, em 1921, desmembrada em duas partes, com a criação do "Irish Free State", em 4/5 da ilha, continuando sua parte norte sob a dominação inglesa; posteriormente, o citado "Irish Free State" passou a denominar-se República da Irlanda, e, com a adoção de uma constituição naquela data, adotou o nome gaélico de Eire, continuando, contudo, com seu sistema jurídico que é a "common-law". Em conseqüência, adotou-se a denominação oficial daquele complexo centrado na Inglaterra, que é,  na atualidade, "United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland", ou seja, o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, ou Reino Unido, "tout court", cuja sede se encontra em  Londres, sendo Governado por uma Monarquia Parlamentar. O Eire, ou República da Irlanda, é um Estado independente, que adota a "common-law" e onde se fala o "Irisch" e o inglês.

 

Sendo assim, são incorretas as denominações que se seguem, para designar a "common-law": não é um direito anglo-saxônico (pois este era o direito das tribos e reinos da Inglaterra, antes da conquista normanda no Século X, e que conviveria com a "common-law" nos seus primórdios e que até hoje pode ser invocado em matéria de usos estritamente locais na citada Inglaterra); igualmente não é  direito inglês, porque engloba outros países independentes, como a República da Irlanda (Eire) e v rios outros, como os EUA.

 

Outra incorreção‚ dizer que a "Common Law" seria um direito costumeiro. Aqui é necessário uma precisão de natureza teórica, pois há quem considere a jurisprudência, entendida como as decisões dos tribunais superiores, como um costume, (repetição de julgados com a convicção de representarem uma regra jurídica) falando-se mesmo na existência de um costume judiciário, em comparação ao costume geral (aquele que o povo praticaria). A incorreção reside em razões de ambos os sistemas. Na "civil law" (tendo -se em mente que "uma única andorinha não faz verão")  uma decisão isolada, propriamente, não constituiria jurisprudência; por outro lado, sua eventual força normativa advém não da "communis opinio juris" do povo, mas do prestígio do órgão que permite a formação da jurisprudência, sem, no entanto, apresentar o caráter de obrigatoriedade que os casos julgados tem na "common-law" ou os costumes representam no Direito Internacional Público e no Direito do Comércio Internacional (onde as lacunas são enormes, por falta de um legislador de normas escritas, o que permite ver-se o costume como fonte de primacial importância, exatamente pelas lacunas existentes, dada a mencionada falta). Na "common-law", um único julgado  é considerado como precedente obrigatório, pois declara a existência de uma norma jurídica, para o "fattispecie", sendo, portanto a jurisprudência, a fonte primeira formal do direito; as relações entre o direito costumeiro, "customary law" e a "common-law" (entendido como direito declarado pela autoridade e não aquele que espontaneamente é praticado pelo povo) são as mesmas suscitadas entre o "jus sriptum" e o "jus non scriptum" do sistema romano-germânico: necessidade de prova, reserva a seu possível valor derrogatório do direito estatal a determinados campos do direito comercial, do comércio internacional, e do Direito Internacional Público, e, sobretudo, de um valor localizado no espaço. Na Common Law, em especial após a reforma do direito comercial empreendida por Lord Mansfield na Inglaterra, pelos anos a partir de 1776 (data de sua indicação para o cargo de Chief Justice do "King's Bench"), ao ter estendido a aplicação do mesmo para além da comunidade dos comerciantes (até então um direito estamental, a "Lex mercatoria" ou "ley merchant"), o costume se encontra reservado a matérias locais e restrita a assuntos comerciais.

 

Principais países que pertencem à família da "Common Law": Austrália, Nova Zelândia, Canadá  (Província de Quebec), Índia, Paquistão, Bangladesh, Quênia, Nigéria, Hong Kong, Guiana, Trinidad Tobago e Barbados, dentre outros. Os EUA,salvo o Estado da Luisiana, são considerados um sistema misto, conquanto pertencente à "Common Law" (e a Escócia, Israel, África do Sul e Filipinas, países de sistema misto, pertencentes à família romano-germânica). Nos EUA, as antigas possessões espanholas como a Califórnia e o Texas, embora reflitam, em alguns aspectos dos direitos de família algo das leis dos antigos colonizadores espanhóis ou franceses, certamente são do sistema da "common-law"; a Luisiana, contudo, dentro dos EUA, é o único Estado da Federação, que se conservou fiel aos primeiros colonizadores franceses e espanhóis, uma vez que pertence à família dos direitos romano-germânicos (da mesma forma,  que Porto Rico, que é um Estado Associado).

 

Dada a predominância dos "case law" na "Common Law", o sistema se torna em grande parte muito mais nacionalista que os da família romano-germânica (veja-se, em particular, o papel, de certa forma relevante, da doutrina estrangeira no direito brasileiro). Até fins do século passado, alguns"cases" ingleses eram citados nos EUA; hoje, conforme constaram os autores norte-americanos consultados para este trabalho, nenhuma influência a Common Law inglesa exerce nos EUA. Contrariamente, é do conhecimento do autor, que na Inglaterra, pelo menos em matéria de responsabilidade civil extracontratual ("torts"), tem havido, com alguma freqüência, invocação do "leading case" Babcock v. Jackson nos julgados ingleses (responsabilidade civil por acidente com automóvel).

 

6. Conclusões

 

Na "Common Law", a idéia que permeia o sistema, é de que o direito existe, não para ser um edifício lógico e sistemático, mas para resolver questões concretas. Antes de examinar se existe ou não algum geometrismo no sistema, este se preocupa com os remédios: "reliefs and remedies", e tanto é assim, que se chegou ao absurdo de não permitir uma ação frente ao Judiciário, se não houvesse um "writ" que fornecesse a solução prática (e conforme visto, tal fato foi em parte, corrigido pela "Equity").

 

Ressalta-se o papel secundário da doutrina abstrata, em favor das soluções pragmáticas. Na Inglaterra, o papel da Universidade sempre foi insignificante na formação do direito ou na formulação de teorias generalizantes. A prova de tal fato reside em que os estudos de Filosofia do Direito, tanto em Inglaterra como nos EUA, se denominam "Jurisprudence", ou seja, abstrações a partir de casos julgados! Embora as Universidades tenham sido bastante importantes nos EUA, como papel fundamental de legitimação dos agentes junto ao Poder Judiciário (e inclusive na formação dos quadros do próprio Judiciário), apenas indiretamente, pela participação de seus professores e entidades de estudos de uniformização de normas jurídicas, é ela algo relevante na formação da norma jurídica. O papel da doutrina, portanto, é extremamente limitado, e se citam os raros casos em que estudos doutrinários tiveram alguma influencia em "overruling" a jurisprudência.

 

E bem verdade que nos EUA se exige o grau universitário e um exame da "Americana Bar Association" (o equivalente à nossa OAB) para exercer a advocacia, (ao contrário da Inglaterra onde tal legitimação é dada pelos clubes privados, os Inns of the Court), mas a indicação para determinadas funções, como as de Prosecutor, dispensam aquela formação.

 

Nesta ordem de considerações, a simbiose que existe na família romano-germânica entre a Universidade e a Justiça, pode-se dizer que na Common Law tal a simbiose se encontra plenamente verificável entre "the bench and the bar" (os coletivos abstratos para designar a barra, ou a cerca, que separa, de um lado os juizes e seus auxiliares, e de outro, os advogados e seus coadjutores, na Inglaterra, deste lado, melhor dito, os práticos e seus coadjutores).

 

Inútil buscar uma imagem de figura geométrica, pelo menos na geometria cartesiana, que permita descrever a “Common Law". Se existe um figura que se possa aproximar da citada descrição, seria a de uma colcha-de-retalhos, que cumpre, à perfeição, sua finalidade, que é dar abrigo à sociedade, e pensar os seus ferimentos, representados em violações da paz social. Só mesmo um espírito geométrico, como um mestre francês, poderia descrever o "esprit de finesse" que permeia a "common-law", como o faz o Prof. René David25 , verbis:

 

"Nos países de direito escrito em que o direito se apresenta principalmente sob a forma dum direito legislativo, as regras de direito são formuladas com uma tal generalidade, que o apelo à razão se processa, normalmente, no quadro das fórmulas gerais, sob a forma de aplicação e interpretação destas regras; a existência de lacunas na ordem legislativa é dificilmente reconhecida; mais do que para completar a ordem jurídica, a razão desempenha uma função na interpretação da lei. Num sistema jurisprudencial, como é o direito inglês, a situação apresenta-se muito diferente. 0 aspecto casuístico que então reveste o direito, deixa subsistir, de forma intencional, muitas lacunas; e a razão é francamente reconhecida como uma fonte subsidiária do direito, chamada a preencher estas lacunas. A uma técnica de interpretação do direito, substituiu-se uma técnica de distinções, visando a estabelecer regras novas, cada vez mais precisas, em vez de aplicar uma regra preexistente. Os sistemas de direito da família romano-germânica são sistemas fechados, a "Common Law" é um sistema aberto, onde novas regras são continuamente reveladas; estas novas regras fundam-se na razão. (Op. cit. p. 467/8).

 

É igualmente este gosto pela regra abstrata e geral, que está  presente na família romano-germânica dos Direitos, e que poderia explicar a redação de monumentos legislativos como os códigos. Para um analista provindo da Common Law, as normas assim elaboradas e escritas, parecem, antes, preceitos morais, regras religiosas, do que normas jurídicas precisas e claras, destinadas a solucionar conflitos no interior de uma sociedade.

 

A abertura apontada pelo Prof. René David na "Common Law", poderia muito bem explicar o detalhismo existente nos "statutes" e, de igual forma, nos contratos civis ou comerciais, redigidos em grandeza enciclopédica, que nada mais refletem senão o aspecto casuístico do sistema. Torna-se, pois, impossível encontrar um correspondente a Hans Kelsen, ou mesmo um Savigny entre os doutrinadores da Common Law, nem mesmo um dos discípulos críticos deste último, Karl Marx (que teve a ingenuidade de pensar que o sistema capitalista forjaria sua própria destruição, pelas contradições internas, sem ter-se dado conta da plasticidade do sistema da Common Law inglesa.

 

Não foi na Inglaterra, como erroneamente previsto, que se verificou a revolução do proletariado, mas na Rússia Imperial, então um sistema inteiramente configurado como integrante do sistema romano-germânico!

 

Por muito sedutor que seja o uso da indução nas argumentações judiciárias, os próprios doutrinadores da common-law apontam seus defeitos lógicos, que podem ser estendidos a todo sistema, como o faz o Prof. Farnsworth, denomina de two puzzles in precedents:  1º) o valor a ser dado a um multilegged holding e 2º)  os efeitos retroativos de um julgado, que é "overrules a prior decision". No primeiro caso dos precedentes que se baseiam em várias razões (por ex.: as decisões com votos dissidentes, num recurso baseado em três razões, no qual o acolhimento foi lastreado apenas em uma): pode ser argumentado que nenhuma das razões era suficiente para reforma da sentença recorrida, uma vez que as razões, tomadas isoladamente, eram suficientes para a decisão, ou ainda, que a decisão, inteira,  não contem um "holding" mas trata-se apenas de um "dictum". É mais do que certo que uma decisão fica mais firmemente estabelecida numa única razão, do que em razões alternativas! Quanto ao segundo quebra-cabeças, a questão da retroatividade do precedente nos case law, ou seja, nos acórdãos (fato impossível de acontecer entre nós, dado que um julgado decidido em circunstâncias iguais a outro, que teve decisão contrária, não coloca o problema de revogação da norma), mas plenamente viável na hipótese da Common Law, em que um case law ab-roga outro "case law" e em que a norma  é  "judge-made". Um exemplo ilustraria: A firma um contrato com B e com C, absolutamente idênticos; ajuizada uma ação de A contra B, e havendo julgamento de que o "leading case" não mais se aplica à espécie (ou, em outras palavras, tendo havido abrogação da norma), quais seriam as conseqüências do precedente para a validade do contrato entre A e C !?

 

As questões de conflitos de normas no tempo, o Direito Intertemporal, dada a extrema fluidez e plasticidade da norma jurídica no sistema da "Common Law", suscitam questões de grande complexidade, que inexistem no sistema da família romano-germânica, onde impera, com muita nitidez, os momentos de entrada em vigor da norma jurídica e onde os direitos adquiridos (a la Gabba) ou, estes, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (Constituição brasileira) ou a situação jurídica constituída (à la Roubier), são definidos com rigor.

 

Na comparação dos sistemas da família romano-germânica dos direito e da "Common Law", reafirme-se o postulado de que não é permitido, em Direito Comparado, estabelecerem-se juízos de valor quanto a este ou aquele sistema, uma vez que ambos são criaturas da cultura e da civilização e plenamente cumprem com as funções para as quais o engenho humanos os criou: proteger a salvaguardar a sociedade humana. Se os juristas e advogados da família romano-germânica olham com certa emulação a adequação dos "case laws" à cambiante realidade dos fatos sociais, advogados e juristas da "Common Law" sentem uma certa nostalgia, em face da harmonia e racionalidade dos códigos!

 

Na essência, trata-se do velho contraste indução/dedução, ambos métodos válidos! No fundo, tanto a dedução como a indução, constituem-se em métodos científicos de conhecimento, aquela aplicável às ciências especulativas, esta às ciências práticas, porém não com exclusividade, pois na Física ou na Biologia existe a utilização de ambos os processos metodológicos. Nas ciências do comportamento do homem (que trabalham tanto com juízos de realidade, quanto com juízos de valor), o intercâmbio de ambos os métodos torna-se ainda mais necessário, inclusive como condição de verificação de provas das afirmações, sob pena de falseamento dos postulados científicos, seja por uma generalização inexistente, ao que pode levar o abuso da indução; seja por um abstracionismo que descreva o mundo dos homens, como se fosse constituído de seres perfeitos e angelicais (o grande risco do abuso dos processos dedutivos).

 

Tanto a pirâmide kelseniana abstrata, quanto a colcha de retalhos casuística, constituem criações engenhosas do homem, os sistemas jurídicos nacionais, concebidos para a salvaguarda e aperfeiçoamento da sociedade humana.

 

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[1] Com algumas diferenças, o presente trabalho acha-se publicado na Revista da Faculdade de Direito da USP.

2 Tanto é concisa a língua portuguesa ao dizer: "plantando, dá " (If one plants, one can get good crops!) quanto o inglês que inventou a palavra "torts" (responsabilidade civil por danos extracontratuais!). Igualmente impróprio seria afirmar que o italiano é uma língua que se presta ao canto (pois, como então ficariam os "leader" de Schummann ou de Schubert, ou as serestas brasileiras!), ou que o alemão é uma língua clara (pois então não haveria como justificar a incrível expansão do inglês no comércio internacional, onde a clareza é a qualidade primordial das relações negociais, entre pessoas que não falam a mesma língua!).

3 Tal fato revela, portanto, que uma mesma língua pode ser o veiculo de expressão de distintos sistemas jurídicos nacionais, os quais, por utilizarem o mesmo meio de expressão, em absoluto podem autorizar a afirmação de  similitudes de institutos jurídicos.  Por tais motivos que, no estudo do Direito Comparado, são imprescindíveis as distinções entre português de Portugal e português do Brasil, ou entre inglês da Inglaterra e inglês dos EUA, do Canadá, da Austrália, da Índia, de Trinidad-Tobago ou da Jamaica!

4 Black's Law Dictionary,  4a edição, revista, Henry Campbell Black, St. Paul, Minn., West Pub. Co. 1968.

5 Jowitt's Dictionary of English Law, The Late The Right Honourable The Earl Jowitt e Cifford Walsh, LL.M., 2a edição por John Burke, Barrister Sometime Editor of Current Law, Londres, Sweet & Maxwell Limited, 1.977.

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7 Na aplicação da norma jurídica, sempre havia a principal preocupação de armarem-se silogismos, método de raciocínio, composto de 2 premissas e uma conclusão. A premissa maior, constituída por um juízo universal (a lei), seria seguida de uma premissa menor, um juízo particular, (o fato), inferindo-se, automaticamente,  a conclusão (a aplicação da lei ao fato). O grande exercício nas Universidades do inicio do Século XIII, era a construção dos caminhos lógicos (a denominada Lógica Menor), que consistiram em desenvolver as teorias aristotélicas sobre o conhecimento científico, até os limites racionais possíveis!

8 A rigor, haveria, na história da Common Law, uma primeira oposição de conceitos: Common Law versus direito anglo-saxônico, este, constituído de direitos locais, tribais e costumeiros, e que somente deixaram alguns traços para direitos locais ingleses, mas que muito pouco influenciaria a Common Law que se formou a partir do jus scriptum e jurisprudencial posterior à conquista normanda.

9 Writ  pronuncia-se rit, sendo o “i”  enunciado como na palavra fiesta.

10 Finding,  pronunciado, “fáindin” é  um substantivo derivado do verbo "to find" (descobrir, achar) e  significa, na atualidade, em particular no plural, "what has been learnt as the result of inquiry", portanto, "resultados de uma investigação". "The findings of the Commission": "What is determined by a jury" (A.S. Hornby  Oxford Advanced Dictionary of Current English, 1974, verbete: find (2). Nos EUA, “findig” é  sinônimo de “verdict”, o resultado da deliberação do Petty Jury, em casos criminais.

11 "Stare decisis" (pronuncia-se; "stare diçáicis") foi o que sobrou da expressão latina: "stare decisis et quieta non movere", ao pé da letra: "que as coisas permaneçam firmes e imodificadas, em razão das decisões".

12 Uma comparação que nos permitiremos fazer, entre a "Common Law" e a "Equity", parece-nos assimilável, com grandes reservas, às peculiaridades da Justiça Comum e da Justiça do Trabalho, no Brasil. Ressalte-se, contudo, que a "Equity" tinha um campo de atuação em todos os ramos do direito, e que as Courts of Chancery tinham uma jurisdição aberta para qualquer tipo de pessoa, independentemente de as relações entre autor e réu serem relações de trabalho.

13 "Real" (pronuncia-se "ríal") é um adjetivo que deve ser entendido no sentido de "property of land, any natural resources, and buildings, contrasted with personal estate", cf.  Hornby, Op. Cit., verbete: real estate. Portanto, a melhor tradução para  “real”, seria, no direito brasileiro, “imóvel”, “imobiliário”.

14 As matérias de interpretações de testamentos e de liquidação de heranças, nos EUA, são da competência de cortes especializadas ("Courts of limited jurisdiction"), em alguns Estados, como Nova York, têm uma denominação própria: “Probate Courts” e “Surrogate's Courts”.

15 Case aparece nas expressões casebooks (manuais para os estudantes em que se concentram, na maioria das vezes, os julgados, com algumas indicações de alguns statutes) case method (metodologia da descoberta e revelação do direito através do exame dos precedentes judiciários), "case study". Pode-se, portanto, traduzir “case”  como o precedente juducial vinculante, ou seja,  decisão judiciária de tribunal superior, no Direito brasileiro, “acórdão”

16 Entendemos  por “justiça administrativa” , como o "Conseil d'Etat" francês, aquela aplicada por um  órgão judiciário especializado na aplicação do Direito Administrativo. Tal fenômeno inexiste no direito dos EUA, da Inglaterra e do Brasil.

17 Nos EUA, o "Conflict of Laws" é uma disciplina que se encontra nos dois grandes sistemas jurídicos existentes naquele pais: a) os direitos dos Estados membros (no sistema federativo norte-americano, com suas próprias legislações de direito privado e de direito público, inclusive processual e de organização judiciária, bem como de Direito Internacional Privado) e b) os direitos federais (que têm o mesmo campo de abrangência que os direitos dos Estados membros). "International Private Law", conquanto denominação cunhada por um professor norte-americano de Harvard, Joseph Story, para o direito que regula conflitos de leis no espaço, não se emprega usualmente nos EUA (sendo corrente na Inglaterra). Portanto, os conflitos no espaço de leis, nos EUA, podem significar tanto conflitos entre leis norte-americanas (entre as leis dos Estados federados ou destes e a lei federal), quanto entre estas leis e leis provenientes de Estados estrangeiros. Na Inglaterra, Estado de organização unitária, não se colocam tais problemas, típicas de uma federação, onde se confere grande autonomia às unidades federadas. Veja-se do Prof. Peter Hay, "International versus Interstate Conflicts Law in the United States", IN: 35 Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht, 429-495 (1971).

18“Executive Ageements” é uma expressão corrente na doutrina do Direito Internacional Público, no Brasil. Sua outra denominação é: acordos em forma simplificada (para distingui-los dos “acordos em devida forma”, aqueles aprovados pelo Congresso Nacional). Veja-se nosso trabalho: "Agreements", "Executive Agreements", "Gentlemen's Agreements". In: Enciclopédia Saraiva de Direito, São Paulo, Saraiva, v. 5. p. 246-81.

19 Exemplo de tais estudos, podem ser exemplificados com a análise de como interpretamos nós o "leasing" e como eles, da "Common Law", interpretam "boa fé" nos contratos internacionais. Ou quais as diferenças de um mesmo instituto existente na "Common Law" e no sistema romano-germânico, como indagar-se em que medida as "corporations" são as nossas sociedades anônimas, ou a que instituto da "Common Law" corresponderia a nossa sociedade de responsabilidade limitada, etc.

20 "Ecclesiastical law" ou "canon law", refere-se ao direito leigo, secular, definindo-se, portanto, a "common law" como "the system of jurisprudence administered by purely secular tribunals" (Black's, verbete: "common law")

21 O Black's no verbete: "common-law action", assim se expressa: "a civil suit, as distinguished from a criminal prosecution, or a proceeding to enforce a penalty or a police regulation; not necessarily an action which lies at common-law" Kirby v. Railroad Co, C.C. Iowa 106 F.551; US.V. Bolck 24 Fed.Cas. 1,174. Em nossa metalinguagem, ficaria assim traduzido: " Common-law action" ‚ uma ação cível, distinta de uma ação criminal ou de procedimentos para aplicar uma penalidade ou um regulamento de polícia; não necessariamente uma ação que seja regulada pelo direito nascido das Cortes de Westminster na Inglaterra (em oposição a "equity"). Sendo assim, conforme se pode ver, "common law" pode, então, ser sinônimo de "cível", no vocabulário forense brasileiro, por oposição a criminal.

22 Nos EUA, em geral, "Roman Law" é a denominação para o Direito Romano, tal qual, cientificamente, é  estudado na doutrina elaborada na família dos direitos romano-germânicos, ou seja, a sua essência e as suas influencias em ambos os sistemas da "common-law" e da "equity law" e as marcantes influencias no seu processo civil.

23 O Black's no verbete "military jurisdiction", transcreve as definições conforme US v. Minoru Yasui, CC Or., 48 F. Supp. 40. 46,47, em grandes linhas: 1o) “jurisdiction under military law”: aplicação em tempo de guerra ou de paz das normas federais que prescrevem "articles of war"; 2o) "military government" em tempo de "foreign war" (guerra externa) além das fronteiras dos EUA ou em tempo de rebelião ou guerra civil, dentro do território dos EUA ou dos territórios ocupados por rebeldes considerados beligerantes; o "military Government" substitui o direito local e é levado a cabo por um comandante militar, sob a direção do Presidente dos EUA e a sanção expressa ou implícita do Congresso;  3o)  "martial law", nas situações de invasão estrangeira ou de insurreição grave dentro do país, ou durante rebelião nos limites dos Estados que mantenham adesão ao "Governo Nacional"; normas votadas pelo Congresso, ou, excepcionalmente, pelo Presidente dos EUA, em caso de perigo iminente e justificável, "where ordinary law no longer adequately secures public safety and private rights". O "martial law", portanto, é aplicado pela "Court Martial", nos excepcionais casos de guerra externa ou de crimes que extrapolem os casos previstos em tempos de paz, aplicado por autoridades militares, nas situações em que estas "exercem o governo ou v rios graus de controle sobre civis ou autoridades civis no território doméstico", Ochikubo v. Bonesteel D.C.Cal., 60 F. Supp. 916, 928, 929, 930. No verbete “martial law”, ao transcrever se conceitos ligados ao mesmo, o Black's mostra o contraste entre "civil law" e "martial law": "martial law is neither more or less than the will of the general who commands the army. It overrides and supresses all existing civil law, civil officers, and civil authorities, by the arbitrary exercise of military power...Martial law is regulated by no known or established svstem or code of laws, as it is over and above all of them...In re Eagen, 5 Blatchf.321,F.Ca.NQ 4,303 (verbete: "martial law", com ênfase por nós acrescentada, porém inexistente no original transcrito).

24 Veja-se: Ren‚ David, Op. Cit., p. 333, rodapé  3.

25 O autor do presente trabalho, consciente de estar sendo guiado pela metalinguagem formada num sistema romanístico, como o brasileiro, apoiou-se no contraste entre "esprit de géometrie" e "esprit de finesse", conforme as Pensées de Pascal.

 

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* Professor Titular de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da USP e consultor do escritório Bottallo e Gennari Advogados.

 

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