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O consumidor agonizante no país das 1001 regras

Tomei conhecimento por meio do Informativo Migalhas, dos termos da nova Resolução da ANAC, que tem o intuito de tentar melhor disciplinar as relações dos agentes que atuam no mercado de viagens aéreas e o consumidor.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Atualizado em 18 de março de 2010 15:47


O consumidor agonizante no país das 1001 regras

Mauro Tavares Cerdeira*

Tomei conhecimento por meio do Migalhas, dos termos da nova Resolução da ANAC, que tem o intuito de tentar melhor disciplinar as relações dos agentes que atuam no mercado de viagens aéreas e o consumidor (Migalhas 2.347 - 17/3/10 - "Transporte aéreo" - clique aqui).

A resolução, em especial, aperta os cintos no que se refere ao atraso nos vôos, e toca em outra tecla, que no caso das companhias aéreas e de outras transgressoras contumazes, é crucial. Trata-se da informação ao consumidor, que tem direito de saber o que aconteceu, o que está acontecendo e o que vai acontecer ou está sendo aventado ou decidido pelos seus algozes temporários, quando tem o azar de se meter em um aeroporto com um bilhete na mão, e por vezes chefiando uma trupe familiar.

Quem já passou pelo desrespeitoso tratamento de uma companhia aérea no Brasil (e logicamente que sempre há exceções, que aqui são parcas, e que aqui não estamos a falar de nada realmente trágico), sabe que além do tempo perdido, da grande demora, das dores de cabeça, estresse e nervosismo, do vai e volta e das preocupações, de noites dormidas em aeroportos, de filas e mais filas, e de muita má orientação, o pior de tudo é que o ser humano ali envolvido, o dito cidadão, perde o livre arbítrio, a autonomia e independência.

Por absoluta falta de informação, gerada por ato proposital das empresas envolvidas nos episódios, o (a) camarada não sabe se fica ou vai embora, se come ou se faz xixi, se vai ou não ter hotel de noite, se vai viajar naquele dia ou dali a um mês, chegando a se tornar invisível e se "coisificar" em filas, ou ainda, se podemos criar mais um termo meio marxista meio kafkiano, se "filificar" ou, como já aconteceu algumas vezes, se transformar em um zumbi ou em uma bestafera!

Agonias a parte, o triste fato é que aqui, no país das leis e resoluções e atos normativos, e circulares e súmulas e carimbos e bolachas, como já disse meu amigo Antônio Paraguassú Lopes1, nenhuma norma, com qualquer nome que tenha, parece estar sendo cumprida. A começar por uma lei que proíbe o transito de carroças na Avenida Paulista, já que hoje em dia estas lá transitam puxadas por homens e mulheres, também agonizantes como "o bicho" que era homem na poesia do Bandeira2.

Mas fico aqui enrolando e o que queria contar é outra coisa. É que se ma quarta-feira tomei conhecimento da nova Resolução da ANAC, no dia anterior (terça-feira), na mais tenra manhã, estava chegando, com minha esposa e filha de 4 anos, de Orlando. Como o vôo era internacional, consegui escapar do oligopólio das companhias aéreas nacionais, que aqui dentro mandam e desmandam e fazem o que querem, inclusive praticando tarifas bem acima da média internacional. Vim de American Airlaines, (o leitor há de convir, que nome mais bonito que esse para empresa, só mesmo "Flog Blog"), eu e mais um punhadão de brasileiros.

Estávamos combinados de sair de Orlando as 18h30 (horário local), no vôo AA 2055, e depois embarcar em Miami para São Paulo, em vôo que partiria as 20h15 (AA 907). O vôo originário, porém, atrasou, e chegamos a Miami "em cima da pinta". As assistentes de vôo botaram todo mundo pra correr que nem guepardo (tinha um mocinho correndo de muleta, que parecia ter atuado no Star Treck). Entramos no avião e o motorista mandou ver! Chegamos aqui no horário - 5h30 da manhã da terça.

Daí, aqui em São Paulo, me "postei igual poste" no rolo dezessete (atendendo a uma insistente voz microfonada) para esperar as malas, com mais uma turma. Minha filhota já querendo ir embora, perguntando se ia ter escolinha, se aqui em São Paulo também iria ter Disney e dizendo que seu estômago doía. Passou vinte minutos e nada; mais dez minutos e nada, mais cinco minutos e nada. Um pessoal havia pego suas malas já fazia tempo e o resto tinha sobrado. Comunicamo-nos, nós sofridos passageiros, em princípio de agonia e descobrimos que todos que ali estavam devidamente desmuniciados de sua bagagem haviam vindo de Orlando.

Não havia dúvida, a Companhia American Airlaines (esse nome fez história na publicidade americana, realmente muito pomposo), havia deliberadamente deixado de embarcar nossas bagagens. E a minha filha perguntava se tinha uma cama lá e eu dizia que nem cama, nem cadeira, nem mesmo malas para ela deitar em cima tinha (e o chão ainda estava bem sujo); pois naquele inferno só tem mesmo rolo de malas, gente sem educação e muito barulho!

A AA então, ao invés de fazer um comunicado geral, que por logística e sacanagem pura tinha colocado aquele mundo de brasileiro bobão no avião, sabendo que chegariam sem malas, fez uma fila (afinal, o que é mais uma fila no aeroporto de Guarulhos?), e passou a atender um por um, com apenas uma atendente (olha o que sofrem estas funcionárias!), como se o problema de cada um fosse único, como se não soubesse que ela própria (a empresa), deliberadamente, tinha causado aquele problema geral, pois logicamente que se admitisse, estaria confirmando ter causado uma lesão por dolo aos passageiros.

Três horas depois, a fila ainda grande, pois no atendimento faziam questão de pedir os registros das malas e mais um sem número de informações desnecessárias, as malas chegaram, todas, em outro vôo da companhia. Ou seja, a American foi cozinhando seus passageiros até chegarem as malas todas, que enviou de forma planejada no vôo seguinte. Todo o tempo, ela sabia que os seus passageiros sairiam do local com três horas ou mais de espera, mas em nenhum momento divulgou a notícia.

Logicamente que se tivesse avisado que as malas não partiriam naquele vôo, muitos passageiros decidiriam, lá em Miami, também não embarcar. Eu e minha família, por exemplo, teríamos acesso a salas especiais no aeroporto de Miami, ficaríamos com um mínimo de conforto. Mas isso afetaria os planos da Empresa, que necessitava descarregar nos ombros dos seus passageiros os seus problemas. E nós ficamos aqui, sem ter onde sentar, sem informação, sem satisfação, em um ambiente caótico, ansiosos, cansados e preocupados.

E mais ainda, minha família somente ficou ilhada por três horas porque minha filha vomitou, e eu perdi a paciência, e um funcionário da empresa correu e separou nossas malas antes das outras. Os demais passageiros continuaram lá, a espera do funcionamento do rolo de malas, e nem sei quanto tempo de atraso sofreram em sua saída do aeroporto. Como acabamos saindo do aeroporto somente perto das 9 horas da manhã, pegamos um trânsito ultrajante, o que não teria também ocorrido se houvéssemos saído momentos após a nossa chegada em São Paulo. E o nosso avião ainda partiu daqui para o Rio de Janeiro, tendo logicamente deixado lá uma turma sem malas também. Um absurdo!

Pois bem, essa hipótese, de atraso de malas e não de vôo, com o gravame de que o local de espera é mais rústico, não vi na nova resolução. Mas a analogia e outras normas resolvem a questão jurídica. Não é isso, porém, que está faltando. Está faltando fiscalização. Está faltando punição. Está faltando, ainda, seriedade no trato da questão, e gostaria de terminar esta crônica com duas observações que vem se tornando cada vez mais óbvias, e que o caso narrado aqui exemplifica muito bem.

Primeiro; as companhias estrangeiras, de países desenvolvidos, que vem para cá disputar o mercado, especialmente na prestação de serviços, não tem a mesma conduta aqui em relação ao seu País de origem. A American Airlines não faria o que fez aqui lá nos EUA, pois naquele país, como diz um amigo meu, "a arrancada é seca", e tem punição efetiva para o desrespeito das normas. Isso é um processo perigoso. Nosso País precisa ser conhecido lá fora por suas qualidades e seriedade, não porque aqui "pode tudo" e dá para ganhar dinheiro sem cumprir regras.

Segundo; é certo que é tendência do dano moral, em um primeiro momento, se vulgarizar e se tornar obra de especulação de aproveitadores. Mas também a generosidade com que o nosso Judiciário, ressalvadas honrosas exceções, vem tratando contumazes infratores poderosos de nossa legislação consumerista, já está lamentavelmente se tornando motivo de chacotas e pilhérias.

Em alguns países desenvolvidos e democráticos (pelo menos internamente), as punições exemplares é que tem garantido o cumprimento das normas existentes, e isso deve ser analisado por nosso Judiciário, que por sinal, ressalvado o transtorno causado pelo alto volume de demandas, mostra elevada qualidade em suas decisões.

Cito um exemplo que se tornou público. Há algum tempo a imprensa divulgou que uma senhora obteve indenização, no Judiciário, de 12 mil reais, por humilhações reiteradas da empresa TIM, que se repetiam todas as vezes que chegava sua conta telefônica em seu Condomínio, com dizeres de "tem um gatinho e chora" ou algo assim. E isso após a lesão originária, de alegadas cobranças indevidas, que segundo consta não havia sido resolvida.

Pode ser que, considerado o nível de vida, as posses, e o sofrimento da autora da ação, que não conheço e deve ter sido muito bem analisados pelos magistrados, esta indenização seja suficiente para reparar o mal que lhe foi causado.

Mas certamente a decisão não cumpre o segundo requisito das indenizações por danos morais, que é punir o infrator, de modo a levá-lo a não cometer de novo a mesma infração (leia-se, no meu entender, levar a TIM a se preocupar efetivamente com o atendimento ao consumidor e rever seus processos e procedimentos internos etc). Com efeito, os 12 mil reais não fazem, como dizíamos na infância, sequer cosquinha na TIM, um grande grupo conhecido por todos, campeão (ou um dos) em denúncias e processos movidos por consumidores.

No mais, não vejo a hora de qualquer cidadão brasileiro poder provocar uma ação coletiva, coisa como as class actions dos EUA. Tem gente dizendo que o brasileiro ainda não está preparado etc e tal. Mas se está preparado para ser desrespeitado por empresas americanas, porque não ter nas suas mãos os mesmos instrumentos que os americanos do norte tem para se proteger? Aliás, este negócio de direito coletivo e individual homogêneo e difuso é muito curiosa, pois por algum mistério do direito, os entes envolvidos parecem gostar mais de estudar toda a sua teoria constitutiva e discutir suas diferenciações, que mesmo pegar no batente e proteger os milhares de direitos de tal ordem desrespeitados todos os dias. E na maioria da vezes, a coisa é bem como disse Anton Tchecov3, "quanto mais particular, mais geral".

E alguém já tentou ir até àqueles juizados especiais do aeroporto?

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1 Indico o livro do autor, divertido e sério - Justiça, Carimbos & Bolachas, de Antônio Paraguassú Lopes - A edição que tenho é a primeira - 2005, autografada - Editora Autana.

2 Referência ao Poema de M. Bandeira - "O Bicho".

3 Anton Tchecov; escritor russo.

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*Advogado do escritório Cerdeira Chohfi Advogados e Consultores Legais










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