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Instrução CVM 480/09, mazelas de nossa realidade

José A. Beretta Filho

A Constituição Federal determina que existe função social da propriedade, o que se explicita na forma pela qual essa propriedade é exercida, gozada e fruída.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Atualizado em 12 de maio de 2010 11:01


Instrução CVM 480/09 - mazelas de nossa realidade

José André Beretta Filho*

A Constituição Federal (clique aqui) determina que existe função social da propriedade, o que se explicita na forma pela qual essa propriedade é exercida, gozada e fruída.

No caso das empresas, a função social das mesmas se dá de forma impactante na sociedade, porque pela sua atuação são geradas riquezas, empregos são oferecidos, pesquisas são feitas, o meio ambiente é afetado etc.

Esses impactos são crescentes e tanto maiores quanto o porte das empresas, podendo inclusive tender a ser global, seja pela repercussão econômica em si (produção e vendas em vários países) ou não econômica (poluição além das fronteiras).

Ao longo dos tempos, a consciência dessa função social veio levando as sociedades a imporem mecanismos cada vez mais complexos de fiscalização e controle sobre a forma pela qual as empresas atuam, exatamente porque há a noção de que o mau exercício da propriedade empresarial pode levar a danos de proporções colossais que ultrapassam limites restritos, afetando toda a sociedade.

Assim, interessa à sociedade saber quais são os planos de uma determinada empresa para saber os efeitos que isso terá em si.

Exemplos simples:

(i) qual o impacto que a construção de um novo shopping causará ao trânsito de um bairro? e

(ii) a instalação de uma hidrelétrica de pequeno porte terá qual efeito sobre o meio ambiente regional?

A sociedade aprendeu, e continua a aprender, a duras penas, que a evolução têm um preço e cuja conta pode ser muito cara, a perda da qualidade de vida em todas as suas dimensões.

É em razão disso que, com o apoio no Direito, estruturou-se o princípio da precaução, pelo qual os avanços devem ser monitorados, de modo a que os riscos sejam conhecidos e avaliados, tornando o desenvolvimento mais sustentável (o que não quer dizer isento de riscos).

Esse princípio está espelhado em várias normas: aquela que determina que uma construção requer seu devido registro na Prefeitura e em outros órgãos públicos; que a colocação no mercado de medicamentos requer autorizações prévias; que a implantação de uma fábrica pode requerer uma análise de seu impacto ambiente por autoridades ambientais; e tantas outras.

No âmbito empresarial, esse princípio da precaução está cada vez mais explicitado no que se chama, hoje, de governança corporativa, que entende, ainda que de forma às vezes difusa, como razoável que a ação empresarial seja mais transparente porquanto é do interesse de todos.

No que diz respeito às sociedades anônimas de capital aberto, há ainda outros efeitos relevantes e que derivam do fato de que esse tipo empresarial busca no mercado, na sociedade, fontes de recursos para sua operação. Essa forma de financiamento, que por muito tempo foi subutilizada no Brasil, teve um incremento muito forte nos últimos anos, reavivando o interesse da sociedade nesse tipo de investimento e recolocando o mercado de ações no centro das atenções, nacionais e internacionais.

Consequentemente, na medida em que mais empresas captam recursos do público, prometendo-lhes a possibilidade de ganhos (daí porque as sociedades anônimas têm, por obrigação legal, objetivos sociais que visam ao lucro - lei 6.404/76, art. 2º - clique aqui), há nisto um risco ampliado - o de que, pela má gestão, sejam gerados prejuízos à economia popular, aos investidores, cujos reflexos na cadeia macroeconômica (poupança x consumo x investimento) podem ser catastróficos (p. ex.: retração de investimentos, afetando o crescimento no longo prazo).

Diante desse novo cenário, a governança corporativa que até então era praticada, de modo restrito: nas informações prestadas ao fisco mediante diversos reportes ou nas informações transmitidas a instituições financeiras (locais ou internacionais) para a obtenção de crédito, dentre alguns exemplos; passa a ganhar novos contornos, porque a preocupação social é maior, demandando mais transparência e qualidade de informação, de modo a que a governança corporativa possa ser exercida com maior eficácia.

Não é por outra razão que se aprimoraram os mecanismos contábeis e, no âmbito do mercado mobiliário, passaram a ser estabelecidas regras mais severas para as empresas, algumas das quais de adesão voluntária, e outras não.

Assim, as sociedades anônimas de capital aberto vêem-se sujeitas, nos últimos anos, a terem mais obrigações para com os sócios, mas, sobretudo, para com a sociedade, obrigações essas que estão consubstanciadas, basicamente, nas informações que devam prestar ao público viam demonstrações financeiras, atas de atos societários realizados, fatos relevantes, informes periódicos etc.

A sociedade entendeu que, para que o desenvolvimento possa se dar de forma harmônica, é preciso que ela saiba o que está ocorrendo em seu meio. Assim, para os que investiram em fundos de ações, o que as empresas que captam tais recursos andam fazendo com eles? Os contribuintes querem saber o que as empresas fazem com o dinheiro público que obtém, por exemplo, para desenvolverem projetos culturais. Por que a empresa têm passivos ambientais? Por que ela gasta tanto com recalls? A função social é, portanto, cada vez mais cobrada.

Como, no entanto, a gestão das sociedades, em particular as de capital aberto, é feita cada vez mais por administradores profissionais, saber quem são esses profissionais, o que fazem, o que decidem, passa a ser fundamental para que se conheçam as idéias que irão movimentar uma empresa.

Como os administradores devem zelar pelos interesses da sociedade (vide art. 154 da lei 6.404/76) e não pelos dos sócios, muito menos dos controladores, a regra de precaução razoável é a de se saber o que ocorre com eles no exercício de suas funções.

Será que estão agindo de modo independente? Suas decisões estão livres de privilegiar situações que possam ter, como uma das bases centrais de suas decisões, ganhos pessoais diretos ou indiretos? Quais são seus interesses na sociedade?

Essa preocupação é tanto maior na medida em que a modificação dos critérios remuneratórios, que migraram de valores determinados (salários fixos), para serem cada vez mais variáveis, balizados por metas e resultados propostos e atingidos (bônus, opções por ações etc.), torna mais difícil a apreciação dessas alterações a partir das informações tradicionais (por exemplo: as regras dos arts. 132 e 152 da lei 6.404/76).

É nessa esteira que se coloca a IN CVM 480/09 (clique aqui), como um elemento na busca pela melhoria da qualidade da informação sobre a administração. Mas é ela a importação de um padrão internacional ou é norma de criação local. É ela norma que leva em consideração valores e práticas nacionais ou não? As respostas parecem-me claras. Sim, ela é uma norma local, que certamente bebeu das fontes de outras normas, mas ela é consentânea ao desenvolvimento de nosso mercado de ações, que retomou fôlego, tornando-se muito importante para o desenvolvimento econômico do Brasil e sendo alvo de atenções internacionais (pela sua alta rentabilidade).

Note-se que, num mundo cada vez mais globalizado, não há como serem evitadas influências. Assim, por exemplo, as instituições financeiras locais já estavam submetidas a regras internacionais próprias desse ramo de atividade (as normas de Berna); o fisco passou, em meados da última década do século XX, a olhar com maior atenção para as questões relativas às operações com partes relacionadas, particularmente os preços de transferência (aliás, no caso, as autoridades brasileiras alardearam que o modelo de legislação estabelecido era único e que havia chamado a atenção de inúmeros países para servir-lhes de exemplo), o que já era regulado há tempos em muitos países.

A maior internacionalização da economia impôs a adoção de regras contábeis cada vez mais adaptadas às práticas mundiais de modo a que a contabilidade brasileira fosse mais "legível" pelos estrangeiros e, de outro lado, que os brasileiros pudessem "ler" melhor as contabilidades estrangeiras.

Nesse processo o próprio mercado mobiliário se desenvolveu, com o aparecimento de categorias diferenciadas de emissores de ações. Essas categorias variavam entre aquelas que buscavam uma penetração limitada no mercado, indo até as que visavam a captações amplíssimas, com perspectivas de grande pulverização acionária.

Diante dessa realidade, e dentro das competências regulamentares da CVM (art. 4º da lei 6.404/76 e lei 6.385/76 - clique aqui), foram editadas normatizações que deram conformações variadas às diversas categorias de emissores, em particular no que diz respeito às informações a serem prestadas dentro de uma política de governança corporativa responsável.

É importante, então, ponderar que a adoção de regras de governança corporativa é uma liberalidade daqueles que instituem a empresa, ou seja: adotam um determinado padrão de comportamento num mercado de ações porque acham que ele é compatível e importante para as práticas e atividades que irão realizar e o seu público alvo, não representando isso um constrangimento indevido. Se as regras são muito rígidas, isto é, a governança corporativa pretendida não é tão ampla assim, nada obsta seja adotada uma estrutura mais flexível, sem tantas exigências de divulgação. A adoção ao padrão é, assim, de livre iniciativa, moldado de acordo com o interesse e princípios dos que querem estabelecer o empreendimento e que no processo de sua implantação são claramente divulgados e debatidos, até que seja finalmente concretizado, com a criação legal da empresa.

Fato é que, uma vez adotado, é obrigatório e deve ser cumprido porquanto foi a decisão de seus instituidores.

Surge, então, a questão suscitada pelos administradores: por que temos que ter nossa remuneração exposta de modo tão aberto conforme diz a IN CVM 480/09? Isto não fere o nosso direito à privacidade, particularmente num país de tanta violência e criminalidade? Não nos tornamos alvos fáceis do crime? Não houve "usurpação" de poderes pela CVM?

Minha resposta é não, por vários motivos.

Em primeiro lugar, o administrador afetado pela norma conhece as regras previamente e tem o poder de não aceitar a nomeação para o cargo. Note-se que o administrador é órgão societário, é a sociedade. Se aceita o munus, aceita-o com direito às vantagens, mas também com os encargos. Deve ser observado que, no caso, não há como se falar em violação da privacidade porquanto o administrador tem a liberdade de aceitar a regra ou não e, se a aceita, o faz de livre e espontânea vontade. Ressalte-se que sequer é possível alegar-se a possível existência de vícios de vontade (erro, ignorância, dolo, coação, estado de perigo e outros). A regra do jogo é dada e, em si, não lhe causa lesão qualquer.

Em segundo lugar, o administrador atua com atribuições socialmente qualificadas pela função social que sua empresa exerce na sociedade e que impõe transparência nessa atuação, transparência essa que requer seja possível aferir-se a independência das ações de seus administradores uma vez que serão eles que levarão aos resultados e ao cumprimento da função social. Em outras palavras, a sociedade diz que quem quer participar desse mundo passa a ter telhado de vidro em virtude dos interesses envolvidos.

Em terceiro lugar, o administrador deve respeito ao Estatuto Social, pelo qual é limitado. Se o Estatuto estabelece que a regra a ser seguida é a de transparência, deve ele se curvar ou então estará desrespeitando o Estatuto Social. Se não concorda, que não aceite o encargo ou renuncie a ele.

Em quarto lugar, não há "usurpação" de poderes normativos por parte da CVM uma vez que está dentro de suas competências regulatórias o estabelecimento de regras de operação junto ao mercado para as diversas categorias de emissores de ações integrantes do mercado aberto.

Em quinto lugar, a tese de que a privacidade deve ser assegurada em razão da alta criminalidade do país não tem a menor, uma vez que o que se pleiteia é a concessão de um privilégio. A idéia de que pela divulgação há um risco potencial implica desconhecer que a criminalidade existe em todos os níveis da sociedade e que os sinais de riqueza exterior são múltiplos. Nessa linha, um empresário de sucesso, mas que não é administrador, apresenta sinais de riqueza igualmente captáveis pela criminalidade, sendo vítima em igual potencial que o administrador sem que os criminosos conheçam sua remuneração.

Não há dúvidas que o crime está tão organizado que é capaz de acompanhar as demonstrações financeiras de sociedades de capital aberto, as atas de Assembléias Gerais ou de Reuniões de Conselho, aliás, eles até podem delas participar, obtendo os dados de viva voz, desde que sejam acionistas. Mas essa mesma criminalidade é capaz de ter acesso a informações bancárias, conhecer seus potenciais alvos em razão de exposição contínua na impressa, na vida social, nas informações de crédito que são dadas quando realizamos algumas compras (as lojas de grife são especialistas nisso) etc.

Dessa forma, não há como se dizer que, pela divulgação das informações, as quais, aliás, não são individualizadas, haja o crescimento do risco.

Se a informação divulgada fosse, por exemplo: o endereço residencial ou outros dados privados (nome de filhos, cônjuge, preferências culturais/esportivas etc.), neste caso parece-me que ela seria não razoável, mas não é disso que a norma trata.

Em sexto lugar, essa informação, de uma forma ou outra, já é dada ao mercado, ainda que de modo menos refinado.

Fato é que o exercício da função de administrador de sociedade de capital aberto já embute, em si, o risco, que é mais exacerbado pelos sinais de riqueza que o próprio administrador passa e pelos resultados e exposição de sua empresa. A visibilidade para o crime não é diretamente proporcional à informação que se presta via IN CVM 480/09, mas pela realidade do cargo em si.

Uma vez assim colocado, parece-me que o debate que se estabelece é frágil e não pode ser tratado como um confronto entre direitos individuais vs. normas administrativas-societárias, até porque não me parece haver direito individual violado a merecer tutela protetiva.

O que parece ser relevante é o sinal de que os administradores mostram relutância em serem submetidos a um escrutínio mais pormenorizado, que possa levar ao questionamento não só de suas ações, mas também do quanto se beneficiam a partir delas. Que ganhem bem, mas dentro de padrões de lisura e probidade.

Também é importante ponderar que, na medida que o mercado de ações floresce no Brasil, nele ingressando cada vez mais investidores pessoas físicas, de diferentes níveis econômicos, que vêem nele uma forma promissora de investimento, o comportamento desse mercado, e nele, de seus agentes, sobre a economia popular, aguça a necessidade de maior regulação, como parte da precaução do interesse social envolvido.

Finalmente, e já que se buscaram argumentos de antagonismo à norma na área criminal, é de se comentar que estamos apenas engatinhando pelo mundo dos crimes empresariais, que incluem a gestão fraudulenta, o insider trading, pelo que o princípio da precaução, que está assentado na IN CVM 480/09, parece uma forma adequada de dar guarida à valorização da função social da propriedade em harmonia com preceitos de proteção da individualidade, até mesmo com intenções educativas e profiláticas, tendentes a reduzir a criminalidade do colarinho branco.

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*Advogado do escritório Advocacia Muzzi





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