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Alegria de viver

O ilustre jurista Miguel Reale, uma das inteligências mais completas do país, trouxe originais contribuições para o pensamento jurídico. Sua característica alegria de viver e conviver funcionava como força motriz de sua atividade intelectual, bem como sua coragem frente aos desafios e infortúnios.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Atualizado em 18 de novembro de 2010 16:49


Miguel Reale Centenário

Alegria de viver

Gilberto de Mello Kujawski*

Que Miguel Reale foi das inteligências mais completas do Brasil, todos nós sabemos. Filósofo, antes de tudo, fértil em contribuições originais para o pensamento, professor com a vida inteira dedicada ao magistério superior, jurista que imprimiu sua marca ao novo Código Civil (clique aqui), administrador de pulso e larga visão, como provou na reitoria da USP, Reale está consagrado, nacionalmente e internacionalmente, por sua gloriosa carreira intelectual. Por sua inteligência brilhante em múltiplos setores.

Falar sobre o autor de "Verdade e conjectura" é falar sobre uma inteligência de sobejo conhecida. Mas o que ocorre é que nossa inteligência não funciona no vácuo nem a frio. Ela exprime a totalidade da pessoa, está vinculada à nossa pessoa, à minha pessoa, que nada tem a ver com a pessoa do meu vizinho. Nossa inteligência tem a cara de nossa pessoa, de nossa biografia, do que fazemos e nos acontece. É forma de conduta na qual se reflete a totalidade de nossa vida, única e insubstituível.

A inteligência de Platão não pode ser transplantada para a pessoa de Aristóteles, nem a de Aristóteles para Platão. Por quê? Porque cada um é cada um: o eu, a circunstância, o caráter, as emoções, a biografia de um e outro pensador não coincidem, são pessoais e insubstituíveis. Santo Tomás de Aquino e Maquiavel, o primeiro vivendo na Idade Média, o segundo no Renascimento. Seria possível imaginar o autor da Suma Teológica, um homem de fé e de orações, com a cabeça de Maquiavel, homem mundano, político, ou este com a cabeça de Santo Tomás?

Não, porque a inteligência não é a mesma para todos, e não é a mesma porque se alimenta, tem raízes, em pressupostos pré-intelectuais, eu e minha circunstância, minha localização no tempo e no espaço, meu caráter, minhas emoções e trajetória biográfica. Eis aí o grande paradoxo. A inteligência não se alimenta da pura inteligência, nem se move por si mesma; ela se alimenta, é movida e condicionada por fatores que nada têm a ver com ela: "as raízes pré-intelectuais da inteligência", na expressão do filósofo espanhol Julián Marías.

Pensemos no entusiasmo, por exemplo. O entusiasmo, que em si nada tem a ver com a inteligência, constitui o melhor combustível da atividade intelectual em todos os setores. O entusiasmo injeta na inteligência sua força aerostática, fazendo-a subir de nível e alargando ao máximo seu horizonte de percepção.

No caso do nosso mestre e amigo Miguel Reale, seu entusiasmo dominante foi a alegria de viver. Reale irradiava alegria de viver por todos os poros. Fogosa, exuberante e apaixonada alegria de viver, que para ele significava, antes de tudo, alegria de conviver. Conviver com a família, com o estudo, o trabalho, amigos e colegas, com essa outra família que era a Academia de Direito, sem esquecer as grandes figuras do seu tempo no pensamento, no direito e na política.

A alegria desbordante de viver infiltrava-se em tudo o que ele fazia, falava ou escrevia, animava seus dias, e brilhava em seu olhar. A alegria, o entusiasmo de viver, impelia sua inteligência às alturas até os mais altos cumes, e explica a largueza e a pluralidade de sua inteligência sintética e integradora.

A alegria de viver inspirava em Reale seu projeto, nitidamente renascentista, de ser um homem completo (o pensador, o jurista, o docente, o poeta, o homem de doutrina e o homem de ação, o brasileiro de S.Bento do Sapucaí, com raízes italianas, e o espírito universal), abraçando a vida na diversidade e multiplicidade dos aspectos que oferece.

Era a alegria de viver que dilatava seu espírito de modo a englobar divisões e contraposições acadêmicas tais como direita e esquerda, indivíduo e sociedade, capitalismo e socialismo, vida pública e vida privada, experiência e conjectura, e, finalmente, vida e morte. Miguel Reale Júnior, em artigo recente, lembra que o legado maior de seu pai foi a crença na grandeza da pessoa humana e, em função dessa grandeza e dignidade da pessoa, a crença na existência sem corporeidade, isto é, na vida perdurável (O Estado de S.Paulo, 6-11-2010).

Bem ao contrário da maioria dos pensadores contemporâneos, entretidos com penultimidades, Reale colocava na linha de frente sua preocupação com as ultimidades, o envelhecimento, a morte e a imortalidade.

Outra raiz pré-intelectual de sua magistral inteligência, conhecida e aplaudida por todos, foi sua extraordinária coragem. Seu desassombro, sua serenidade imperturbável, própria do romano antigo, perante os riscos, os desafios, as agressões, os infortúnios próprios e de família, as ameaças de catástrofes, que o destino nos reserva. Nada, nenhuma ameaça, nenhum estremecimento da sorte, podia alterar seu admirável sangue frio. Sabia olhar de frente para o abismo e sobrepor-se a ele com sua força moral.

Aliás, não é a coragem irmã da alegria de viver, que nos inspira inovações arriscadas e aventuras temerárias além da linha do horizonte?

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*Ex-promotor de Justiça. Filósofo e ensaísta

 

 





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