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A volta dos porões

Sem a presença de advogado acertam-se prêmios com criminosos, ajustam-se depoimentos, modelam-se declarações para apresentá-las aparentemente límpidas. Sequestram-se pessoas. Dá-se sumiço às provas filmadas e gravadas das torturas psicológicas.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Atualizado em 9 de dezembro de 2010 16:36


A volta dos porões

Pedro Gordilho*

"Não nascemos apenas na posse de nossa liberdade, mas com a incumbência de defendê-la". - La Boétie

Na ditadura era assim: delação, prisão, tortura e, às vezes, assassinato. Não é fabulação. Era a realidade. A verdade era buscada através da tortura. Fomos todos testemunhas de violências - alguns alcançaram até um estado de insensibilidade, já que a violência chegou a ser parte do nosso cotidiano. A magistratura se agigantou naqueles tempos macabros. Foi um juiz Federal de 32 anos quem declarou a União responsável pela morte de Wladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura. A sentença de Couture estava viva: "Quando um juiz tem medo, ninguém pode dormir tranquilo". O juiz não teve medo. Podíamos dormir em paz.

Buscavam os torturadores a delação, a entrega dos nomes dos companheiros que lutavam pelo fim da ditadura. Eles resistiam bravamente. Eram torturados nos porões.

Parece que os porões estão de volta. A tortura física, pau-de-arara, choques elétricos, talvez não. Pelo menos na extensão daqueles tempos fétidos. Mas o produto já se colhe.

Sem a presença de advogado acertam-se prêmios com criminosos, ajustam-se depoimentos, modelam-se declarações para apresentá-las aparentemente límpidas. Sequestram-se pessoas. Dá-se sumiço às provas filmadas e gravadas das torturas psicológicas. Queimam-se as roupas usadas pelas vítimas, as quais poderiam conter provas exuberantes, o tipo sanguíneo, o tecido da pele dos assassinos, por exemplo. Reconstituições e acareações, sem a presença de testemunhas idôneas e de advogado, são realizadas. Até uma aposentadoria precoce, em meio a investigação dessa relevância, se contabiliza.

Temos um assassino confesso que, em detalhado depoimento de 13 laudas, prestado no dia 17 de novembro de 2010, na 8ª Delegacia de Polícia, perante o Delegado de Polícia Elivaldo Ferreira de Melo, declarou: "Esse crime foi praticado somente pelo interrogando e PAULINHO, os quais não receberam o auxílio de ninguém, quer seja antes ou depois de praticá-lo. ADRIANA VILLELA não teve nenhuma participação nas condutas praticadas pelo interrogando e PAULINHO. Não há mandantes no crime que o interrogando e PAULINHO praticaram".

Logo a seguir a Dra. Delegada, responsável pelas investigações, mas não responsável por essa prisão, sem se deter nessa irrecusável evidencia, reafirma: Adriana é culpada.

Dias depois, na unidade policial dirigida pela Dra. Delegada, ninguém sabe a que custo, o mesmo assassino confesso muda completamente seu depoimento. Não seria ele o assassino. Aliás, nem teria ido ao apartamento das vítimas...

Seu comparsa Paulo Cardoso Santana (Paulinho) isentou enfaticamente Adriana Villela, pela televisão e pelos jornais. Todos nós vimos sua imagem, suas palavras nervosas, mas claras, declarando que Adriana não era culpada de nada. Não ficou nisso. O depoimento que prestou em 18 de novembro de 2010 na sede da Delegacia na cidade de Montalvânia/MG, perante o Delegado José Roberto Soares Batista, é concludente: "Perguntado se Adriana Villela, filha do casal Villela, participou de alguma forma do crime, o declarante respondeu que, apesar de não conhecê-la, afirma que ela não participou do referido crime, pois toda ação criminosa foi planejada e executada somente pelo declarante e por seu tio Leonardo".

Dias depois, na unidade policial dirigida pela Dra. Delegada, este comparsa também muda o depoimento e acusa Adriana, seguindo a mesma cartilha do primeiro assassino.

A Dra. Delegada segue a mesma linha: Adriana é culpada.

É assim, mediante faltas que se imaginam aceitáveis, que as sociedades se decompõem. Os motivos são distintos. A base, porém, é sempre a mesma: a ordem, a segurança, o clamor, ainda que fundados na inverossimilhança e na mentira.

Mas muito acima de tais aspirações, dizemos os que confiam no estado democrático de direito, está a justiça. Ernest Bloch, entre tantos, prova isso. Seus escritos A injustiça do pessimismo - no qual emprega o princípio de Hölderlin "onde há perigo cresce a salvação" -, seu apoio escrito ao manifesto notável de Thomas Mann e seu ensaio O intelectual e a política estão entre as melhores páginas dos que combatem a opressão que maus agentes de Estado praticam em nome da ordem, da segurança e do clamor público.

Daí a atualidade da grave advertência de La Boétie, feita mais de quatro séculos e meio atrás: a obediência é a condição inevitável e o liame indispensável de todas as sociedades humanas. É esta obediência justa e necessária que, alterada em seus traços essenciais e desviada de seu legitimo objetivo, torna-se servidão.

A arte de tirania consiste em confundir esta obediência com a servidão, a ponto em que as duas coisas pareçam não ser mais do que uma só e o vulgo se torne incapaz de distingui-las.

Nós temos que saber fazer a distinção.

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*Advogado do escritório Gordilho, Pavie e Frazão Advogados Associados

 

 

 

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