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A perigosa e estapafúrdia eleição direta para órgãos diretivos dos Tribunais

Existe uma tendência de defesa das eleições diretas para os cargos diretivos dos Tribunais, sob os mais variados argumentos, sendo o mais usado de que, uma vez instituídas, haveria uma "maior democracia interna" da magistratura. Todavia, trata-se de tema a exigir serena reflexão por todos aqueles que se dedicam ao estudo do Poder Judiciário e, por consequência, da magistratura.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Atualizado em 19 de janeiro de 2011 16:24

A perigosa e estapafúrdia eleição direta para órgãos diretivos dos Tribunais

Ovídio Rocha Barros Sandoval*

Li no nosso querido Migalhas a notícia de que o deputado Vicentinho apresentou Projeto de Emenda Constitucional, para modificar o art. 96 da Constituição para introduzir eleições diretas para os cargos diretivos dos Tribunais, incluindo como eleitores juízes e, pasmem, servidores do Poder Judiciário.

Em diversas oportunidades venho alertando a consciência jurídica da Nação brasileira e aos verdadeiros magistrados, sobre tão perigosa e estapafúrdia eleição direta para órgãos diretivos de nossos Tribunais.

Existe uma tendência de defesa das eleições diretas para os cargos diretivos dos Tribunais, sob os mais variados argumentos, sendo o mais usado de que, uma vez instituídas, haveria uma "maior democracia interna" da magistratura.

Todavia, trata-se de tema a exigir madura e serena reflexão por todos aqueles que se dedicam ao estudo do Poder Judiciário e, por consequência, da magistratura. Reflexão que procuro fazer, neste artigo, levando em conta a minha experiência como magistrado, por quase vinte anos, bem como do exercício das funções de Juiz Corregedor da Corregedoria-Geral da Justiça e de Juiz Auxiliar da Presidência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, além de ser um estudioso, há mais de trinta e cinco anos, das questões atinentes ao Poder Judiciário.

Existe uma certa tendência à novidade, com reclamos de modernidade e de anseios ditos democráticos1.

Todavia, novidades, modernidades e avanços ditos democráticos podem se constituir em um risco capaz de colocar em xeque, não apenas a independência, como também a harmonia de propósitos que ditam, entre outros valores, a atuação dos juízes.

A política sempre teve, como raiz, a disputa e os contrastes se afloram. A possível amplitude de eleições, para cargos diretivos dos Tribunais de Justiça estaduais, com a participação de todos os magistrados, inexoravelmente, irá aumentar e distender a disputa e, por via de consequência, acirrar divisões entre os membros do Poder Judiciário. E o Projeto de Emenda do Deputado inclui, entre os eleitores, os servidores da Justiça: tema próprio do teatro dos absurdos...

"Quando a política penetra no recinto dos tribunais - lembra GUIZOT - a Justiça se retira por alguma porta"2.

Formam-se diversos grupos de política interna dentro do Poder Judiciário, prejudicando uma serena atividade judicante. Plantam-se candidatos, à espera de um possível lançamento na disputa dos cargos. A oferta de favores ou troca de benesses, em negociações de apoio político, são inevitáveis, como inevitável, muitas vezes, a cizânia e com ela a divisão entre os juízes, com o cultivo das desavenças que ninguém aproveita. O saudoso e querido amigo desembargador ALVES BRAGA, no seu antológico discurso na instalação do ano judiciário de 1983, recordava as palavras de advertência de Cristo em seu Evangelho (Mt 12,25): "Todo reino, dividido contra si mesmo, será desolado; e toda a cidade ou família dividida contra si mesma, não subsistirá"3.

De outra parte, não haverá como evitar a entrada, no palco das lutas internas, da política externa a influenciar magistrados e grupos dedicados à conquista do poder. Aí, então, as consequências serão nefastas: políticos, de fora, a influenciar as eleições internas dos cargos diretivos dos Tribunais. Muitos magistrados passarão a ter suas imagens identificadas e moldadas pelas diversas correntes políticas e partidárias.

Será que esse quadro, pintado em rápidas pinceladas, representa avanço democrático na vida interna do Poder Judiciário?

Deveriam os juízes ter seus olhos voltados para a nobre instituição do Ministério Público, onde há eleição geral, a começar para o cargo de Procurador-Geral de Justiça. As lutas políticas internas são claras e, na maioria das vezes, desastrosas para a unidade de tão respeitada instituição, sem falar na influência exercida pelas correntes político-partidárias externas. Criam-se situações preocupantes entre seus membros, com posições, muitas vezes, irreversíveis.

Tive a oportunidade de trocar ideias com inúmeros e notáveis baluartes da nobre instituição do Ministério Público e sentir a preocupação de todos eles, pelos rumos que a chamada democratização estão tomando, na época moderna e atual4. Alguns deles, eminentes Procuradores de Justiça, chegaram a dizer que a triste experiência vivida pelo Ministério Público haveria de servir para que a magistratura nunca viesse a implantar o sistema das eleições diretas para os cargos diretivos dos Tribunais.

Aliás, a Lei Orgânica do Ministério Público teve o cuidado de retirar das eleições gerais o cargo de Corregedor-Geral. Cuidado que a proposta de reforma do Poder Judiciário do ano de 2004 não teve e repetida no Projeto, ora analisado. E, assim, um desembargador, candidato ao cargo de Corregedor-Geral de Justiça, sai em campanha pelas diversas comarcas do Estado, para angariar votos. Elege-se. Em virtude de um determinado fato se vê obrigado, como Corregedor-Geral, a abrir sindicância contra um juiz e vai ouvi-lo em seu gabinete. Chega o juiz e recorda: "Desembargador, em sua eleição para Corregedor-Geral, fui seu cabo eleitoral e, como Vossa Excelência sabe, consegui a seu favor, em minha região, dezessete votos..."

E assim caminha a carruagem...

Felizmente, a proposta das "Eleições Diretas" não teve fruto na Reforma implantada pela Emenda Constitucional 45/2004 (clique aqui).

Nas indicações de juízes para promoção, passará a ser levado em conta mais um critério de "avaliação do merecimento": a qual corrente política pertence o candidato à promoção? Vale a pena promovê-lo, se pertence a um grupo político contrário ao meu?"

Permanecendo a escolha para os cargos diretivos nas mãos dos integrantes de cada Tribunal, há e haverá sempre um relacionamento de coordenação, jamais de subordinação. O ilustre ministro NÉRI DA SILVEIRA, em v. voto proferido perante o colendo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, recorda que "nos colégios judicantes" os "seus membros, desde o mais antigo até o mais moderno, têm o inter-relacionamento definido por relações de coordenação e de equipolência, responsáveis, todos, pelo equilíbrio do organismo colegiado" e "não se compreende, entre pares, as relações de subordinação ou de superioridade, reservando-se, a todos, a participação equitativa nos benefícios e nos encargos do colegiado, na forma segundo a qual este se venha a organizar"5. Co-responsáveis "são todos os membros do colegiado, paritariamente, em princípio, na consecução dos objetivos permanentes da instituição, de tal sorte que aqueles a quem incumbe dirigi-lo, presidem-no, não como superiores em relação aos seus pares, mas antes e sempre segundo a maneira própria da coordenação"6.

Com a abertura das eleições, para todos os juízes, ao lado do relacionamento de coordenação entre os integrantes do Tribunal de Justiça, passariam a existir relações de subordinação entre os desembargadores e os demais magistrados.

Tive a oportunidade honrosa de cooperar com o eminente ministro SAULO RAMOS, na elaboração de parecer sobre a inconstitucionalidade da Emenda à Constituição do Estado de São Paulo que previa a eleição dos cargos diretivos do egrégio Tribunal de Justiça por todos os juízes estaduais, onde se recorda o anterior aresto do Pretório Excelso, já citado, quando o saudoso ministro CLÓVIS RAMALHETE, prevendo a hipótese de que algum dia viriam exigir que os dirigentes dos Tribunais fossem eleitos por todos os juízes do respectivo Poder Judiciário, lembrou tratar-se de ideia antiga, "concepção nascida, sob o rumor e dentro da caligem da queda das paredes da Bastilha, quando o panfletário admirável que foi o Abade Syeiès, lançou seu pequeno e destruidor libreto, em que indagava o que é o Terceiro Estado?" que, para ele, seria o povo e neste estaria a sede da soberania e, consequentemente, a representatividade única do eleito proveria da eleição popular. A partir daí

"... perduram certas concepções fundamentais, porém utópicas, despidas de realismo na atualidade, a propósito de que a representatividade dos órgãos porventura provenha da universalidade dos votantes. Não é tal. A eleição por votantes qualificados também confere representatividade,"7

vindo a acrescentar:

"Estes calores da revisão do 'ancien régime', ainda hoje aquecem inteligências; mas muitas vezes, de modo enganoso. Não é exato, por exemplo, que para haver representatividade do eleito haja necessidade da universalidade dos votantes.

Não tenho notícia que sequer o mais místico, dentre os católicos, tenha votado na eleição do Papa. A eleição de Sua Santidade é feita por um colegiado qualificado. Mas não há, dentre os católicos, quem negue a representatividade de Cristo ao Papa.

Os católicos têm, no Papa, o representante de Nosso Senhor Jesus Cristo na terra, apesar de eleito apenas por um Colégio de Cardeais, conduzido pela inspiração do Espírito Santo, tal como é entendido na ortodoxia católica, a escolha do Papa"8.

O saudoso Ministro CLÓVIS RAMALHETE, recorda, ainda, a eleição qualificada para os membros da Corte Internacional de Justiça da ONU, vindo a acrescentar: "Estamos vendo, ao logo desse discretear sobre modos eleitorais, o do Papa e o do Juiz da Corte Internacional de Justiça, o quanto se pode por em crise o conceito belamente utópico, de representatividade e de eleição pelo povo, tal como concebido no Século XVII, dentro dos estremecimentos da era das revoluções liberais, a Revolução Francesa e outras, que percorreram desde os Estados Unidos, penetraram na Suíça, na Rússia, na Suécia", vindo a concluir:

"Continuo a descer, e, cada vez que desço, mais concretude ganha a minha posição de admitir que há, sim, representatividade num eleito, ainda que tenha sido ele votado apenas por comunidade qualificada na lei"9.

Dentro da nobre classe dos advogados, a diretoria e, por via de consequência, o Presidente do Conselho Federal da OAB - órgão máximo da Ordem - é eleito pelo colégio qualificado dos conselheiros seccionais e por seus ex-presidentes.

Todas as ponderações, ora feitas, levam a uma serena reflexão: será bom para o Poder Judiciário a eleição dos cargos diretivos dos Tribunais de Justiça por eleitores-juízes ?

Estaremos a avançar, ou abraçando uma perigosa modernidade de uma pseudo-democratização do Poder Judiciário ?

Haverá, pela só razão de instituírem-se eleições gerais, uma melhoria para a atuação jurisdicional dos juízes, bem como dos seus serviços auxiliares ?

Haverá melhoria na atuação jurisdicional e administrativa dos Tribunais de Justiça, com a implantação das eleições gerais ?

A universalidade dos votantes será motivo de aplausos ou, ao contrário, veículo de preocupações pelos diversos riscos que encerra ?

São perguntas que estão a exigir, a partir de uma serena reflexão, respostas conscientes por parte de todos aqueles que almejam um Poder Judiciário independente, altivo e capaz de defender a soberania de suas decisões e sem se deixar influenciar por correntes políticas internas e externas.

Por fim, deve permanecer diante de todos a serena e oportuna observação feita pelo eminente e saudoso desembargador ALVES BRAGA, meu querido e inesquecível amigo, em carta a mim enviada, no ano de 1983: "A esperança é que a nova geração se compenetre que a magistratura não é simples emprego. Ser magistrado é estado de espírito"10. Estado de espírito capaz de entender que a luta política, ao invés de trazer melhores caminhos à magistratura, irá introduzir em seu seio a disputa, a divisão, a desgraça de minar entre seus membros desavenças, muitas vezes irreversíveis e de vestir juízes, não com a toga da independência e da serenidade, mas com os ternos dos políticos.

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1 RALF DAHRENDORF observa que com a modernidade, os perigos para a liberdade são diferentes. Para o ilustre professor de Ciências Sociais da Universidade de Constança, "todas as palavras cativantes do ideário modernista - democratização, individualização, comunitarismo e assim por diante - passaram a descrever uma atitude que ajuda a enfraquecer e, em última análise, a corroer as instituições sociais. Elas tendem para a liberdade sem sentido, uma liberdade de escolha sem escolhas que façam sentido. Elas servem para aumentar os distúrbios, a dúvida e as incertezas de todos". E acrescenta: "os falsos arautos da liberdade estão cheios de boas intenções, mas preparam o caminho que poderá nos levar, se não para o inferno, ao menos para o mais próximo dele na Terra, que é a anomia" ("A Lei e a Ordem", Publicação do Instituto Tancredo Neves e Fundação Friedrich Naumann, Bonn, ed. 1987, pg. 146).

Acresça-se: O homem moderno é instável e mutável, diante do ritmo agitado da ciência e da técnica em constante avanço. Tal situação o arrasta "para maneiras de ver e de fazer cada vez mais novas". Ademais, tem profunda aversão a tudo que foi transmitido pelo passado, a qualquer forma de tradição (BATTISTA MONDIM, "Antropologia Teológica", Ed. Paulinas, S. Paulo, 4ªed., 1986, pgs. 47/49).

2 EDGARD DE MOURA BITTENCOURT, "O Juiz", Ed. Jurídica Universitária, S. Paulo, ed. 1966, p. 44.

3 Separata da Revista LTr, S.Paulo, vol. 47.

4 Alguns anos atrás conversava com um eminente desembargador vindo do quinto constitucional do Ministério Público, que me relatou um sugestivo fato. Era Promotor de Justiça na comarca da Capital há 15 anos e um filho de vizinho seu se inscreveu ao concurso de ingresso, tendo sido aprovado e nomeado Promotor de Justiça Substituto. Ajudara o moço, orientando-o no concurso, bem como nos primeiros passos na carreira. O jovem Promotor Substituto, sabendo que o Procurador-Geral de Justiça fazia parte de facção da qual não pertencia o velho Promotor, procurando ser gentil, disse: "Tenho boas relações políticas com o Dr. Procurador-Geral e, assim, poderei ajudá-lo para uma possível indicação para o cargo de Procurador de Justiça".

5 "RTJ", vol. 103/43, especialmente pg. 55.

6 Idem.

7 "Revista" e vol. cits., pg. 62.

8 Idem.

9 Ibidem, pg. 63. Em seguida, anota-se: "Mas resta o mito, nas consciências, o belo mito com a força das ideias antigas, venerandas, mas só próprias para museu, lugar certo para elas. Fica o mito da ideia antiga, a de que é necessário, para haver representatividade, que ela provenha da universalidade dos eleitores. Trata-se de um mito político, esse, o da representatividade ser privilégio do voto universal, e que a eleição indireta ou de comunidade eleitoral qualificada, não é representativa" (pg. 64).

10 Aliás, o eminente advogado e meu querido amigo há mais de 50 anos RUBENS FERRAZ DE OLIVEIRA LIMA que foi um notável juiz, sendo desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, sempre defendeu a ideia de que "para um Juiz sentir-se feliz, deva bastar o exercício da jurisdição. Os cargos que ele vier a ocupar no curso da carreira devem ser considerados como missão recebida por estar, naquele momento e naquela conjuntura, em determinada situação e ser apto a exercê-la. É claro que, hoje, se exige de um Presidente de Tribunal qualidades que transbordam às necessárias para bem julgar. Sensibilidade e visão política não se confundem com atividade política que, por sua própria natureza, gera a disputa pelo poder e as consequências danosas dela decorrentes. No momento em que ao juiz não basta ser juiz, surge a ambição política, o desejo de aparecer, de ocupar cargos, a perda da independência e os compromissos com teses que o juiz não deva ter, pois nunca sabe as causas que, no futuro, terá de julgar".

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*Advogado do escritório Advocacia Rocha Barros Sandoval & Costa, Ronaldo Marzagão e Abrahão Issa Neto Advogados Associados

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