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Bagrinhos e zangões

Arnaldo Malheiros Filho

Na verdade, a grande maioria dos países limita a atuação de advogados estrangeiros, até porque seria um contrassenso permitir que quem não tem formação - tanto acadêmica quanto prática - no Direito local exerça ali a advocacia. Por isso, sem embargo do respeito e consideração, não consigo concordar com a afirmação de que "os advogados estrangeiros poderiam vir para o Brasil".

quarta-feira, 16 de março de 2011

Atualizado às 08:14

Bagrinhos e zangões

Arnaldo Malheiros Filho*

Está na ordem do dia o debate sobre a legalidade da atuação, no Brasil, de escritórios de advocacia estrangeiros. Debate que acaba de se enriquecer pela participação do grande advogado Fernando Pinheiro em Migalhas (clique aqui).

Como discordo desse dileto amigo, ouso trazer considerações divergentes, ressaltando minha imparcialidade para discutir o tema. É que pratico a advocacia criminal artesanal, integro uma sociedade de advogados no estilo boutique, pela qual nenhum escritório estrangeiro - que eu saiba - teria interesse.

Se a discussão é sobre a legalidade da atuação dos estrangeiros, temos que nos guiar, principalmente, pelo Estatuto (lei 8.906/94 - clique aqui). Há muitos colegas que o criticam - eu mesmo discordo frontalmente de alguns dispositivos - mas não vejo sentido em fazermos aqui uma discussão de lege ferenda; o Estatuto é a nossa lei e nem mesmo provimentos ou atos da própria Ordem podem a ele se opor ou contorná-lo.

Como em qualquer país civilizado, o exercício da advocacia no Brasil é privativo das pessoas físicas inscritas na Ordem (Estatuto, art. 3º). Nos Estados Unidos, país de onde vêm muitos dos pretendentes a aqui se estabelecer, a habilitação é estadual; quem quiser advogar em mais de um Estado tem que prestar exame em cada um deles. Nossa lei, mais generosa, concede habilitação nacional (art. 7º, nº I). Os advogados podem, se o desejarem, reunir-se em sociedade civil (ou seja, não pode ser sociedade empresária), sem prejuízo do caráter pessoal da profissão (art. 15). Para evitar qualquer dúvida possível, diz o art. 16 que a sociedade de advogados não pode ter "forma ou características mercantis".

Isso tudo deixa muito clara a impossibilidade jurídica, de jure condito, da instalação de sociedades de advogados não inscritas na OAB, ou que tenham na condição de sócio pessoa sem esse requisito.

Meu amigo Fernando Pinheiro diz que isso, que ele chama de "reserva de mercado", fazia sentido no tempo em que o Brasil era mero receptor de capital estrangeiro, não hoje que passamos a ser, também, exportadores de capital. E o Japão (citado por ele), seria menos exportador de capital do que o Brasil?

Na verdade, a grande maioria dos países limita a atuação de advogados estrangeiros, até porque seria um contrassenso permitir que quem não tem formação - tanto acadêmica quanto prática - no Direito local exerça ali a advocacia. Por isso, sem embargo do respeito e consideração, não consigo concordar com a afirmação de que "os advogados estrangeiros poderiam vir para o Brasil". Os daqui sujeitos a exame de Ordem e os de lá não? Seriam, mesmo, os brasileiros a querer reserva de mercado ou os de fora a reivindicar privilégios?

E além de privilégios, querem eles agir com "jeitinho", que à socapa execram nos brasileiros. Muitos deles não se pejam de assoar pela imprensa que assessoraram esta ou aquela transação entre empresas nacionais, ou seja, não só violando o dispositivo de lei que veda sua atuação como anunciando descaradamente que o fazem. Afinal aqui temos leis! É assim que eles pretendem aconselhar-nos sobre nosso Direito?

Na verdade, o que está muito claro é que esses escritórios estrangeiros querem abocanhar os honorários dos clientes de seus lugares de origem que tenham interesses aqui, dando um capilé para o advogado brasileiro que faz o trabalho. Como os zangões do cais do porto, querem fazer os advogados brasileiros de bagrinhos, sugando-lhes a mais-valia.

E, francamente, dizer que já vivemos em um mundo sem fronteiras é não ter noção do que é o protecionismo comercial dos países desenvolvidos ou de um guichê de imigração em aeroporto estrangeiro.

Já a informação de que "em alguns países os escritórios de advocacia estão lançando ações em bolsas de valores" é de arrepiar. Ora, a companhia, apenas por sua forma, já se considera sociedade empresária (CC, art. 982, parágrafo único), o que é vedado pela lei vigente e contraria, isto sim, nossa cultura, desde Montezuma.

O único objetivo da sociedade por ações é o lucro, que não pode ser o único objetivo da advocacia. Os acionistas querem dividendos, o que se traduz para os advogados em billing goals, ou metas de faturamento, que têm que atingir, precise o cliente ou não de seus serviços. Se um desses escritórios vier a se instalar no Brasil, teria sua lucratividade exigida pelos adquirentes de ações em Bolsa e estaria sujeito às práticas de "governança corporativa", transparência, disclosure, tudo que é direito do acionista, mas é incompatível com o sigilo que caracteriza a prestação de serviços de advocacia.

As empresas que acham sempre bem-vinda a concorrência verão como é bom receber faturas de quem precisa ter bom desempenho no mercado de capitais.

Por isso, reiterando meu respeito e apreço por esse excelente colega que é Fernando Pinheiro, peço licença para discordar. Faço-o sem usar nenhum argumento filosófico, para que não seja classificado de "pseudo filosófico", nem posso ser acusado de defensor de reserva de mercado, pois minha militância não é alvo do apetite estrangeiro.

Quero apenas um ambiente saudável para a advocacia. Não quero ver colegas suando a camisa para aumentar cotações de Bolsa ou engordar dividendos de investidores.

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*Advogado do escritório Malheiros Filho, Camargo Lima e Rahal - Advogados

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