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Cessão de marca e locação de bem móvel: um evidente equívoco do STF

O recente acórdão proferido pelo STF na Reclamação 8.623 trouxe grande perplexidade ao meio jurídico ao afirmar que o licenciamento de marca não configura locação de bem móvel, sendo-lhe, pois, inaplicável a súmula vinculante 31.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Atualizado em 10 de maio de 2011 10:30

Cessão de marca e locação de bem móvel: um evidente equívoco do STF

Paulo Roberto Andrade*

O recente acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 8.623 (clique aqui) trouxe grande perplexidade ao meio jurídico ao afirmar que o licenciamento de marca não configura locação de bem móvel, sendo-lhe, pois, inaplicável a súmula vinculante 311.

O entendimento veio anunciado no trecho final do voto do relator, ministro Gilmar Mendes. Confira-se:

"Por fim, ressalte-se que há alterações significativas no contexto legal e prático acerca da exigência de ISS, sobretudo após a edição da lei complementar 116/03, que adota nova disciplina sobre o mencionado tributo, prevendo a cessão de direito de uso de marcas e sinais na lista de serviços tributados, no item 3.02 do Anexo.

Essas circunstâncias afastam a incidência da Súmula Vinculante 31 sobre o caso, uma vez que a cessão do direito de uso de marca não pode ser considerada locação de bem móvel, mas serviço autônomo especificamente previsto na lei complementar 116/03".

A existência, na lista de serviços tributáveis pelo ISS, de um item específico para "cessão de marca" teria, assim, o condão de desnaturar a atividade, de conferir-lhe um status novo e distinto da atividade de locação de bem móvel à qual, até então, subsumia-se.

O raciocínio, evidentemente, pode ser estendido a outras formas de locação de bem móvel igualmente contemplada com item próprio na lista, como locação de postes e dutos (item 3.04) e licenciamento de software (item 1.05), daí a ainda maior relevância dessa decisão.

Com o merecido respeito à autoridade do eminente ministro relator, divirjo enfaticamente do entendimento manifestado, que reputo mesmo teratológico. Explico-me.

A lista de serviços anexa à LC 116/03 (clique aqui) é repleta de itens que mantêm, entre si, relação "gênero-espécie". Serviços de reforma de pontes (item 7.05) são serviços de engenharia (item 7.01); recondicionamento de motores (item 14.03) é uma espécie de conserto de veículo (item 14.01); apresentação de palestras (item 17.24) é uma maneira possível de promover instrução e orientação educacional (item 8.02).

Tão inconteste é essa realidade que a doutrina concebeu uma regra exegética para lidar com ela, qual seja, a regra da especificidade, segundo a qual o item mais específico prevalece sobre o mais genérico, atraindo para si o enquadramento das materialidades a ele 'subsumíveis'.

Os itens mais específicos da lista são a rigor desnecessários, pois os itens genéricos já são arquétipo legal bastante a deflagrar a incidência da norma instituidora do ISS. Não existisse o item 7.05, e a atividade de reforma de pontes, típico serviço de engenharia que é, seria perfeitamente tributada pela via do item 7.01.

A nosso ver, a utilidade e conveniência na previsão de itens específicos na lista está em (i) afastar, pedagogicamente, eventuais controvérsias sobre a incidência do ISS a espécies de enquadramento genérico fugidio e, principalmente, (ii) permitir que se dispense disciplina jurídico-tributária distinta à espécie contemplada com o item específico. Estando o serviço de reforma de pontes destacado do item genérico de engenharia, o legislador pode, por exemplo, dispensar-lhe uma alíquota distinta, ou regime especial uniprofissional, etc.

Cessa aí a relevância dos itens específicos da lista. A existência de um item específico, eis o fundamental, não implica mudança da natureza jurídico-civil do serviço, muito menos da ontologia daquela materialidade captada da realidade. A previsão de um item específico, enfim, não modifica a sua pertinência ao respectivo gênero.

Ora, se acaso o legislador complementar acrescesse à lista um item para "serviços de cardiologia", essa atividade deixaria de pertencer ao gênero "medicina", já contemplada com item próprio? É evidente que não.

Para que - neste estapafúrdio, porém elucidativo exemplo - a cardiologia deixasse de pertencer ao gênero medicina, seria necessário que a lei civil - neste caso, a Resolução 1.845/08 (clique aqui) do Conselho Federal de Medicina - dispusesse que esse segmento do conhecimento científico não é mais reconhecido como especialidade médica. Nessa hipótese, aí sim, a cardiologia alçaria à condição de "serviço autônomo".

Pois o mesmo ocorre em relação à cessão de marcas. Enquanto a lei civil classificar a marca dentre os bens móveis, e enquanto a lei civil qualificar a cessão temporária e onerosa de uso como locação, a cessão de marca será locação de bem móvel, havendo ou não item específico na LC 116/03. É indisputável.

Incide aí prescrição do art. 110 do CTN (clique aqui), que proíbe o legislador tributário de manusear a seu talante os conceitos e institutos talhados no direito privado.

Insista-se: o item 3.02 viabiliza a instituição de disciplina fiscal própria aos serviços de cessão de marcas (alíquotas, regimes de apuração, etc.), mas não faz dessa atividade algo ontologicamente distinto de uma locação de bem móvel.

Sucede que a Súmula 31 do STF reconhece a inconstitucionalidade da cobrança do ISS sobre o gênero locação de bens móveis, por vislumbrar - assim se lê no leading case (RExt 116.121 - clique aqui) -, em toda e qualquer manifestação dessa realidade, uma obrigação de dar.

A incompatibilidade da incidência do ISS com a Constituição reside justamente naquilo que a espécie "cessão de marca" tem de comum com o gênero "locação de bem móvel", e que não foi em absoluto alterado com a inserção de item próprio na lei complementar do imposto.

Por tudo isso, não se compreende o entendimento manifestado pelo ilustre relator na Reclamação 8.623.

Queremos acreditar que esse equívoco exegético decorra do fato de que o assunto foi abordado no acórdão nitidamente em caráter obiter dictum, meramente secundário, e que por isso não haja merecido atento debate da C. 2ª turma por ocasião da sessão de julgamento.

A reclamação fora interposta ao fundamento de que a autoridade pública municipal, ao lavrar auto de infração para lançamento do ISS sobre receitas com cessão de marca, desafiara acórdão do STF que anulara outras autuações idênticas anteriormente lavradas contra o mesmo contribuinte.

O ministro Relator entendeu que o novo auto de infração, inobstante similar aos anteriores, não era objeto da ação judicial inicial, razão pela qual o acórdão do STF proferido naqueles autos não estava afrontado pelo novo lançamento tributário. Esse é sem dúvida o fundamento principal e bastante do voto condutor na reclamação.

Tanto assim que a decisão monocrática inicialmente proferida pelo relator, negando seguimento à reclamação, abordava exclusivamente esse fundamento.

Não cremos, pois, que um entendimento tão precário e superficial, manifestado secundariamente em não mais que duas linhas no voto condutor, revele um novo posicionamento do STF sobre a questão.

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1 Súmula Vinculante nº 31. "É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis".

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*Mestre em Direito Tributário pela USP e sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia



 

 

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