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Cada um com seu pobrema

Francamente, todo esse alarde com o livro do MEC, "Por uma Vida Melhor", reconhecendo pleno direito às expressões condenadas pela norma culta da língua, não passa de muito barulho por nada. O tal livro indaga "Você pode falar os livro?" E responde: "Claro que pode." Nenhuma novidade nessa proposta.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Atualizado em 6 de junho de 2011 12:35

Cada um com seu pobrema

Gilberto de Mello Kujawski*

Francamente, todo esse alarde com o livro do MEC, "Por uma Vida Melhor", reconhecendo pleno direito às expressões condenadas pela norma culta da língua, não passa de muito barulho por nada.

O tal livro indaga "Você pode falar os livro?" E responde: "Claro que pode." Nenhuma novidade nessa proposta. Podemos não só falar, como escrever "os livro", "os cachorro", etc. Em entrevista publicada na "Folha de S.Paulo", Fernando Henrique Cardoso, homem culto para ninguém por defeito, troca várias vezes a palavra "está" por "tá": "Tá aumentando o consumo, tá tendo um resultado negativo"... Ocorre que todos nós no Brasil falamos assim, e ninguém é punido por nenhum linguista, nenhum acadêmico.

Mais que permitir a fala errada, a partir do Modernismo, foi introduzida na literatura brasileira a liberdade de escrever errado. Os leitores de Manuel Bandeira lembram-se de seu poema antológico "Evocação do Recife", onde se lê:

"A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada"

E que dizer do grande Guimarães Rosa escrevendo "Grande Sertão" no mais puro linguajar sertanejo? "quem mói no asp'ro não fantasêia". "Pãos ou pães é questão de opiniães". Não é para provocar o horror do mais plácido acadêmico?

Passando em Lisboa pelo bairro popular da Alfama, ouvi certa vez uma rapariga de 12 ou 13 anos dizer em voz alta para sua amiga: "Ó Deolinda, diga-lhe que já vou chamá-la." Assim mesmo, com todos os pronomes no lugar, como escrevem os autores portugueses.

Foi no Brasil colonial que a língua falada dissociou-se da gramática. A língua falada pelos colonizadores misturou-se com o balbuciar dos indígenas e dos negros e se infantilizou. A distância entre a fala vulgar e a "norma culta" ficou cada vez maior.

Mas desde o Modernismo a tal norma culta e a fala popular convivem sem pobrema, quer dizer, sem problema.

Por que, então, tanta polêmica para habilitar a fala errada, a fala saborosa da população analfabeta, se esta é aceita até pelos maiores Poetas e prosadores do país? Não está aí Adoniran Barbosa com o samba do "Arnesto" para nos divertir sem nenhum sentimento de culpa em relação à solene e impassível "norma culta"?

Em suma, realmente, o que tem que ser ensinado na escola é a norma culta, que o aluno desconhece. A fala normal (nem mesmo dizemos "popular" porque é de todas as classes), com seu à vontade, suas transgressões por vezes até saborosas não precisa ser mencionada. Todos nós a falamos em casa e fora de casa, para não passar por pedantes intoleráveis e figurinhas ridículas.

Com esta argumentação desarma-se o pretexto ideológico que vem embutido no livro adotado pelo MEC, ou seja, "vocês estão chovendo no molhado". Ou: "sangrando-se em saúde." Ou: "buscando seus 15 minutos de fama."

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*Ex-promotor de Justiça. Escritor e jornalista



 

 

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