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Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa?

A criação de nova modalidade de usucapião entre cônjuges ou companheiros representa severo entrave para a composição dos conflitos familiares. Isto porque, quando um ocupar, pelo prazo de dois anos, bem comum sem oposição do que abandonou o lar, pode se tornar seu titular exclusivo

terça-feira, 19 de julho de 2011

Atualizado em 18 de julho de 2011 09:45


Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa?


Maria Berenice Dias*

Boas intenções nem sempre geram boas leis.

Não se pode dizer outra coisa a respeito da recente lei 12.424/2011 (clique aqui) que, a despeito de regular o Programa Minha Casa, Minha Vida com nítido caráter protetivo, provocou enorme retrocesso.

A criação de nova modalidade de usucapião entre cônjuges ou companheiros representa severo entrave para a composição dos conflitos familiares. Isto porque, quando um ocupar, pelo prazo de dois anos, bem comum sem oposição do que abandonou o lar, pode se tornar seu titular exclusivo (CC 1.20-A).

Quem lida com as questões emergentes do fim dos vínculos afetivos sabe que, havendo disputa sobre o imóvel residencial, a solução é um afastar-se, lá permanecendo o outro, geralmente aquele que fica com os filhos em sua companhia. Essa, muitas vezes, é única saída até porque, vender o bem e repartir o dinheiro nem sempre permite a aquisição de dois imóveis. Ao menos assim os filhos não ficam sem teto e a cessão da posse adquire natureza alimentar, configurando alimentos in natura.

Mas agora esta prática não deve mais ser estimulada, pois pode ensejar a perda da propriedade no curto período de dois anos. Não a favor da prole que o genitor quis beneficiar, mas do ex-cônjuge ou do companheiro.

De forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identificação da causa do fim do relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela EC 66/2010 (clique aqui) que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. A medida foi das mais salutares, pois evita que mágoas e ressentimentos - que sempre sobram quando o amor acaba - sejam trazidas para o Judiciário. Afinal, a ninguém interessa os motivos que ensejaram a ruptura do vínculo que nasceu para ser eterno e feneceu.

Mas o desastre provocado pela nova lei tem outra dimensão.

Para atribuir a titularidade do domínio a quem tem a posse, sempre houve a necessidade de identificar sua natureza. Ou seja, para adquirir a propriedade o possuidor precisa provar aminus domini, isto é, que exerce a posse como se dono fosse.

No entanto, nesse novo usucapião, o que se perquire é a causa de um dos cônjuges ou companheiros ter se afastado da morada comum. Deste modo, se houve abandono do lar, o que lá permanece torna-se proprietário exclusivo.

Da novidade só restam questionamentos.

O que significa mesmo abandonar? Será que fugir do lar em face da prática de violência doméstica pode configurar abandono? E se um foi expulso pelo outro? Afastar-se para que o grau de animosidade não afete a prole vai acarretar a perda do domínio do bem? Ao depois, como o genitor não vai ser tachado de mau pelos filhos caso manifeste oposição a que eles continuem ocupando o imóvel?

Também surgem questionamentos de natureza processual. A quem cabe alegar a causa do afastamento? A oposição há que ser manifestada de que forma? De quem é o ônus da prova? Pelo jeito a ação de usucapião terá mais um fundamento como pressuposto constitutivo do direito do autor.

Além disso, ressuscitar a discussão de culpas desrespeita o direito à intimidade, afronta o princípio da liberdade, isso só para lembrar alguns dos princípios constitucionais que a lei viola ao conceder a propriedade exclusiva ao possuidor, tendo por pressuposto a responsabilidade do co-titular do domínio pelo fim da união.

Mas qual a solução para evitar a penalidade?

Por cautela devem cônjuges e companheiros firmar escritura reconhecendo não ter havido abandono do lar? Quem sabe antes de afastar-se, o retirante deve pedir judicialmente a separação de corpos. E, ainda que tal aconteça, não poderá aquele que permaneceu no imóvel questionar que o pedido mascarou abandono?

Pelo jeito será necessário proceder a partilha de bens antes do decurso do prazo de dois anos. Mas talvez se esteja simplesmente retomando o impasse originário: vender o bem ainda que a metade do valor apurado não permita a aquisição de um imóvel.

Com certeza outras dúvidas surgirão.

Mas a resposta é uma só. A lei criou muito mais problemas do que uma solução para garantir o direito constitucional à moradia.

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*Advogada, vice-presidente nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família

 

 

 

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