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Justiça zangada

O autor aborda o posicionamento da magistratura diante da atuação do CNJ na seara disciplinar e assevera que a toga não foi feita para ser usada em ombros sujos e venais.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Atualizado em 18 de outubro de 2011 12:11

Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva

Justiça zangada

Nos últimos dias, notadamente nos noticiários e em artigos publicados nas diversas folhas, alguns eméritos próceres do Judiciário e também articulistas desfilaram o seu mau humor de forma contundente.

A impressão é de que tudo, ou quase tudo, se resume no debate relativo à preservação das prerrogativas do Conselho Nacional de Justiça. Os magistrados interpuseram ação de inconstitucionalidade arguindo preceito da Carta Magna que, presumidamente, veda o julgamento de juízes denunciados por corrupção pelo Conselho, sem que antes as Corregedorias das diversas Regiões se manifestem sobre as denúncias. Em suma, esta primeira etapa jurisdicional não poderia ser afastada.

A sociedade esperneou e o Supremo achou por bem adiar o julgamento.

Os argumentos da magistratura sempre se mostram pertinentes: o devido processo legal, os imaculados preceitos da Constituição, o caráter republicano brasileiro, etc.

Os juízes defendem a sua tese relembrando as enormes dificuldades para alcançar o Estado de Direito no país, inclusive se pondo contra as urgências reclamadas pelo povo, mas sempre em benefício do povo, embora este não o reconheça porque é povo.

O litígio não é tolo, mas pontual. A sociedade rejeita o compadrio e a leniência das Corregedorias e a magistratura se contrapõe lançando mão do devido processo legal. A primeira quer falar diretamente com Deus, a segunda insiste na intermediação dos santos. O paralelo parece legítimo. A Igreja fez o mesmo. As denúncias contra clérigos pedófilos eram sufocadas ou encobertas pelos seus superiores que permaneciam deliberadamente omissos na aplicação de punição adequada para o crime hediondo. As vítimas foram obrigadas a apresentar seus agravos ao Sumo Pontífice o qual, supostamente constrangido, revirou os armários imundos dos sacerdotes sacrílegos e impôs ações severas, preventivas e repressoras, contra a infâmia perpetrada por esses canalhas e seus coiteiros.

O desvairado protesto dos fiéis, o grito de socorro, a indignação sem controle e a exposição dos patifes não mais deram chance para o silêncio da Igreja e fizeram cessar a perpetuação do escândalo. Nesse caso, não foi cumprido o devido processo legal.

Não é verdade, como sustentam alguns, que o Poder Judiciário seja o pior dos três, mas não é mentira que a onipotência, a arrogância e a vaidade constituem especificidades próprias dos seus agentes, notadamente entre os mais jovens.

Entretanto, a menos virtuosa característica dos juízes é a indolência de muitos. As justificativas se sucedem aos atropelos: o excesso de processos, a burocracia dos cartórios, a falta de meios mínimos para acelerar o trâmite dos autos, a legislação processual entulhada de recursos inócuos e expedientes protelatórios, a exiguidade de tempo para a leitura de petições bíblicas, a necessidade de atender a advogados mais ansiosos, o calor, etc.

Há cabimento satisfatório, mas não suficiente, em todas essas ponderações.

Em passado não muito distante, o querido amigo, Candido de Oliveira Bisneto, naquela época presidente da OAB do Rio, foi abordado nos corredores do fórum pelo seu colega, Raul Celso Lins e Silva, o qual lhe pediu que o acompanhasse numa visita de congratulações ao juiz carinhosamente conhecido pelo apelido de Tonico Siqueira, então titular da 14ª vara Cível. Esse, surpreendentemente, dera andamento e limpara as prateleiras, no período de quatro meses, de todos os processos pendentes da 4ª vara de Família, cuja titular era um desastre nos cumprimentos mais elementares das suas obrigações. Lá chegando, depois dos elogios e abraços, ambos os advogados, ávidos por respostas, perguntaram ao juiz, hoje desembargador, qual o segredo para aquele desempenho incomum de presteza. O ilustre magistrado, com muita simplicidade, desvendou o que se pressupunha sortilégio. Contou que no tempo em que militava na advocacia chegava todos os dias ao escritório às nove horas e lá permanecia trabalhando até as dezenove horas. Ele, meramente, manteve essa mesma rotina no exercício da magistratura. Nada, além disso. Por fim, sem ocultar o legítimo orgulho, confidenciou aos dois amigos que jamais levara para casa um único processo.

Outro exemplo, mais recente, foi revelado pelo noticiário dos telejornais: o juiz da 7ª vara Federal de São Paulo utilizou métodos criativos de agilidade processual e a sua iniciativa se tornou motivo de regozijo para os serventuários e para os advogados que tiveram a fortuna de ver processos seus serem distribuídos para o cartório em apreço. Não pode o exemplo ser copiado? Não pode uma andorinha só fazer verão?

Apesar de todas as justificativas atribuídas pelos juízes para a morosidade dos processos, talvez a verdade possa ser desnudada alhures, sem muito esforço.

Releve-se, inicialmente, que a vocação para o exercício da magistratura sequer é considerada para o candidato ao cargo. A maioria apenas almeja um emprego seguro e bem pago, sem as vicissitudes da submissão hierárquica, as exigências do trabalho sem descanso, como também a permanente e irremediável busca por clientes em universo repleto de bravos advogados militantes. Depois de assumirem as suas funções, aliás, como resultado de uma expressiva, vitoriosa e árdua batalha travada nos concursos públicos, os magistrados, recém-empossados, adormecem em berços esplêndidos. Nada lhes é cobrado. A sua avaliação profissional, de curto período, é realizada de forma perfunctória. O juiz se torna dono do seu nariz, agora, então, enorme nariz.

Mas o grande estímulo para drástica redução do seu entusiasmo consiste na certeza da condição vitalícia de sua ocupação em cargo público. Essa convicção lhe conduz para o entorpecimento do ânimo e do empenho. Não é para menos, pouco é exigido e tudo lhe é garantido, inclusive a sua aposentadoria com vencimento integral.

Os privilégios da classe propiciam a distorção democrática, talvez a merecer reformulação na vitaliciedade do posto. Mas esse é um tema sujeito a inúmeras discussões em âmbito nacional.

A toga faz bem para a sociedade. Dá a sensação de segurança e alimenta a esperança de justiça no Brasil. A toga torna solene o ato praticado pelo homem que a veste e solene deve ser para a importância do ato que pratica. Mas a toga, mesmo rota e embranquecida pelo tempo, não pode ser usada em ombros sujos e venais. Graças a Deus, são escassos, ínfimos no país, juízes de letra minúscula, enxovalhados e desgraçados por ações criminosas.

O Judiciário brasileiro é limpo, mas os seus distintos delegados poderiam afastar a adoção de algumas atitudes menores no exercício de suas atribuições: a postura aristocrática; o voto prolixo que apenas atende à vaidade do seu prolator; a arrogância e a onipotência perante o mundo jurídico e até fora dele; a exigência de palácios para o abrigo de uma justiça ainda maltrapilha; o cumprimento de prazos; a falta de gestos de compaixão com trôpegos advogados de ternos puídos que trafegam pelos corredores dos tribunais e apenas reivindicam justiça breve para os clientes mais carentes; a clava forte para os aproveitadores e lobistas; a resistência injustificada, a não ser em virtude de inamovível obstáculo, para o empenho na prestação jurisdicional.

A sociedade tomou partido na questão do Conselho Nacional de Justiça em confronto com a Associação dos Magistrados, mas, seguramente, pouca atenção daria a esse irrelevante conflito interno do Poder Judiciário acaso se fizesse justiça eficiente no Brasil.

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*Francisco de Assis Chagas de Mello e Silva é advogado do escritório Candido de Oliveira - Advogados









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