MIGALHAS DE PESO

Sonhos

A crônica conta a história de uma mãe que pergunta ao filho o que ele quer ser quando crescer e surpreende-se com a resposta.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Atualizado em 25 de outubro de 2011 11:11

Edson Vidigal

Sonhos

Se compararmos, talvez, com o nosso tempo de criança, quando, ao que parece, éramos mais soltos e, por isso mesmo, mais criativos até no jeito de sonhar, as diferenças que marcam hoje o mundo não o fazem menor na galáxia por onde navegam os nossos devaneios.

Ora, se nem havia John Lennon ninguém sonhava em ser John Lennon. Por décadas seguidas, muitas infâncias miraram-se num santo protetor, São Luiz Gonzaga, por exemplo, o padroeiro dos estudantes, e ajoelhando-se ante a imagem do jovem seminarista santificado tão cedo, as certezas do futuro estavam ali, a caminho dos céus, mais que certas.

Jonnhy Weissmüller, porém, batia de longe nas preferências dos meninos. Filhos de pobres ou filhos de ricos, todos queriam ser Tarzan. Nada de Leão para Rei das Selvas. Leão podia ser o Rei dos Animais. O Rei das Selvas mesmo era o Tarzan.

Os parceiros do super-herói, no caso do Tarzan, eram além da Jane, sua loura mulher, todos nós temos na vida um caso, uma loura, já cantava Dick Farney naquele época, um garoto chamado Boy e nunca ficou bem claro se ele era mesmo filho do Tarzan e para divertimentos da criançada ainda em idade de não entender nada ou lá muitas coisas havia a Tita, a chipanzé amiga e inteligente, mais que muitas gentes.

Tarzan era o modelo que todo menino queria ser quando crescesse. Filho de ingleses, ficou órfão muito cedo, tendo sido criado pelos macacos. Atleta, saudável, sem medo, movia-se veloz na floresta entre cipós, defendia a natureza sem ser dono de ONG ambientalista e quando seres ditos civilizados apareciam na mata para suas explorações predatórias, Tarzan fazendo concha com as duas mãos emitia um grito único, inimitável, espécie de convocação urgente e logo suas tropas integradas por feras de todo tipo, parecendo saírem do nada, apareciam aos milhares, prontas para a defesa ou para o ataque, quando fosse o caso.

Outros, na escola, vendo as gravuras dos poetas ou dos escritores, ou os bustos dos heróis nas praças, sonhando mais alto, queriam ser, quando crescessem, que nem aquelas pessoas. Não faltavam bons exemplos na história ou no cinema, ou mesmo no circo, para as crianças se mirarem.

Essa pergunta, menino o que tu vais querer ser quando cresceres, hoje em dia, parece causar um tremendo transtorno nas ambições das crianças, tantos são os álbuns de figuraças e figurinhas à disposição. A globalização que parece ter encolhido o mundo ao ponto de cabê-lo por inteiro na tela da televisão. Disponibiliza nesse quesito, o que tu vais querer ser quando cresceres, incontáveis opções.

Hoje, mais que ontem, a cabeça das crianças se povoam não só de heróis, mas também de anti-heróis. Os que atuam em historinhas fazendo papel de anjo mau, amiguinho do demônio, deslumbram a muitos, não só aos aficionados em desenho animado, mas também aos que já tendo alguma noção das coisas começam a eleger os seus anti-heróis fora da fantasia.

Daí que a mãe do menino, num dia desses perguntou, meu filho que vais querer ser quando cresceres? Político, respondeu na bucha. Bem, pensou a mãe, isso não é de todo mal. Ainda temos políticos bons neste Brasil. Fala aí, filho, o nome de um político desses que tu vais querer ser. Vais ficar muito ofendida, mãe. E um bom filho faz de tudo para não ofender pai ou mãe.

A mãe insistiu tanto que o menino acabou revelando o seu anti-herói. O pai chegando naquele instante ficou tão pê da vida que se segurou por inteiro para não lhe dizer umas coisas muito sérias. Mas pensou rápido, isso pode acabar gerando um trauma nessa criança e vai que ele não se cura e acaba querendo ser que nem esse político mesmo.

Dos males, o menor. Pensou o pai.

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*Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA


 

 

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