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A legitimidade do embrião no polo ativo da relação processual

O promotor de Justiça aposentado pontua que já não se pode limitar o direito do nascituro apenas ao direito de nascer.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Atualizado em 9 de dezembro de 2011 14:34

Eudes Quintino de Oliveira Júnior

A legitimidade do embrião no polo ativo da relação processual

A imprensa noticiou que a cantora Wanessa Camargo, o embrião intrauterino que carrega e o esposo dela, ingressaram com uma ação de indenização por danos morais em desfavor de um apresentador de televisão, que teria provocado lesões à honra dos autores. Causou estranheza, sem dúvidas, a figura do embrião como agente ativo na relação jurídica processual, pois até então, descartava-se tal hipótese. A conceituação de partes tinha como parâmetro a definição de Leo Rosenberg, citado por Marques, como sendo "aquelas pessoas que pedem e contra as quais se pede, em nome próprio, a tutela jurídica estatal"1. Já no pensamento hegeliano, as partes estão posicionadas igual e antagonicamente na base do triângulo e com a efetiva participação da jurisdição, forma-se a relação processual propriamente dita (actum trium personnarum).

O nascituro, conforme se extrai do regramento pátrio, tem seus direitos preservados, porém não é detentor de capacidade jurídica. Tanto é verdade que, se não tiver pai e a mãe não for a responsável pelo poder familiar, a ele será nomeado um curador, que poderá, dentre outros direitos, representá-lo como donatário e pleitear em favor dele assistência médica. Defere-se ao embrião uma tutela sui generis. O status conferido a ele é totalmente divorciado daquele preconizado pelos romanos, no sentido de que o feto é apenas parte das vísceras da mulher - pars viscerum matris - e que dele podia dispor, de acordo com sua conveniência, pois, enquanto não fosse dado à luz não seria considerado ser humano. Assim, com liberdade, a mulher poderia decidir sobre a interrupção da gravidez em qualquer situação. Guardadas as diferenças, no regime atual, a mulher conserva a liberdade somente nos casos permitidos pelo Código Penal (clique aqui). Quando, no entanto, a interrupção ocorria em razão de salvar a vida da mãe, prevalecia a regra da valoração da vida e os interesses da gestante: pro salute mulieris excusatur.

Interessante decisão foi proferida pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu legitimidade ao embrião representado pela sua mãe, que cumpria pena em cárcere, o direito de garantir a ela o atendimento médico necessário que proporcionasse seu nascimento saudável e harmonioso, em condições dignas do ser humano, mirando sempre o princípio constitucional da isonomia e o da justiça, esse último apregoado pela bioética. O concebido, mas não nascido, também pode figurar como autor em ação de alimentos2 e até mesmo em investigação de paternidade3. Recebe, por outro lado, a proteção da tutela penal que erigiu o aborto à categoria de crime, apenado com detenção ou reclusão, de acordo com os preceitos contidos nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. O nascituro, desta forma, afigura-se como um ente desprovido de personalidade jurídica e considerado spes hominis, ou seja, mera expectativa de direitos.

Tramita pelo Congresso Nacional o projeto de lei nº 478/074, dos Deputados Luiz Bassuma (PT/BA) e Miguel Martini (PHS/MG), que dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e, em 29 de maio de 2010, foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Define o nascituro como sendo o ser humano concebido, mas não nascido, compreendendo aquele concebido "in vitro" ou por qualquer outro meio científico eticamente aceito. A respeito da personalidade humana estabelece que a adquire com o nascimento com vida, mas sua natureza humana é reconhecida desde a concepção, conferindo-lhe proteção jurídica através do estatuto, da lei civil e penal. É a repetição do pensamento do médico francês Jérôme Lejeune, pai da genética moderna, responsável pela descoberta de um cromossomo a mais sobre o par 21, quando avaliava uma criança com "Síndrome de Down". Sua revelação, porém, contra sua vontade, começou a trilhar pela interrupção da gravidez de embriões portadores da doença. Veio à público defender o pensamento que, mesmo sendo um embrião portador de doença, deveria ser respeitado desde sua concepção até sua morte natural, em nítida luta contra o aborto.

Justifica-se aqui a comparação do ser e devir, sustentada por Aristóteles, como sendo ser em potência aquele que se projeta ao futuro, indicando as fases sucessivas de transformação do ser, do seu estado inicial até o final, quando se transformará ser em ato. "Há um paralelismo, acentua Artigas, entre esta ideia e o desenvolvimento dos viventes a partir dos zigotos e dos embriões. Com efeito, nos estágios iniciais, o zigoto ou o embrião é muito diferente do que será ao fim de certo tempo, mas possui capacidades que irão se atualizando, de modo que se produzirá, finalmente, um novo ser".5

Oportuno mencionar a decisão judicial proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que determinou o pagamento do seguro DPVAT por morte de feto em decorrência de acidente de trânsito. A desembargadora Liége Pires, que votou com o relator, ressaltou que "apesar de o Código Civil (clique aqui) entender que a personalidade jurídica da pessoa começa com nascimento com vida, há uma tendência de migração para seu início a partir da concepção". Em sentido contrário, porém, os votos dos desembargadores Jorge Luiz Lopes do Canto, Leo Lima e Romeu Marques Ribeiro Filho, sustentando que o nascituro não tem personalidade jurídica, tanto mais que "a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, cabendo àquele que ainda não nasceu mera expectativa de direitos".6

Mas, a proposta deduzida em juízo traz um importante enfoque e reafirma o direito de proteção ao feto, demonstrando que a vida humana tem seu início no momento da fecundação e não do nascimento. A intenção tutelar inicia-se com a vida pré-natal e encerra-se com a morte, traçando uma continuidade de assistência e garantia.

Já não se pode limitar o direito do nascituro a apenas um: o de nascer. E sim ampliá-lo e agregar a ele o nascer com dignidade, com saúde, com a proteção Estatal necessária, extensiva à sua mãe, de quem é dependente na vida pré-natal. Tanto é que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal aprovou, por unanimidade, projeto de lei que inclui o nascituro no rol de dependentes para fins de dedução da base de cálculo do imposto de renda. Tal proposta visa alterar o artigo 35 da lei nº 9.250/95 (clique aqui) e a fundamentação residiu na constatação de que a personalidade do homem começa com o nascimento com vida, porém a lei civil põe a salvo os direitos desde a concepção.

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1 Marques, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II. Campinas, Bookseller, 1997, p. 35.

2 Lei 11.104, de 05 de novembro de 2008.

3 Lei 8069, de 13 de julho de 1990.

4 Disponível em https://miguelmartini.com/mandato/proposições/ver.php?id=2.

5 Artigas,Mariano. Filosofia da natureza. Tradução: Oliveira e Silva JE de. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull).

6 Terceiro Grupo Cível do TJRS. Processo nº 70026431445.

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*Promotor de Justiça aposentado, advogado e reitor da Unorp.





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