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A sinédoque e outras figuras: o PAC e as PPPs no saneamento

Tomar a parte (concessão onerosa) pelo todo (concessões não onerosas, PPP) para alargar a vedação é má técnica hermenêutica.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Atualizado em 19 de junho de 2012 15:19

Sinédoque é uma espécie de metonímia que permite extrair um significado a partir da interpretação ampliada do significante. Por ela se permite extrair o todo a partir de uma parte (havia dez cabeças na parelha) ou o gênero pela espécie (a maldade do homem é infinita). Em literatura é de estilo elegante, sutil. Já em Direito o emprego deste recurso linguístico é um perigo. Quando então aplicado na interpretação de normas, torna-se um desastre. Quando um legislador estabelece uma restrição, condicionamento ou limitação a uma espécie e não a um todo, não podemos interpretar a norma dando-lhe amplitude maior do que aquela empregada pelo legislador. Se a lei interditou um direito ou faculdade a um negócio jurídico específico isso significa, conseguintemente, ter deixado claro inexistir vedação para as outras espécies não referidas na proibição. Isso é regra hermenêutica básica.

Lembrei-me da tal figura de linguagem quando da análise da limitação contida na Portaria 40/11 do Ministério das Cidades. Em seu item 23.1. a tal portaria (recordo-me do chiste de Geraldo Ataliba que classificava essa espécie normativa como ato próprio aos porteiros, mas isso não se aplica aqui) estabelece uma vedação ao recebimento de recursos do PAC para universalização dos serviços de saneamento quando sua operação ou prestação estiver a cargo de empresa ou instituição da qual o poder público não detenha a maioria do capital com direito a voto. Em suma, veda que sejam transferidos recursos da União para investir na ampliação dos serviços de saneamento caso, no todo ou em parte, os serviços sejam objeto de concessão ou de PPP, mesmo que não na modalidade onerosa. Mais ainda, determina que cessem os repasses caso a concessão seja outorgada no curso das transferências, chegando a exigir a devolução de recursos já transferidos quando corresponderem a uma parcela de investimentos que não tenha se convertido em parcela física já tornada funcional.

Claramente a norma visa a manejar o poder das inversões federais (o chamado spending power) para impingir aos Municípios uma diretriz política: serviços de saneamento básico não deveriam ser objeto de concessão à iniciativa privada. Pode-se discutir sob o ponto de vista econômico, operacional, ideológico ou mesmo político o desacerto desta diretriz. O fato é que o modelo puramente público na prestação destes serviços (mediante serviços municipais autônomos, autarquias ou mesmo pelas sociedades estaduais de saneamento) constitui o mais rematado exemplo de fracasso, em grande parte responsável pelos indicadores vergonhosos que o país apresenta no setor, em que pese a existência de volumosos recursos. Mas isso fugiria ao propósito deste artigo. O problema é que o item 23.1. da Portaria do Ministério das Cidades afronta duplamente a legalidade.

A Lei Nacional de Saneamento Básico - LNSB (lei 11.445/07) é um marco no setor, fruto de um longo debate envolvendo os mais diversos atores do setor. A LNSB longe de vedar, coibir ou restringir a delegação dos serviços a entes privados, expressamente admitiu esta hipótese no seu art. 10. Seria já contrariar a LNSB extrair dela uma manifestação do poder de inversão da União para coibir ou desincentivar a delegação dos serviços de saneamento, no todo ou em parcela, mediante concessões comuns, patrocinadas ou administrativas mesmo em caráter não oneroso. A LNSB nem autorizaria uma interpretação dos seus dispositivos no sentido de coibir concessões, nem muito menos admite regulamentação que leve a este resultado.

Mas o conflito é ainda mais grave, indesviável. No art. 50, §1º, a LNSB traz vedação à transferência de recursos não onerosos da União para aplicação em empreendimentos contratados de forma onerosa. Faz sentido a regra. Não faria sentido transferir recursos públicos federais para serem utilizados em empreendimentos geradores de excedente econômico que permita ao privado (contratado) pagar um ônus que se incorporará ao orçamento do ente delegante (Município). Isso implicaria em transformar o repasse de recursos da União não em investimentos na universalização do saneamento, mas em "doação" ao Município, para que este aplique em finalidades outras que não o saneamento.

Porém, é de se notar que o legislador limitou a vedação de repasse de recursos não onerosos da União apenas aos empreendimentos delegados aos privados a título oneroso. Onerosa é a concessão comum (art. 15, II, lei 8.987/95) na qual o concessionário paga um ônus para o poder concedente. Embora a onerosidade não seja propriamente aderente ao regime de PPP (pois não faz sentido imaginar o pagamento de um ônus seguido do recebimento de contraprestação), é até possível imaginar uma concessão que modelada como patrocinada torna-se onerosa por resultar da licitação uma contraprestação negativa. Certo é, porém, que a vedação da LNSB se limita aos empreendimentos que sejam contratados contemplando o pagamento de um ônus pecuniário para o contratante (pois que se entendêssemos por oneroso o recebimento de valores pelo privado, teríamos uma tautologia já que todo contrato pressupõe uma contrapartida).

Pois bem. Se a LNSB vedou a transferência de recursos da União apenas no caso do serviço ser objeto de delegação onerosa, não poderia a Portaria do Ministério das Cidades ter criado uma nova restrição, para abarcar na vedação também as concessões comuns não onerosas e as PPP. Se o legislador vedou a parte, não pode nem o intérprete, muito menos a regulamentação, ampliar a vedação.

Volto à sinédoque. Tomar a parte (concessão onerosa) pelo todo (concessões não onerosas, PPP) para alargar a vedação é má técnica hermenêutica. Fruto de um dos vícios de interpretação lembrados por Carlos Maximiliano, que a denomina chamada interpretação afetiva, aquela em que o intérprete busca ler na lei sentidos que na verdade estão no seu desejo. O item 23.1. da Portaria MCidades nº 40 de 2011 é ilegal pois alarga vedação que a lei não contém, afrontando a autorização tácita do legislador federal em admitir transferências não onerosas de recursos da União para investimentos em serviços de saneamento operados e prestados por particulares por meio de delegação não onerosa. Ilegal que é, merece ser revista. O que pode ser feito mediante a republicação de nova portaria escoimada do equívoco. Ou por invalidação judicial por parte de Municípios que sejam excluídos do acesso a recursos para universalizar o saneamento.

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* Floriano de Azevedo Marques Neto é sócio do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados, atua na área do Direito Administrativo e Regulatório.

Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques

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