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A nona sinfonia

Em nome da salvação da economia europeia, chegou a hora dos Estados abrirem mão de suas soberanias nacionais.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Atualizado em 22 de agosto de 2012 14:31

No dia 19 de agosto passado, um domingo, os ouvintes da Rádio Cultura FM, da Fundação Anchieta, foram brindados pela Transmissão da Nona Sinfonia, de Beethoven, diretamente do grande evento de música clássica que se celebra em Londres, com a participação de maestros e solistas dos mais famosos. Foi um sucesso estrondoso, com aplausos finais que se prolongaram por mais de quinze minutos. A que atribuir tamanho delírio do público?

Da Nona Sinfonia disse o filósofo americano Santayana que o mundo foi criado para que ela fosse composta. É a maior explosão de entusiasmo messiânico na história cultural do Ocidente, um feito de grandiosidade esmagadora no qual ressoa o espírito das catedrais góticas espalhadas por toda a Europa, a épica dos cantos medievais, as tragédias de Shakespeare, a profundidade do romantismo alemão, as vozes de Victor Hugo, e o êxtase do poema de Schiller, saudando o advento da Alegria vinda do céu para afagar toda a humanidade.

A Nona Sinfonia não constitui patrimônio exclusivo da cultura alemã. É a Europa unida que canta em seu coro, são as vozes de todos os povos que se irmanam, exprimindo a máxima dilatação do humano, transpondo barreiras e limitações de classes, nações e culturas, confraternizadas num todo uníssono graças à efusão universal da Alegria descida do alto.

Montesquieu, no século 18, dizia ser a Europa "uma nação composta de muitas outras", e Balzac falava na "grande família continental, na qual todos os esforços tendem a não sei que mistério de civilização". Em outras palavras: "a unidade da Europa como sociedade não é um 'ideal', e sim um fato de muita antiga cotidianidade" (Ortega y Gasset).

E mais: do ponto de vista social e cultural, não seria exagero dizer que a sociedade européia precede as nações européias, visto que estas nasceram no regaço maternal daquela. Em suma, a unidade européia não representa nenhum objetivo distante a ser um dia alcançado; ela está inscrita nos corações e mentes de todos os europeus, unidos por usos e crenças comuns, valores e projetos equivalentes, cultura, ciência, economia e direito permutáveis.

De onde se segue que a resistência dos Estados europeus a abrir mão das soberanias nacionais, a favor da unificação da política econômica européia (que seria a salvação do euro), constitui uma posição falsa, um estrabismo histórico fatal, que coloca em risco a sobrevivência política e econômica do continente inteiro. Só os cegos não enxergam no horizonte os acenos cada vez mais próximos do futuro Estados Unidos da Europa. Chegou a hora de trocar as soberanias nacionais, fechadas em si mesmas, pela soberania compartilhada, em nome da salvação da Europa como um todo. Porque em sua realidade histórica, social e cultural a Europa forma uma unidade indissolúvel. Por que seria diferente na economia?

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista





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