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Denúncia implícita

No julgamento do mensalão, a ministra Rosa Weber absolveu réus das acusações de lavagem de dinheiro e do delito de evasão de divisas por falta de provas. Veja quais são os fatos que compõem uma denúncia.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Atualizado em 23 de outubro de 2012 14:18

No julgamento afeto ao Supremo Tribunal Federal (STF), conhecido como processo do mensalão, a ministra Rosa Weber absolveu o publicitário Duda Mendonça e a sócia dele, Zilmar Fernandes, das duas acusações de lavagem de dinheiro e do delito de evasão de divisas.

Para a ministra, não há provas de que os dois réus tivessem conhecimento da origem ilícita dos recursos recebidos e nem que houve intenção em tentar tornar legal o dinheiro de origem criminosa. Teceu críticas a respeito da denúncia ofertada pelo Procurador Geral da República, rotulando-a de implícita, vez que não conseguiu visualizar uma acusação transparente e que pudesse sinalizar com segurança o relato da peça delatória.

Muito se tem discutido a respeito da descrição detalhada dos fatos na denúncia, quer tenha o Ministério Público recebido informações diretamente do procedimento policial, quer através de peças de informações. Isto por dois fatos determinantes: o primeiro deles, ordenado pelo artigo 41 do Código de Processo Penal, determina que denúncia conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias; o segundo em razão do princípio da ampla defesa, reserva constitucional a todo acusado em processo penal, civil, trabalhista etc.

A tradicional doutrina processual penal, capitaneada por João Mendes, de forma objetiva e com muita sabedoria, definia que a denúncia como peça narrativa deveria trazer em seu bojo os seguintes elementos: quis (autoria); quibus auxiliis (quais os meios que empregou); quid (qual o mal causado); cur (os motivos); quomodo (a maneira como praticou o ilícito); ubi (lugar do delito) e quando (o tempo do delito).

De forma lapidar, Marques esclarece que a denúncia, "por ser um ato instrumental da ação pública, deve conter todos os elementos desta. A pretensão punitiva que se condensa na acusação será exposta com clareza, indicando-se seu objeto (ou petitum) e os seus fundamentos (ou causa petendi), e ainda os dados subjetivos que a integram: o sujeito ativo que acusa (o órgão do Ministério Público) e o sujeito passivo que é acusado (o réu). O promotor de justiça faz o seu pedido, dá-lhe os devidos fundamentos e diz contra quem se dirige a acusação". 1

Tudo deve ser matematicamente exposto na peça inicial penal. Tanto é que a Constituição Federal não abraça o princípio da ampla acusação e sim da defesa. Daí que a proposta acusatória tem que soar em sintonia com as provas arrecadadas preliminarmente e, desde seu início, abrir as comportas para o acolhimento da pretensão estatal. Se ocorrer qualquer alteração no juditium accusationis, só poderá ser ajustada na fase da mutatio libelli, resguardando por inteiro o conteúdo do contraditório.

Assim, a peça delatória deve ser pormenorizada, especificando a ação ou omissão do agente individualmente ou, quando se tratar de crime societário, pelo menos o necessário para configurar a prática delituosa de cada um dos participantes. Refuta-se, por outro lado, a denúncia alternativa, na qual o acusador oficial, encontrando dúvida na formação de sua opinio delicti entre dois tipos penais, imputa ambos ao agente. Indiscutível a dificuldade para o exercício do direito de defesa uma vez que o acusado não pode exercer, simultaneamente, duas defesas com relação a tipos penais distintos e relacionados à mesma conduta.

O suum cuique tribuere exige que a jurisdição receba todos os elementos de informações (notio) para, posteriormente, entregar a prestação jurisdicional (decisum), de acordo com o que foi pleiteado. Narra mihi facto, dabo tibi jus, compreende a narrativa da ação de cada participante do crime no sistema estabelecido pela Lei Maior. A narrativa precisa e aberta do fato constitui, desta forma, a pedra angular da proposta acusatória. Por outro lado, no polo oposto da relação processual, vem a resposta a todos os argumentos lançados na inicial, que podem ser descobertos inicialmente e desvendados no final. Na conjugação desses dois fatores, a defesa exsurge de forma ampla com o estabelecimento de um contraditório mais condizente com a natureza democrática do processo. E o julgador terá um material seguro para proferir uma sentença absolutória ou condenatória.

É até injusto saber que alguém foi condenado por uma narrativa acusatória genérica, sem qualquer especificação com relação à conduta individualizada. In dubio pro societate não é uma alforria que se concede ao acusador público ou particular para inserir na ação penal pessoa que está desligada e desfocada de qualquer núcleo de tipo penal. A ausência da descrição que envolve o elemento subjetivo demonstra, por si só, a falta de justa causa para a propositura da persecutio criminis in juditio, fator impeditivo do prosseguimento penal, pois é regra constitucional que ninguém será submetido a um processo criminal se não houver provas inconcussas com a mínima probabilidade de potencial condenação. A ação penal, pelo desgaste que proporciona, não é um campo de probabilidade e sim de certeza provisória com um indiscutível lastro de seriedade.

A pesquisa da verdade para a propositura de uma ação penal tem que corresponder ao material probatório coletado, que se apresenta como a base, a sustentação de uma pretensão acusatória. Do contrário, se assim não for, bastaria a simples articulação punitiva na inicial para autorizar seu acolhimento. O Judiciário, no entanto, se apresenta como um aparelho dedutivo, que vai realizar regras operatórias e buscar uma interpretação que represente o valor suficiente daquilo que foi demonstrado. É a operação idealizada por Hegel, em sua dialética, quando propõe a pretensão por meio da tese, admite sua refutação pela antítese e elege a síntese como o meio para elucidar o fato proposto.

Como Shakespeare, em sua peça Hamlet, no diálogo com Horácio, pode-se dizer que: "Existem mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua vã filosofia". Na realidade, o processo penal, como instrumento de pacificação e solução de conflitos criminais, necessita receber os dados corretamente para que a Justiça possa se manifestar secundum jus.

Um emaranhado de dados, sem qualquer consistência, sem qualquer conexão, não é um material crível e afasta a certeza que se busca no Direito, posicionando-se somente na esfera da dúvida, que, como regra pétrea processual, milita em favor do acusado. Este, por sua vez, de regra, não vem com o encargo do onus probandi e, se conseguir equilibrar as provas processuais fazendo brotar a dúvida, por ela seria beneficiado pelo princípio do in dubio pro reo.

Não se admite, nesta linha de pensamento que, implicitamente, uma denúncia, escondendo fatos relevantes ou sonegando informações a respeito de circunstâncias vitais para a busca da verdade real, possa ganhar a credibilidade judicial. A jurisdição não tem por obrigação desatar o nó do novelo processual para elaborar um pensamento investigativo ou fazer o encaminhamento de um fato criminoso que não foi explicitamente narrado. Neruda, jocosamente, dizia que escrever é fácil: você começa com a letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio coloca as ideias. O órgão julgador não tem o condão de colocar ou complementar a pretensão acusatória. Pela sua característica de inércia, e como tal reside o sustentáculo de órgão imparcial, não tem legitimidade para realizar tarefas que competem às partes. Assim, como um bom ouvidor de histórias, fica aguardando o relato do fato para fazer as devidas comparações com as provas apresentadas. Encontrando ressonância, aperfeiçoa-se a adequação típica da conduta, que passa a ser considerada consistente e com ares de verdade.

Da mesma forma, não se admite o arquivamento implícito. Pode assim ser definido como aquele em que o Ministério Público, chamado para a apreciação de um inquérito policial ou de peças de informações, deixa de fazer a apreciação a respeito de um fato tido como ilícito ou de se manifestar a respeito de um dos participantes da empreitada criminosa. Em seguida, oferta a peça acusatória, sem a apreciação do ilícito relatado e sem o exame a respeito da conduta do agente. O juiz, por sua vez, recebe a denúncia e não se pronuncia também a respeito dos fatos não apreciados. Pode-se dizer que, in casu, ocorreu o arquivamento implícito, de aceitação duvidosa e que afeta diretamente o nascedouro da ação penal.

Outra a situação se o juiz acatasse a denúncia e indeferisse o arquivamento implícito, remetendo o material para o Procurador Geral de Justiça, nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal. A primeira observação de censura que o chefe do parquet iria apontar é o descumprimento da regra que exige a apresentação das "razões invocadas", contida no mesmo artigo do processo penal. Quer dizer, o representante máximo do Ministério Público nada tem a apreciar com relação às "razões invocadas", vez que não foram apresentadas. Recomenda-se que, em tal situação, deve o procedimento retornar ao promotor originário para que se manifeste a respeito, ofertando, desta vez, a proposta de arquivamento explícito que, de acordo com a melhor regra, pode ser reapreciado pelo julgador a quo, que aí sim aceitará ou não a argumentação. Se aceitar, determina o arquivamento. Do contrário, segue para a Procuradoria Geral de Justiça.

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1 Marques, José Frederico. Elementos de direito processual penal, vol. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 146.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp





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