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A espionagem, um mal necessário?

Há três desafios sem resposta convincente na ética convencional: o mal necessário, a mentira piedosa e os fins que justificam os meios. Claro que não vamos tocar neste vespeiro. Mas a espionagem, bem pensada, não é mal tão necessário e inevitável assim.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Atualizado em 13 de setembro de 2013 13:48

Qualquer análise sobre a bisbilhotagem norte-americana que se alastra por toda parte e que atingiu o Brasil terá que partir de um dado novo, que é a transformação de escala do terrorismo. Este aparece agora como algo muito distinto daquele terrorismo de bolso a que estávamos acostumados, aquela prática circunscrita tanto nos objetivos quanto territorialmente, protagonizada por um indivíduo isolado ou por grupos reduzidos, improvisada ao sabor das paixões, com recursos ofensivos limitados e pouco ou nenhum capital.

A partir da segunda metade do século XX o terrorismo mudou de extensão, de alcance e de poder destrutivo. Passou de uma ocorrência provinciana para um fenômeno internacional, organizado meticulosa e cerebralmente, com fartura de recursos financeiros e de armas de todo tipo. O terrorismo perdeu seu aspecto eventual e amador, universalizou-se, organizou-se, profissionalizou-se e veio para ficar. Ao lado das forças legítimas que movem a história, como a política, a economia, a religião, o Direito, a tecnologia, o terrorismo se levanta como uma força ilegítima e concorrente, ameaçando minar e sobrepor-se à ordem internacional vigente.

A ação terrorista, difusa, imprevisível, camuflada perversamente na vida cotidiana, veio desorganizar a relação normal dos Estados com as ações anti-sociais, visando combatê-las dentro das normas jurídicas universais e estabelecidas. A Justiça, a policia, o exército, os órgãos de segurança e prevenção do crime tornam-se impotentes para reprimir o terrorismo, que utiliza a tática da invisibilidade e da irrupção subitânea para atuar, ao arrepio não só de normas éticas e humanitárias, como da conduta lógica e coerente que seria de esperar numa guerra. Semear a confusão e desorientar suas vítimas em escala nunca vista faz parte da tática terrorista.

O terrorismo carrega um componente diabólico que está presente não só nos seus requintes de crueldade, como no propósito de se apoderar truculentamente das almas de suas vítimas. A propaganda acompanha de perto a expansão do terror, e seus principais líderes, como Bin Laden, dão-se a aparência messiânica de profetas e salvadores da humanidade.

Em suma, a luta contra o terrorismo é um combate no escuro, contra um inimigo invisível, sem rosto, sem corpo, sem pistas, e que somente acusa sua existência depois de perpetrado o mal. De onde se deduz que a ofensiva contra o terrorismo não pode ter por base senão a extensão máxima da coleta de informações. A privacidade, a soberania dos Estados caem por terra face a motivo de força maior, que é a defesa preventiva da potência hegemônica, que por isso mesmo é a mais visada, contra as ameaças crescentes de ataques imprevistos não só contra os americanos, como dirigidos a qualquer país.

Então, a espionagem seria um mal necessário? Há três desafios sem resposta convincente na ética convencional: o mal necessário, a mentira piedosa e os fins que justificam os meios. Claro que não vamos tocar neste vespeiro. Mas a espionagem, bem pensada, não é mal tão necessário e inevitável assim. Para grandes males, grandes remédios, inclusive os que passam pela aparente ingenuidade. A grave ofensa à ética seria evitada se os arquivos secretos dos Estados estivessem abertos a todos os interessados, se deixassem de ser secretos. Resta saber se é possível existir o poder sem certa margem reservada de segredo. Dizendo de outra forma: será que a perfeita transparência do Estado não se opõe, em certas circunstâncias, ao exercício do poder?

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista.

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