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Direitos autorais não se prestam ao obscurantismo

Trata-se realmente de exercício de direito autoral o praticado pelos herdeiros ?

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Atualizado às 09:16

Os fatos: um espetáculo de dança, criado pelo Ballet Stagium sobre o período modernista de nossa história e que fazia - por óbvio - referência coreográfica ao Abaporu de Tarsila, teve de ser seccionado, porque a companhia de dança não aceitou, ou não pôde alcançar, o preço cobrado pelos herdeiros.

O Direito: o fundamento da discórdia é o direito autoral. Mas, trata-se realmente de exercício de direito autoral o praticado pelos herdeiros? Analisemos.

Nossa Carta Magna concede aos autores um direito exclusivo, transmissível aos herdeiros, de utilização de suas obras (art. 5º, XXVII), "pelo tempo que a lei fixar". E como se trata também de um direito sobre o suporte, portanto um direito de propriedade, a mesma carta manda que se observe a função social de toda e qualquer propriedade (art. 5º, XXIII). A lei fixa esse tempo com base no mesmo tempo de duração das obras, vale dizer, 70 anos após 1º de janeiro do ano subsequente ao do falecimento do pintor, no caso.

Ora, entre um mandamento e outro há mais mistérios entre o céu e a terra do que simples aviões de carreira: o uso feito pelo Ballet Stagium não foi o da obra de arte plástica pintada por Tarsila do Amaral, o famoso Abaporu, hoje propriedade de um colecionador argentino, e exposto no famoso Malba de Buenos Aires, mas mera referência histórica, crítica e simbólica dela. Portanto, ao caso não se aplicam as leis autorais porque não é a obra, a tela, que está sendo exibida, reproduzida, ou editada, mas, simples referencia a ela como forma de exercício da liberdade de expressão artística e de pensamento, um peculiar modo de disseminar nossa história e nossa cultura, o que também encontra fundamento pétreo em nossa republicana Constituição (arts. 205 e 215).

Mas, mesmo que se aplicáveis as regras autorais, o fato comporta duas exceções previstas na lei de regência, a lei 9.610/98: ou como citação, posto que se trata o espetáculo de uma contribuição, a seu modo, para o estudo desse período das artes no Brasil, ou porque o inciso VIII do art. 46 permite o uso integral da obra de arte plástica desde que esse uso não concorra com o da obra em si. Pessoalmente, não creio nestas exceções porque, insisto, o espetáculo não se utiliza da obra, do quadro de Tarsila, mas tão somente da referencia maior dele. Nem de reprodução parcial se trata.

Se migrarmos para o campo dos conceitos tampouco socorre a lei autoral, uma vez que conceitos, projetos ideias, bem como os respectivos aproveitamentos industrial ou comercial das obras são imunes ao sistema autoral (art. 8º, I, e VII, lei 9.610/98).

O Pedido: que os herdeiros exerçam regularmente seus direitos, não cometendo abusos; que a companhia de dança não se deixe contaminar pela síndrome do medo, porque exercita direito constitucionalmente garantido; que o espetáculo volte a público para ser exibido e fruído por todos que o busquem, e por inteiro. Se ambas as partes perderam em seus propósitos, a maior prejudicada foi a sociedade privada parcialmente de uma forma lúdica e preciosa de registrar sua memória artística, e do verdadeiro e monumental papel de Tarsila do Amaral no rico período modernista brasileiro.

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* Eliane Y. Abrão é advogada do escritório Eliane Y. Abrão, Advogados Associados.


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