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Marco Regulatório do Terceiro Setor: alguns avanços e riscos de retrocesso

Apesar de atender algumas das expectativas nele depositadas, PL já nasce consagrando a dispersão da relação entre Estado e sociedade civil em diplomas legais variados.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Atualizado às 09:50

Tramitando na Câmara dos Deputados desde fevereiro, após aprovação no Senado, está na iminência de ser votado em plenário o Projeto de Lei que estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil (OSCs), comumente chamado de "Marco Regulatório do Terceiro Setor".

As parcerias entre as entidades sem fins lucrativos e o Poder Público, em especial os convênios, carecem há décadas de uma regulamentação que fomente a relação e abarque suas especificidades, que são tanto de natureza jurídica quanto política - vez que a execução de políticas públicas e a garantia de direitos sociais derivam amplamente, em alguns setores, de contratos provenientes dessas parcerias.

Os convênios são regulados por decretos, portarias e instruções normativas, instrumentos frágeis no amplo espectro do regime normativo do Terceiro Setor. Apesar de não haver lei sobre convênios, é por meio desse tipo de ajuste que se estabelece a maioria das parcerias entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil. (Além dos convênios, essa relação pode ser formalizada como um contrato de gestão, conforme a Lei das Organizações Sociais, ou por meio de termo de parceria, instrumento baseado na Lei das OSCIPs - ajustes que dependem da obtenção de títulos específicos pelas entidades envolvidas.)

Em busca de segurança jurídica, eficiência, transparência na gestão e no controle de recursos públicos, fortalecimento e incentivo para as parcerias entre Estado e sociedade voltadas para o interesse público, a sociedade civil aguarda, desde 2011, as conclusões do Grupo de Trabalho Interministerial para o novo Marco Regulatório das OSCs, instaurado pela presidente Dilma Rousseff. Em termos práticos, o resultado do GT é o projeto que agora tramita como PL 7168/2014.

Aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados no último dia 13 de maio, o Projeto de Lei, atende algumas das expectativas nele depositadas. Entre os avanços propostos, o projeto torna definitiva a exigência de processo seletivo para escolha da organização que será parceira do Poder Público, amenizando a insegurança jurídica que permeia a celebração de ajustes; autoriza expressamente a remuneração de equipes de trabalho, mesmo pessoal próprio da entidade, com os recursos do ajuste; possibilita projetos em rede; e legaliza o cadastro de entidades, hoje existente sem previsão em lei.

Essas melhorias, contudo, não compõem um conjunto que se possa reconhecer como um "marco regulatório". O PL nº 7168/2014 tem como propósito, conforme texto do seu art. 1º, instituir normas gerais para as parcerias voluntárias estabelecidas entre União, Estados, DF e Municípios e entidades diversas, seja da Administração Indireta seja da sociedade civil para a consecução de finalidades de interesse público. Sendo o propósito o de "instituir normas gerais" para as citadas parcerias, duas questões devem nortear a avaliação do texto proposto. Quais são os instrumentos necessários para instituir extensa e profundamente uma nova práxis no campo das parcerias entre Estado e sociedade voltadas para ações de fins de interesse público? Esses instrumentos estão previstos no Projeto de Lei?

O PL prevê dois formatos de relação entre OSCs e o Poder Público, balizados por dois instrumentos, o Termo de Colaboração e o Termo de Fomento (sem, na prática, distinguir regimes para ambas figuras). Esses novos modelos de ajustes não se aplicam às Organizações Sociais (Lei nº 9.637/98), mas seriam aplicáveis às OSCIPs "no que couber" - a mesma fórmula utilizada no art. 116 da Lei nº 8.666/93, a Lei das Licitações, no tocante aos convênios, e que resultou nos maiores problemas enfrentados por ajustes desse tipo país afora.

Assim como o regime de contratações públicas hoje no Brasil encontra-se disperso em diplomas diversos, sendo impossível dizer que a Lei nº 8.666/93 é sua norma regente - inclusive havendo decisões judiciais que contrariam seu caráter de norma geral em muitos aspectos - não é possível tratar o PL 7168/2014 como "marco regulatório das organizações da sociedade civil". Ele já nasce consagrando a dispersão da relação entre Estado e sociedade civil em diplomas legais variados, além de não contemplar os diversos órgãos de controle que participam dessa relação para além dos signatários dos ajustes.

Diante dessa dispersão e das lacunas apontadas, pode-se entender que, na prática, o proposto marco regulatório poderá, tão somente, regular os convênios.

Além do fato de ser duvidoso o êxito do PL 7168/2014 - caso se transforme em lei - na instituição de normas gerais e na criação de um ambiente institucional que permita sua aplicação de forma ampla e segura, outros aspectos do projeto merecem discussão mais acurada antes da votação final da matéria.

Entre os pontos mais questionáveis do PL, a exigência de aprovação do regulamento de compras da OSC pela Administração Pública, por exemplo, poderá resultar num significativo retrocesso, pois fere a autonomia das entidades e contradiz um objetivo geral desse tipo de parceria, que deveria se nortear pelo controle de resultados. Outro ponto especialmente problemático do texto atual é a previsão de sanções às OSCs com responsabilização individual de seus dirigentes, o que poderá acirrar um ambiente de desconfiança e não de fomento às entidades do Terceiro Setor.

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*Rubens Naves é advogado do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados, professor aposentado pela PUC/SP, conselheiro da Transparência Brasil, Fundação Abrinq/Save the Children e Fundação Padre Anchieta.






*Mariana Kiefer Kruchin é advogada do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados e mestre em sociologia jurídica.

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