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Os filmes americanos e o direito empresarial

O cinema também tem alguma coisa a nos ensinar no Direito Empresarial.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Atualizado em 1 de setembro de 2014 12:43

A filmografia norte-americana reflete aspectos daquela sociedade, tal como acontece em qualquer outro lugar onde se faça cinema. Ainda que em muitos casos os roteiros dos filmes rodados nos USA possam ser tomados como retratos caricatos do modelo de vida e de cultura ali desenvolvido, a intensa redundância de certos temas e de aspectos repetitivos da personalidade dos personagens, leva o observador a crer que eles (roteiros) são verdadeiros espelhos da realidade, podendo servir, com alguma criatividade, de base para que se possam tirar diversas conclusões, inclusive no plano jurídico e especificamente na área do direito empresarial.

No sentido acima, percebe-se que a filmografia americana apresenta como características quase sempre presentes a figura do perdedor (looser), contraposta à do vencedor (winner), este um modelo doentiamente buscado pelos personagens. Quem não viu mais de uma vez o desencanto completo do pai que tem um filho ruim nos esportes e que procura resgatá-lo de todas as maneiras possíveis da sua mediocridade no uso da bola?

É sintomático verificar que maiores do que o insulto ao comportamento moral da genitora de alguém são os insultos relacionados à pessoa do looser, chamado impiedosamente de yellow ou de chicken. Daí a busca da superação pessoal, de forma autônoma (talvez mais rara) ou por meio da intervenção de um guru (o Sr. Morita em Karatê Kid), que leva o looser a renascer de suas próprias cinzas, transformando-se no final do filme em winner.

Ultimamente os filmes americanos de aventuras têm se orientado para outra linha dedicada aos loosers, estes representados por um grupo de pessoas que envelheceram e, portanto, ficaram fora do seu antigo mercado (caso da série RED - retired and danger); ou por párias sociais que se redimem (Os Guardiões da Galáxia). Loosers no inicio do filme, todos se transformam em winners ao final, agora redimidos e prontos para novas peripécias. Quanto a este último filme existe até um vivente que era um looser vegetal semiglota, estigmatizado na sua sociedade, que se erige em winner, tendo se tornado no salvador dos demais companheiros, mercê do seu sacrifício de morte, da qual é ressuscitado por um dos companheiros. Conhecidos clichês, aliás, abundam nos filmes americanos.

Losers são também as pessoas que se contentam com uma vida de segunda classe, caracterizada nos faroestes americanos pelo pequeno comerciante ou agricultor, costumeira vítima de bandidos celerados; ou pelos mexicanos humildes que sempre apanham dos malvados e precisam de salvação vinda de fora (The Magnificent Seven, com Yul Brinner no papel principal, diretamente inspirado nos Sete Samurais de Kurosawa).

No contraponto são mostrados personagens vencedores na parte inicial da historia, que conquistam todas as garotas, até o momento em que elas percebem que tamanho não é documento (conforme De Volta para o Futuro). Aqueles brutamontes exibem comportamentos violentos, utilizando-se de todos os meios desleais que a criatividade do roteirista possa dar à luz, invariavelmente apresentados aos espectadores de forma negativa. Os malvados são figurados como jovens muito sarados, altos e fortes, mas também invariavelmente burros. A prática do bullying contra suas vítimas é uma das formas mais presentes no desempenho dos tais vencedores. Mas no final o bem vence contra o mal e os antigos vencedores se transformam em vencidos. The end!.

Toda essa filosofia filmográfica não deixa de aparecer também nos desenhos, dos quais os exemplos são inúmeros e um dos mais recentes corresponde à Universidade Monstros, no qual o baixinho verde de um olho só procura mostrar que é melhor do que todos os outros alunos, inclusive do que o seu enorme companheiro azul, como convém, grandão, vaidoso e meio burro.

Bem, o que isto tem a ver com o direito empresarial?

No comércio o empresário sempre precisa ser um vencedor. Não há espaço para loosers. A luta pelo mercado, ou melhor, em cada um dos inúmeros mercados que existem, não contempla perdedores. Ao menos não deveria fazê-lo, pois o perdedor ineficiente representa um elo negativo na cadeia, produzindo caro em sem qualidade. Entretanto, tal como nos filmes, na vida empresarial se costuma dar uma segunda chance ao perdedor, para que se levante e volte a produzir, foco já relativamente presente na antiga concordata, e agora rejuvenescido no instituto da recuperação judicial. Neste caso, no entanto, não se trataria de um perdedor como tal vocacionado, mas de alguém que, por motivos estranhos à sua vontade, perdeu uma batalha importante e precisa de ajuda para sobreviver. Este era precisamente o caso da concordata voltada no seu tempo, como se dizia, para o empresário honesto e de boa fé, mas infeliz nos seus negócios. Tal como alguns roteiros que transformados em filmes se revelam um desastre, a ideia original da concordata veio a ser inteiramente deturpada na realidade brasileira.

Do que foi dito acima é possível concluir que o novo instituto da recuperação judicial não pode conviver com a desonestidade e a fraude e nem com a incompetência congênita do empresário perdedor. Sabe-se que critérios paternalistas adotados pelo Judiciário têm levado à concessão da recuperação judicial para empresas desde logo reveladas inviáveis, o que somente contribui ao longo do tempo para o aumento dos custos de transação no mercado e para o consequente aumento das perdas dos seus participantes.

Deve-se atentar na recuperação judicial para a situação daquele looser que atravessou o ponto de não retorno: não adianta lhe dar mais combustível, pois sua empresa jamais chegará a um porto seguro.

O caráter da filmografia americana também pode ser aproveitado no que diz respeito ao direito concorrencial, com uma aplicação um pouco diversa. Enquanto nos filmes o bullying é inteiramente reprovado, no mercado ele deve ser até mesmo incentivado em certa medida, desde que o empresário que o utiliza não haja de má fé ou com deslealdade. Dessa forma, por exemplo, é aceitável certo nível de publicidade comparativa, por meio da qual o empresário procura mostrar que o seu produto é melhor e/ou mais barato do que o do concorrente, cerceada a sua atuação no limite do denegrimento. No direito brasileiro, no entanto, os Guardiões do Mercado têm exagerado na proteção do consumidor e do concorrente considerado mais fraco, por meio da aplicação de princípios no fundo ligados à ideia do politicamente correto, que nem sempre é juridicamente correto.

Trata-se, mais uma vez, do Estado paternalista, que considera o consumidor e o concorrente hipossuficiente como eternos incapazes relativos (quem sabe não absolutos?). A liberdade de atuação no mercado está ficando cada vez mais restrita, de forma a que os loosers não precisam se preocupar com os winners, pois a estes eles serão legalmente igualados por meio de mecanismos jurídica e economicamente artificiais. É este o campo propício da difusão distorcida do principio da função social, seja da propriedade, da empresa ou do contrato.

No sentido acima o direito empresarial faria o papel permanente do cawboy salvador que é contratado como xerife para limpar a cidade dos bandidos, pois os moradores são covardes demais para fazê-lo por si sós (Onde Começa o Inferno com John Wayne e Dean Martin. Este é um perdedor bêbado, muito significativamente apelidado de Dude, resgatado pelo seu amigo, o xerife Chance). Perdoem-me o trocadilho, mas Dude, magistralmente representado em um raro papel dramático por Dean Martin, recebe de John Wayne uma nova Chance.

Existem, ainda, muitos filmes nos quais os bandidos se reúnem em quadrilha para aumentar o seu poder e tornar fácil a vitória sobre os mais fracos, caracterizada sua expressão por uma divisão do mercado. É o que se dá em muitas películas sobre a máfia, formando-se uma união instável, frequentemente quebrada pela traição (Era Uma Vez na América, com Robert DeNiro). Seria ela uma situação de cartel, penalizada no campo do direito concorrencial, considerando-se que em cada uma das regiões cartelizadas se estabelece um monopólio que permite ao seu dono praticar os preços que bem entender e vender gato por lebre, sem que a clientela possa reclamar.

Como se verifica, o cinema além das diversas finalidades que possa exercer, entre as quais a de puro divertimento, também tem alguma coisa a nos ensinar em outros campos, até mesmo no do direito empresarial. Por enquanto ficamos por aqui, mas a série poderá continuar.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados.

 

 

 

 

 

 

 

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