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A Petrobras e a mulher de César - os deveres dos conselheiros e diretores (2)

Vamos ver como a lei societária cuida da responsabilidade dos administradores, como tais entendidos os membros do conselho de administração e os diretores.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Atualizado em 13 de janeiro de 2015 14:12

No artigo anterior foi abordada a questão da responsabilidade do controlador, tomando-se o triste exemplo da Petrobras para verificar como ela deveria funcionar. Vamos ver agora como a lei societária cuida da responsabilidade dos administradores, como tais entendidos os membros do conselho de administração e os diretores.

A responsabilidade em causa se dá pelo descumprimento dos deveres que a lei estabelece taxativamente. Tem-se usado na doutrina a expressão deveres fiduciários, para explicar a sua natureza jurídica, visão com a qual eu costumo implicar, pois ela vem do direito anglo-norte-americano que, no caso, nada tem a ver com o regime jurídico societário brasileiro, filiado ao sistema do direito romano-germânico.

Fiduciário vem do latim, ligado ao termo que no português corresponde à fidúcia, ou seja, confiança. Ora, o dever dos administradores de sociedades entre nós é de natureza legal e não baseado na confiança, que é apenas um dos elementos formadores da convicção de quem escolhe um administrador. Portanto, trata-se de deveres legais, de natureza impositiva, que encontram na lei uma relação imediata entre descumprimento e responsabilidade.

Vamos abrir um parêntese aqui para criticar o tão famoso complexo de vira-latas que o brasileiro tem em relação a outras culturas ditas mais avançadas do que a nossa, inclusive quando se trata do direito empresarial, especialmente nos campos societário e contratual. Nestes temos visto uma invasão sem precedentes do direito anglo-norte-americano, que têm ditado modelos importados diretamente e sem qualquer filtro pelos nossos operadores do direito.

Ora, muito tempo antes de haver nascido a common law na Inglaterra, o direito romano já imperava no mundo alcançado pelas legiões romanas, que não era pequeno. Como todo estudante de direito sabe, o Corpus Juris Civiles foi compilado pelo imperador Justiniano I por volta do ano 530 da nossa era e ele era tão somente o repositório de uma legislação construída ao longo de muitos séculos que o precederam. Afinal de contas, Roma, como todo mundo sabe, é muito antiga, tendo sido fundada por volta de 750 a.C. e, segundo a lenda, por um fugitivo da guerra de Tróia, conforme o relato do poeta Virgílio, na Eneida (o mesmo que foi o guia turístico de Dante Alighieri na Divina Comédia, que o levou a excursionar pelo purgatório, inferno e céu). Sem contar, ainda, a participação no nascimento de Roma dos irmãos Rômulo e Rêmulo, que foram alimentados pela Lôbala.

Reconhece-se que teria havido um período de sombras em relação àquela compilação, mas com a criação das primeiras universidades na Europa a partir de 1100 d.C, o direito romano formou a base do conhecimento jurídico daquele continente e de lá passou para o Brasil com a fuga de D. João VI. E não se esqueça de que muito tempo antes da Inglaterra haver se tornado a Rainha dos Mares, o comércio já era praticado há séculos no Mediterrâneo, tendo sido incorporados ao direito de então muitos institutos que ainda sobrevivem e que originaram diversos outros enriquecedores do direito comercial continental europeu.

Os dois sistemas jurídicos (romano-germânico e anglo-norte-americano) têm as suas virtudes e defeitos. Nenhum deles é perfeito e nem poderia ser. Não há dúvida de que a sua interpenetração é desejável, pois o direito como um todo se aperfeiçoará, mas com as devidas cautelas e quando isto for necessário. Não como um simples modismo.

Fechamos agora estes parênteses, sabendo-se que um pouco de cultura inútil não faz mal a ninguém, além do que o leitor não teve de pagar por ela qualquer preço extra.

Voltando ao nosso tema, como se sabe, os deveres dos administradores fundamentalmente são o de diligência, o de lealdade e o de informar, este nos casos especialmente previstos pelo legislador. Dentro do dever de lealdade pode-se entender que está incluído o de não agir em situação de conflito de interesses. Olhando para o caso da Petrobras, nós vemos que, infelizmente, esses deveres foram descumpridos à risca, ou seja, inteiramente postos de lado conforme se tem verificado pelas denúncias e informações que todos os dias chegam ao nosso conhecimento. Pode-se imaginar que os administradores da Petrobrás tomaram a lei e o seu estatuto com o sinal negativo, ou seja, tudo o que nela é proibido tornava-se permitido e vice-versa. Afinal de contas alguém já disse que não existe pecado na linha debaixo do equador. Mas se isto é verdade, cuidado, alguns deles foram praticados do lado de cima, no mercado de capitais e nas bolsas de valores dos Estados Unidos.

Segundo o dever de diligência, o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.

Estamos na presença de um standard jurídico, isto é, um padrão de conduta modelo, que no direito brasileiro também vem do direito romano, na figura do bônus pater famílias. Assim sendo, da mesma maneira como se espera que uma pessoa ativa e honesta cuide dos seus próprios negócios, assim também deve agir o administrador da companhia no exercício do seu cargo.

A própria palavra diligência mostra que o papel do administrador é ativo e não passivo. Ele não pode ficar sentado atrás da sua mesa esperando tomar conhecimento do que acontece na sociedade que gere e exercer a sua função na medida em que cheguem papéis para a sua assinatura. Principalmente no que diz respeito ao conselheiro de administração essa diligência envolve estar sempre atento e não somente isto, ele deve sair atrás de informações e não apenas aguardar que elas cheguem. Para tanto ele tem todos os poderes necessários. E fato de que o conselho de administração se reúne periodicamente, não quer dizer que o administrador deve trabalhar somente nas datas das suas reuniões ou nas prévias.

O exemplo mais marcante dos desastres em penca da Petrobras está no episódio do negócio com a refinaria de Pasadena. Para o fim do seu fechamento os conselheiros receberam um relatório de magras duas páginas e, com os elementos ali presentes, deram a sua aprovação. Tudo errado e não apenas porque o valor da operação era bastante elevado. Estava errado na essência. Não podiam os conselheiros ter se apoiado tão somente naquele documento. Deveriam ter investigado mais, como faz o cachorro sabujo quando se lhe aproxima do nariz a roupa de uma pessoa desaparecida. Ele segue atrás dos rastros do cheiro exalado daquela roupa até o seu completo esgotamento. O conselheiro de administração tem que ser o melhor cão de caça e não um gato gordo que dorme languidamente sob o sol depois de haver devorado uma lasanha inteira, como faz o nosso querido Garfield. E isto era uma regra que não acontecia naquela que foi a maior empresa brasileira.

E quando se tem em vista que a Petrobras é uma companhia aberta, com papéis negociados não somente no Brasil, mas no mercado internacional, então a obrigação de diligência se tornava muito mais intensa, em vista dos princípios que tutelam os valores mobiliários e os investidores que neles aplicam os seus recursos.

Além do mais, ainda nos termos do direito aplicável, o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

O dever em questão aplica-se sem qualquer distinção a todos os administradores, independentemente de quem tenha sido o seu eleitor. Isto porque, nos termos da lei, mesmo o administrador eleito por grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres.

É desanimador verificar como administradores eleitos por grupos minoritários da Petrobrás deixaram a diligência de lado, conforme deveria ter sido a medida de suas obrigações, para coonestarem tudo o que de errado se fez naquela empresa.

Segue-se na lei o dever de lealdade. No exercício do seu cargo o administrador deve servir com lealdade à companhia e, entre outras situações, omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia.

Esse dever tem, portanto, dois lados, o ativo (servir com lealdade) e o passivo (não omitir-se). Os dois estão diretamente relacionados ao cumprimento do objeto social da sociedade. Ser leal em tal sentido significa buscar da forma mais completa e mais eficaz possível que a sociedade atinja os seus objetivos. Não pode o administrador simplesmente receber os seus benefícios e obedecer ao Chefe porque, afinal de contas, ele acha que para isto foi designado. Ora, se assim acontecer, não adiante reclamar que apenas cumpriu ordens, pois ele é responsável pelos prejuízos que a empresa vier a sofrer, de forma solidária com os demais.

Pelo que se pode inferir dos fatos conhecidos o conselho de administração da Petrobras funcionava como um clube de luxo, frequentado pelos seus membros em permanente festa, uns ativos na desconstrução da empresa e outros a esses aliados na alegria contagiante causada pelos polpudos honorários que todos recebiam. O pior de tudo é que alguns deles executavam planos que nem Maquiavel nem o cardeal Richelieu poderiam ter imaginado na realização de interesses políticos nada democráticos e muito menos legitimamente empresariais.

Dentro deste cenário de tragédia, outro dever foi infringido de forma generalizada, pois muitos administradores agiram em clara situação de conflito de interesses com a sociedade. Isto porque, na intrincada rede de contratos celebrados no âmbito daquela sociedade e de outras a ela ligadas, sabe-se que ocorreu a prática generalizada da intervenção de administradores em situação de interesse conflitante com o da companhia, tendo agido em beneficio do Grande Eleitor, e de outros interesses menores ali presentes, até mesmo os pessoais.

Quanto aos diretores, estes devem realizar o objeto social e quando a organização da sociedade sob sua gestão é complexa, envolvendo uma quantidade significativa de colegas, a lei exige que ele não se contente com o que faz no seu pedaço, por melhor que nele atue, mas deve observar o que os outros fazem, de bom e de ruim. Sendo omisso na fiscalização dos seus companheiros, ele responderá pelos prejuízos que tenham sido causados à companhia.

Voltando ao nosso paradigma, nela age uma enorme quantidade de diretores, dentro e fora do País, parece que atuando como se o modelo fosse o do feudalismo já quase chegando à monarquia. Neste os senhores feudais eram donos de suas terras e nelas faziam quase tudo o que bem entendiam, mas tinham deveres para com o rei. Alguns diretores tinham, em uma linha descendente de hierarquia o título de duque, outros de condes, viscondes e barões, cada um deles mamando sofregamente nas tetas gordas do leite viscoso e negro que sua empresa produz.

Vá lá que tenham existido diretores honestos, mas onde estavam? Cadê os seus relatórios críticos e sua discordância expressa em relação ao grande baile da Ilha Fiscal? Deles não se tem notícia. Voltando aos conselheiros de administração, onde estão os seus votos divergentes, seus pareceres contrários, sua inconformidade, afinal de contas? Nada se sabe a respeito, exceto o que surgiu recentemente no plano de algumas denúncias em nível inferior ao da administração eleita.

Finalizando por enquanto. Toda esta situação gera responsabilidades no plano societário, o que será visto no próximo capítulo. Os comerciais, por favor.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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