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A Petrobrás e a mulher de César- Os agentes inoperantes de fiscalização (3)

Dentro de um sistema de fiscalização tão abrangente como aquele ao qual a Petrobrás se encontra sujeita, não se pode compreender que tenha sido possível a prática de ilícitos de tanta gravidade e há tanto tempo.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Atualizado em 27 de janeiro de 2015 11:45

Conceição, ninguém sabe, ninguém viu.
(letra de um samba imortalizado por Cauby Peixoto).

Nos textos anteriores desta série foram tratados os temas da responsabilidade do controlador e dos administradores de companhias, tendo se tomado como parâmetro os conhecidos malfeitos ocorridos na Petrobrás. Desta feita pretendemos examinar os mecanismos de fiscalização inerentes a tais sociedades, destacando o fato de que a nossa (nossa não, deles) petroleira é uma companhia aberta, cujos valores mobiliários são negociados nos mercados brasileiro e internacional.

Em qualquer tipo de associação humana são criados mecanismos de fiscalização a partir do momento em que alguma espécie de um bem é colocada nas mãos de terceiros para alguma finalidade. Assim sendo, os pais têm o direito de fiscalizar o diretor e os professores da escola onde seus filhos estudam; o dono da fazenda estabelece um capataz para fiscalizar os seus empregados e cuidar dos bens e animais dispostos na sua exploração; o dono da padaria coloca um gerente para cuidar dos assuntos do dia-a-dia, enquanto ele gere o negócio em um plano superior; e por aí podem seguir-se inúmeros outros exemplos.

Quando se trata de sociedades comerciais, tais mecanismos são conhecidos de longa data, não sendo necessário neste momento ir além daqueles que estão presentes mais recentemente na história do Direito Mercantil. Comecemos pelo antigamente tão desacreditado conselho fiscal.

Previsto para as companhias na nossa história legislativa societária, esse órgão jamais funcionou a contento no regime do decreto-lei 2.627/40, de forma generalizada. Então de existência e funcionamento obrigatórios, o conselho fiscal era formado tão somente para atender a lei, composto por pessoas que no mais das vezes nem sequer sabiam do que se tratava. Quem conhece tal realidade já viu muitas vezes esse filme. Na minha experiência durante a realização de incontáveis inquéritos previstos na lei 6.024/74, objetivando a responsabilidade dos administradores de instituições financeiras sob algum dos regimes interventivos decretados pelo Banco Central do Brasil, pude verificar a intensidade desse fato.

Era comum serem chamados os conselheiros fiscais de tais instituições financeiras para depoimento e, nas respostas às perguntas formuladas, diziam que, profissionalmente, eram dentistas, médicos, engenheiros, donas de casa, etc., geralmente amigos do dono da empresa, a quem prestavam um favor; não sabiam o que os conselheiros fiscais deviam fazer; uma vez por ano alguém lhes trazia um livrão preto de capa dura, escrito à mão, para que assinassem no lugar indicado; e que recebiam uma remuneração módica para essa tarefa. Ficavam muito surpresos e chocados quando lhes era informado que a empresa da qual eram conselheiros fiscais estava falida e que, eventualmente, eles poderiam ser responsabilizados pela omissão dos seus deveres de fiscalização.

A lei atual, procurando resolver uma situação fática, estabeleceu que o conselho fiscal nas sociedades anônimas continuava a ter existência obrigatória, mas o seu funcionamento seria facultativo, exigido quando acionistas assim o requeressem ou quando leis especiais apresentassem determinação em tal sentido, como ocorre em relação às companhias abertas.

Nossa cara (nem tanto agora) Petrobrás tem, portanto, um conselho fiscal de existência e funcionamento obrigatórios. Será que esse conselho fiscal exerceu suas funções com diligência e eficácia? Tudo indica que não. O que dizem os seus pareceres?

Mas como qualquer organização, segundo vimos acima, a Petrobras deveria ter em pleno funcionamento também um sistema de fiscalização interno, autônomo, que deveria se reportar tão somente ao seu conselho de administração e à sua diretoria, nos termos do estatuto social. Na categoria de um agente do interesse daqueles dois órgãos, a fiscalização interna deveria ter acesso a todas as informações e documentos necessários ao conhecimento dos fatos patrimoniais relevantes da empresa, deles dando conta àqueles órgãos. Se tal serviço existe na Petrobrás e se ele exerceu sua função de forma autônoma, havendo entregue os relatórios correspondentes, claramente eles deveriam ter indicado alguns dos muitos malfeitos que ali vinham ocorrendo há muito tempo. Onde estão tais relatórios?

Mais uma vez recordando a minha experiência profissional que já vai completando meio século, meu primeiro emprego foi exercido em um banco comercial em SP, iniciado tão logo eu entrei para a faculdade de direito do Largo S. Francisco. Eu frequentava as aulas pela manhã, almoçava rapidamente e começava o meu trabalho às 13h. Um dia, ao chegar, percebi um alvoroço muito grande, com gente preocupada e correndo para todos os lados. Logo fui chamado para realizar algumas tarefas com urgência e fiquei sabendo que a inspetoria interna havia chegado de surpresa e estava exigindo um mundo de informações e de documentos.

Embora aquela agência fosse uma das principais daquele banco sua sede ficava em outro Estado e os inspetores quando chegavam não davam satisfação a ninguém, não falavam com ninguém, não almoçavam com ninguém da agência e depois de terminados os seus trabalhos desapareciam sem deixar rastros. Algum tempo depois algumas cabeças da agência rolavam e todo mundo tinha certeza de que aquilo era o resultado do relatório que eles deveriam ter apresentado aos diretores do banco. Por essa razão, aqueles inspetores eram mais temidos do que as bruxas malvadas dos contos de fada. Esse banco passou por várias transformações mas jamais quebrou.

Em outro exemplo, quando já pertencia aos quadros do Banco Central do Brasil, eu exerci durante alguns anos a função de fiscal e depois a de inspetor, antes de haver chegado à procuradoria jurídica. O cargo de fiscal foi criado em 1974, situado em um patamar imediatamente abaixo do de inspetor. Enquanto estes foram destacados para trabalharem nas matrizes das instituições financeiras, os fiscais foram designados para atuarem junto às agências. Havia uma desconfiança de que estas estavam sendo utilizadas para a prática de ilícitos que escapavam ao controle dos inspetores do BCB atuando nas matrizes. Observe-se que naquele tempo a informática estava apenas nascendo como ferramenta destinada ao registro das operações das empresas.

Ora, eu e outro colega fomos designados para a fiscalização de agências do bairro de Pinheiros em São Paulo. Começamos pela primeira que encontramos na rua Teodoro Sampaio, subindo a partir da av. Faria Lima. O primeiro banco escolhido era controlado pela colônia japonesa e quando o gerente da agência foi colocado diante de dois fiscais ele quase teve um infarto. Não deu meia hora e dois diretores do banco chegaram para falar conosco. Resumindo a história, conforme nós prosseguíamos o nosso trabalho rua acima, cada nova agência ficava cada vez mais limpa de qualquer problema que pudéssemos encontrar, pois o boca-a-boca no bairro deu conta de que estávamos para chegar a qualquer momento. Ou seja, haviam sido postos dois cães de guarda a cuidar do galinheiro e os galos do terreiro tiveram que se virar para prestarem as contas adequadas.

Isto que dizer que quando uma fiscalização presencial e autônoma é posta em funcionamento, logo surgem todos os podres do reino da Dinamarca e não somente alguns.

Parece que na Petrobrás não havia ou não funcionava a contento a fiscalização ou a auditoria interna. Se existia, provavelmente ao invés de cães de guarda, foram designadas raposas para fiscalizarem aquele galinheiro.

Por outro lado, integrando o sistema de fiscalização interna, a contabilidade das sociedades empresárias deve fazer o registro pronto, completo e adequado de suas mutações patrimoniais, que será um elemento extremamente importante para subsidiar aquela função. Nada de caixa 2. Em uma empresa tão grande como a Petrobrás, o papel da contabilidade é de extrema importância e seus dados devem ser registrados segundo um plano de contas apto ao fornecimento das informações sem qualquer distorção, sob a responsabilidade de um profissional para tanto habilitado. Como será que andava aquela contabilidade? Veja-se que atualmente a informática permite fazer avaliações detalhadas e profundas a partir de um determinado universo de informações cruzadas. Neste sentido, praticamente não há desculpa para falhas.

Na qualidade de companhia aberta o sistema legal de fiscalização determinava à Petrobrás que fosse auditada por uma entidade de auditoria independente, sabendo-se que isto foi feito ao longo dos últimos anos por algumas das mais renomadas no mercado internacional e que recentemente houve recusa à aprovação das demonstrações financeiras daquela até que correções sejam efetuadas.

Desde o triste episódio da falência da Enron, que levou de roldão junto com ela uma das antigas big five do mercado de auditoria, essas entidades andam com a pulga atrás da orelha, não desejando serem submetidas aos riscos de responsabilização por falhas no seu trabalho, sempre preocupadas com fraudes eventuais nas sociedades auditadas, cuja identificação segundo elas, não faria parte normal de suas incumbências. A pergunta pertinente que corre no mercado está em saber se ao longo dos últimos anos os balanços auditados da Petrobrás não teriam sido manipulados e se as entidades de auditoria independente que lhe prestava tais serviços poderiam ter sido enganadas. Pior ainda, sabendo de irregularidades ali existentes, se teriam sido cooptadas pelo seu patrão e somente teriam acordado quando a coisa começou a esquentar no mercado de capitais americano. Neste, como se sabe que ninguém dorme em serviço e que os efeitos de eventual responsabilização podem levar muita gente para a cadeia.

Como se verifica, mesmo sem qualquer fundamento objetivo, a sombra do caso Enron se projeta ainda por todo o mundo da auditoria independente.

Finalmente, cabe perguntar, durante todo esse tempo, o que estava fazendo a CVM? Parece que, para esse órgão, nada demais aconteceu na Petrobras ou, em outra situação, ela não viu nada, a começar do famigerado aumento de capital com a utilização de direitos futuros relativos à exploração do pré-sal.

Imagine o leitor se o Corpo de Bombeiros viesse a esperar que o fogo em um edifício se alastrasse para que finalmente tomasse as providências cabíveis para apagar o incêndio. Inimaginável, não?

Em matéria recentemente publicada no jornal O Estado de São Paulo, de 14/1/15, o presidente da CVM teceu algumas considerações a respeito do seu papel diante da crise da Petrobrás.

Na questão relativa às refinarias de Pasadena e Abreu e Lima e também sobre a política de preços de combustíveis foi dito que era necessário reunir o máximo de munição possível antes da adoção de medidas contra as pessoas envolvidas, administradores e acionistas. Ele se manifestou no sentido da necessidade de atualização das penalidades que a CVM pode aplicar, considerado o tempo bastante longo da promulgação da lei 6.385/86, que a criou. O objetivo de uma proposta encaminhada ao governo Federal se deu no sentido do estabelecimento de novas penas que desencorajassem os agentes quanto a práticas erradas, expressão que é uma verdadeira pérola no ramo do eufemismo.

Na defesa daquele Órgão, o seu presidente informou que ele monitora as companhias de forma preventiva, por meio de um Plano de Supervisão Baseada em Risco. Afirmou que houve atuação em relação à Petrobrás por meio de algumas medidas que haviam sido tomadas a partir de denúncias de investidores sobre irregularidades inerentes aos negócios com as refinarias de Pasadena e Abreu e Lima, além do caso da politica de preços de combustíveis.

No entanto, a impressão que analistas do mercado deixam transparecer é que CVM foi no mínimo omissa quanto às medidas que deveriam ter sido adotado frente às questões relativas à Petrobrás. Alguns desses analistas assumem que não teria havido omissão, mas captura da CVM pelo governo.

Vamos a uma conclusão que pode ser provisória. Dentro de um sistema de fiscalização tão abrangente como aquele ao qual a Petrobrás se encontra sujeita, não se pode compreender que tenha sido possível a prática de ilícitos de tanta gravidade e há tanto tempo, sem que qualquer medida efetiva tivesse sido tomada nas esferas administrativas e jurídicas adequadas. Tal sistema de fiscalização revelou-se uma verdadeira Conceição do Mercado de Capitais, a respeito de quem, ninguém sabe, ninguém viu.

Ou, rememorando o grande Adoniran Barbosa (hoje eu estou muito musical), por onde andavam Joca e Mato Grosso, inefáveis personagens dos conhecidos sambas Saudosa Maloca e Abrigo de Vagabundos, ao tempo em que na Petrobrás malfeitos diversos se tornaram um verdadeiro produto daquela empresa?

Prezados leitores, agradecido por haverem escolhido navegar pela nossa empresa nesta triste viagem, deixamos em aberto a possibilidade de voltarmos ao tema. A passagem é gratuita, não sendo sequer usar as milhagens do estoque.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.







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