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Bolsa Transcidadania

As políticas públicas são instrumentos de intervencionismo estatal e carregam ferramentas que visam minimizar as dificuldades de um grupo social mais fragilizado.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Atualizado em 6 de fevereiro de 2015 10:52

A prefeitura de São Paulo lançou o programa Transcidadania que oferece bolsas de estudos no valor de R$ 840,00, com duração de dois anos, e tem por objetivo dar acesso à escola e cursos profissionalizantes a travestis e transexuais, em situação de vulnerabilidade. A iniciativa municipal, ao mesmo tempo em que causou estranheza pela tutela oferecida, deixou no ar uma ideia enviesada da natureza do benefício.

A cidadania é uma conquista do Estado Democrático de Direito que distribui de forma igualitária os direitos civis, políticos e sociais das pessoas, de forma isonômica, visando ofertar uma proteção plena, sem distribuir qualquer privilégio em separado a quem quer que seja, erigindo o status civitatis em toda sua dimensão.

A igualdade prescrita na Lei Maior, apesar do idealismo dos socialistas utópicos, não tem como vingar, pois pressupõe diferenciações que são naturais em qualquer grupo de pessoas. Surge então, até de certa forma obrigatória, a participação do Estado como ente garantidor do acesso a bens e direitos, através de políticas públicas e ações positivas, àqueles que se encontram na rota do abandono proporcionada pelo próprio descaso do poder público. Pode-se dizer que é a busca da igualdade justa concebida por Canotilho.

Assim, as políticas públicas são instrumentos de intervencionismo estatal e carregam ferramentas que visam minimizar as dificuldades de um grupo social mais fragilizado para atingir condições adequadas visando a realização do seu projeto de vida. Soares, em feliz arremate, é incisivo em considerar que "cabe ao Estado assegurar possibilidades realmente iguais para realização dos direitos referentes às liberdades do indivíduo, ao possibilitar a cada qual satisfazer suas necessidades, segundo sua capacidade, e usufruir das conquistas da sociedade"1.

A finalidade da intervenção não é a de proporcionar ao cidadão a realização de um interesse privado, mas sim efetivar os direitos pertinentes à cidadania, que coincidem com a efetivação do interesse público. Seria a aplicação original do Welfare State, em que o assistencialismo estatal busca de todas as formas estabelecer a igualdade entre as pessoas, concedendo o mesmo tratamento e respeito, porém reconhecendo as desigualdades funcionais, sociais e econômicas.

O projeto lançado pela prefeitura de São Paulo é plausível, mas cria outra dimensão social, quando proporciona a inclusão de um número muito limitado de pessoas em detrimento de várias outras, também em estado de vulnerabilidade. O prefixo "trans" de transcidadania traz o significado de "além de", "para lá de", "depois de", segundo o Dicionário Houaiss, deixando entender que se trata de especial benefício a um grupo, ultrapassando as barreiras da igualdade e ferindo a própria cidadania.

Tanto é que recebe nesta primeira fase somente 100 interessados e confere a cada uma deles um valor que se apresenta superior ao salário mínimo. Não que travestis e transexuais não mereçam a tutela legal, mas outros cidadãos, de porte idêntico de vulnerabilidade e até mesmo pior, não são aquinhoados pelo benefício.

A vulnerabilidade campeia livre na sociedade brasileira. Pode-se até dizer que toda pessoa tem sua vulnerabilidade intrínseca com origem na sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais produzidos pela comunidade moderna como pobreza, falta de acesso à educação, alijamento dos mais comezinhos direitos de cidadania, doenças crônicas e endêmicas, fobias, estresses, depressão, além de outros.

A boa política do bem-estar social recomenda que as medidas protetivas devem atingir o maior número possível de pessoas que se encontram em situações idênticas, justamente para não quebrar a isonomia preconizada constitucionalmente. Cai por terra e apresenta-se contraditória qualquer política pública que restrinja o alcance e exclua do benefício indivíduo também vulnerável, mas que não seja travesti ou transexual.

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1Soares, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalização. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p.201.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

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