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O gerente e o furto de picanha, por Eudes Quintino

O gerente e o furto de picanha

Já advertia Machado de Assis que a ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito.

domingo, 19 de abril de 2015

Atualizado em 17 de abril de 2015 13:51

Um fato aparentemente simples, despojado de qualquer conotação que enseja manifestação social relevante, como se fosse um acontecimento rotineiro e que às vezes passaria despercebido, cria uma acentuada expectativa jurídica, espaço em que conflitantes correntes despejarão seus pensamentos, pois o Direito vive do fato social e cuida das condutas humanas previamente ajustadas nas regras legislativas.

Interessante e até mesmo revestido de verniz jocoso a notícia de que um gerente de supermercado, ao flagrar um cliente subtraindo para si quatro peças de picanha, a elas adicionou mais dez, totalizando quatorze no registro policial. Justificou o funcionário que assim agiu porque julgou que a lei não fosse reprovar a quantidade real subtraída e acrescentou as outras peças para que tivesse o contorno de uma quantidade expressiva e, consequentemente, gerasse um apenamento mais rigoroso.1

Diante da confissão do larápio e o relato do gerente, o imbróglio começou a ganhar corpo a partir da lavratura do auto flagrancial. O delegado responsável imputou ao gatuno a prática do delito de furto, na modalidade tentada. Ao gerente imputou o ilícito de fraude processual consistente em "inovar artificiosamente na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito", no termos do artigo 347 do
CP.

Com relação ao furto das quatro peças de picanha não se discute a respeito da subtração tentada. O responsável, se preenchidas as condições, será colocado em liberdade mediante fiança ou não. Já com relação à fraude processual ocorreu a consumação no instante em que o agente introduziu as outras peças às rei furtivae. E, no caso narrado, foi colocado em liberdade mediante o pagamento da fiança arbitrada.

Poder-se-ia questionar a respeito da não ocorrência deste último delito, uma vez que o tipo penal restringiu sua ocorrência somente com relação ao processo civil ou administrativo, sem qualquer referência ao inquérito policial. Pela melhor regra de hermenêutica é forçoso concluir que o legislador, quando faz referência ao processo administrativo, refere-se única e exclusivamente àquele instaurado pela administração pública secundum legem e o due process of law, com relevo à observância do contraditório.

A atipicidade sugerida, no entanto, tem vida curta e cai por terra em razão do conteúdo do parágrafo único do referido artigo, que acrescenta a possibilidade de produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, com aplicação da pena em dobro, compreendendo, forçosamente, a persecução penal.

A situação processual do gerente é delicada e inspira cuidado. Apesar de não ter praticado qualquer ato ligado à subtração, responderá isoladamente pela prática de outro ilícito. Aparentemente, para o leigo, sua conduta não deveria ter contorno ilícito, uma vez que a ação principal foi praticada pelo furtador e não trará qualquer consequência penal. Pode-se até cogitar que sua intenção não foi a de burlar a administração da justiça e sim criar entrave maior para impossibilitar a concessão de liberdade ao furtador, levando-se em consideração que os comerciantes costumeiramente participam às autoridades policiais a ocorrência de furtos, oportunidade em que são lavrados os autos flagranciais e no dia seguinte o meliante retorna ao estabelecimento.

Ocorre que praticou uma conduta fraudulenta contra a administração da Justiça ao fazer o falseamento de um prova com a finalidade de prejudicar a correta avaliação judicial e a adequada aplicação da pena. "Atenta-se, portanto, segundo basilar definição de Prado, contra o regular funcionamento da atuação judicial e contra a administração correta da justiça, prejudicando-a em sua realização prática e ofendendo o prestígio e a confiança que deve inspirar."2

Já a do furtador transita por uma via sombria. Pode acontecer que entenda a justiça que a ofensa ao patrimônio da vítima é tão diminuta que não representa prejuízo a ser considerado e, com base no princípio da insignificância, determina o arquivamento do procedimento. Também não pode ser afastado o reconhecimento do furto famélico, com a alegação de que o agente era de gosto refinado por carnes e se encontrava diante do inafastável estado de necessidade, causa excludente da ilicitude e de sua fome. Sem desprezar ainda a aplicação da
lei 9.099/95, que concede ao infrator interessante benefício, sem a instauração do processo penal. Há, ainda, na pior das hipóteses, a possibilidade da Justiça, após o ajuizamento da ação, lançar mão do conceito de pequeno valor previsto no § 2º do artigo 155 do CP. e, se preenchido o requisito da primariedade, substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de 1 a 2/3, ou aplicar somente a pena de multa.

Já advertia Machado de Assis que a ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito. O furtador, useiro e vezeiro, vendo apetitosas peças de picanha expostas no balcão, não teve outra conduta a não ser subtraí-las, de acordo com a quantidade de sua conveniência. Foi criterioso. O gerente, ao contrário, primário nas lides penais, agiu atabalhoadamente. A balança da justiça é rigorosa e aceitou somente as peças que foram objeto do ato ilícito. As demais foram computadas ao funcionário que, pela leitura legal, praticou ato mais grave e merece punição exemplar.

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1
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/04/1614175-gerente-amplia-furto-de-picanha-e-e-preso-junto-com-ladrao-em-sc.shtml
2 Prado, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro, 13ª edição. Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 1488
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.

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