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Aplicativos eletrônicos: necessidade de análise de cada caso concreto à luz do Direito do Trabalho

Mateus Itavo Reis e Pedro Gomes Miranda e Moreira

A criação dos aplicativos eletrônicos em nada influenciou nas duas formas de prestação de serviços que sempre existiram no ordenamento jurídico brasileiro.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Atualizado em 12 de junho de 2015 11:09

O avanço da tecnologia proporciona uma realidade que vem se inserindo cada vez mais no mercado de trabalho brasileiro, que se pauta nas empresas que fornecem aplicativos eletrônicos para aproximar o trabalhador autônomo do efetivo usuário final do serviço, sendo que a utilização de tais aplicativos vem ocorrendo também em áreas de transportes de pessoas e mercadorias (frete), limpeza, segurança pessoal, entre muitas outras, com possibilidade de utilização em vários âmbitos e nichos.

Realmente, trata-se de um novo paradigma nas relações sociais, em que, mediante tecnologia apurada, há um impacto incrível na vida e na rotina de milhões de pessoas e empresas, que podem ter seus resultados e rendas incrementados, com maior autonomia e liberdade na definição de suas rotinas e negócios.

Através de tais aplicativos e utilização das plataformas on-line, é possível que qualquer prestador de serviço se cadastre e, utilizando-se do mesmo, possa ver facilitada a intermediação do serviço com o destinatário final, qual seja, a pessoa física ou jurídica que também se encontra cadastrada no sistema pertinente e pretende que seu transporte seja devidamente efetuado em prazo hábil.

As empresas de plataforma on-line atuam, assim, como agenciadoras, prestando serviço de agenciamento e utilização de plataforma on-line; em alguns casos, atuam também na gestão dos recebimentos e cobrança dos pagamentos devidos pelos tomadores aos prestadores do serviço.

Diante de tal cenário, iniciou-se discussão no cenário nacional a respeito da existência ou não de vínculo empregatício entre as empresas de aplicativos e o prestador do serviço, tudo em consonância com os artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que preconizam que, para configuração do vínculo empregatício, devem ser cumulativamente observados os seguintes requisitos: pessoalidade, habitualidade, onerosidade e subordinação.

De forma a melhor elucidar a questão, seguem breves comentários a respeito de cada um dos requisitos para configuração do vínculo empregatício, senão vejamos.

Em relação ao requisito da pessoalidade, vejamos como se posiciona o douto Amauri Mascaro Nascimento:

"Só será empregado o trabalhador que prestar serviços pessoalmente a terceiro.

A atividade deve ser direta e exercida pelo próprio trabalhador. Fica excluída toda espécie de delegação, o que vale dizer que não é empregado aquele que por sua iniciativa se faz substituir no serviço, circunstância que descaracteriza a relação de emprego. (...) Assim, entende que o trabalhador não pode se fazer substituir por terceira pessoa sem o consentimento do empregador."1

Logo, pode-se concluir que somente pode ser empregado a pessoa física que exerce suas funções pessoalmente, ou seja, sem a possibilidade de se poder fazer substituir por terceiro sem a anuência do empregador.

Ainda conforme Nascimento, assim ele aborda o requisito da remuneração/onerosidade:

(O requisito da onerosidade) "significa, para o empregado, o dever de exercer uma atividade por conta alheia cedendo antecipadamente ao beneficiário os direitos que eventualmente teria sobre os resultados da produção, em troca de remuneração. (...) Assim, o empregado que originariamente teria como seus os frutos do seu trabalho, pelo contrato de trabalho transfere essa titularidade ao destinatário ou empregador, recebendo uma retribuição, daí o caráter oneroso do trabalho regulamentado pelas normas jurídicas trabalhistas."2

Então, trata-se da retribuição entregue pelo empregador ao empregado em face dos serviços por este último prestados, é a remuneração, o salário percebido pelo trabalhador por ceder os frutos de seu labor ao patrão.

Quanto à habitualidade, o Professor Nascimento assim se pronuncia:

"Já o empregado destina o seu trabalho de modo constante, inalterável e permanente a um destinatário, de modo a manter uma constância no desenvolvimento de sua atividade em prol da mesma organização, suficiente para que um elo jurídico seja mantido, resultante, muitas vezes, dessa mesma continuidade. (...) Portanto, há a necessidade de uma certa fixação vinculando o trabalhador à fonte de trabalho, sem o que não estaremos diante da figura do empregado."3

A habitualidade, então, se refere à constância no exercício da atividade empregatícia, através da qual, pela contínua prestação de serviços de um mesmo empregado a um mesmo empregador, é criado um elo que, desta maneira, é fator determinante para configuração da própria relação jurídica empregatícia.

Como último requisito, temos a subordinação:

"Portanto, subordinação significa submetimento, sujeição ao poder de outrem, às ordens de terceiros, uma posição de dependência. (...) Prefiro definir subordinação como uma situação em que se encontra o trabalhador, decorrente da limitação contratual da autonomia da sua vontade, para o fim de transferir ao empregador o poder de direção sobre a atividade que desempenhará. A subordinação significa uma limitação à autonomia do empregado, de tal modo que a execução dos serviços deve pautar-se por certas normas que não serão por ele traçadas."

Tal requisito, pois, somente existirá quando, para desempenhar seu trabalho, o empregado deverá seguir determinadas normas, orientações, determinações que não foram por ele estipuladas, mas sim por terceiros, seus empregadores, sob pena, inclusive, de, se não cumpri-la da forma ordenada, sofrer represálias, como advertências, suspensões e, inclusive, poder ser demitido por justo motivo.

Pois bem. Inicialmente, uma das correntes, da qual não pactuamos, entende que as empresas de aplicativo em geral apenas mascaram a prestação de serviços de transporte, fraudando a legislação trabalhista nos termos do artigo 9º da CLT, ou seja, há este entendimento de que, em verdade, os prestadores de serviços seriam empregados das empresas de aplicativos eletrônicos, que estariam descumprindo as obrigações trabalhistas pertinentes ao contratá-los como autônomos em tais circunstâncias.

Inobstante este posicionamento, analisando-se as condições geralmente apresentadas nos endereções eletrônicos das empresas criadoras de tais aplicativos e nas relações vivenciadas em nosso cotidiano profissional, verificamos que, seja no transporte de pessoas ou mercadorias, observa-se que as principais características para cadastramento e durante o período de utilização do aplicativo são as seguintes:

a) o cadastramento do prestador do serviço para utilização do aplicativo, assim como ocorre como o cadastramento do usuário final, deve partir por iniciativa deles próprios, não havendo qualquer "recrutamento" por parte da empresa do aplicativo;

b) é o prestador o único proprietário de seus meios de produção, como carro / motocicleta próprios, celular, entre outros;

c) o momento em que o prestador iniciará a utilização da plataforma ou mesmo a hora em que ele deixará de utilizar o aplicativo são de escolha dele mesmo;

d) é dada a possibilidade do prestador do serviço declinar as eventuais "corridas" que não tiver interesse em realizar;

e) é possível perceber que a utilização do aplicativo na prestação do serviço não é obrigatória, ou seja, o prestador pode prestar serviços sem o uso da plataforma eletrônica ou mesmo possuir vínculo empregatício com alguma transportadora, pois não se verifica a exclusividade na prestação do serviço;

f) em geral, o prestador pode a qualquer momento de desvincular do aplicativo sem qualquer ônus, caso não se adapte ou por qualquer outro motivo ele deixe de ter interesse na utilização do mesmo, sem a necessidade de qualquer justificativa;

g) ainda, a validação do cadastramento na plataforma on-line é vinculada ao cumprimento pelo prestador dos requisitos legais, tais como cadastro nos órgãos municipais, estaduais, federais e de trânsito competentes, obtenção de seguro de vida, realização de cursos obrigatórios, observâncias das normas de saúde e segurança, bem como todos aqueles requisitos previstos em legislações específicas.

Ora, consoante estas circunstâncias, não se consegue vislumbrar a cumulação de todos os requisitos do vínculo empregatício, principalmente no que se refere á:

a) habitualidade, pois não existe qualquer obrigação do prestador se utilizar do aplicativo em jornadas predeterminadas pactuadas junto às empresas de aplicativo;

b) subordinação, uma vez que, além de não ter jornada controlada, podendo prestar os serviços a hora e local que bem entender, o prestador pode declinar "corridas" que não lhe convierem, sem qualquer tipo de punição, bem como deixar de se utilizar do aplicativo pelo tempo que quiser.

Nesta senda, muito embora não especificamente tratando de situações que envolvam aplicativos, a jurisprudência abaixo colacionada demonstra que, em caso de prestação de serviços de entregadores em geral, desde que não reconhecidos os requisitos para tanto acima mencionados, não há que se falar em vínculo empregatício, senão vejamos:

VÍNCULO EMPREGATÍCIO - MOTOBOY - ENTREGADOR A caracterização do vínculo empregatício exige a presença simultânea de todos os requisitos do artigo 3o, da CLT: subordinação, onerosidade, pessoalidade e continuidade, o que não se verificou in casu. A própria testemunha obreira contrariou as assertivas do autor, afirmando a possibilidade de recusar serviços, bem como não laborava todos os dias da semana e que possuíam liberdade para faltar sem qualquer punição, apenas deixando de receber pelo dia. Além disso, o reclamante prestava serviços com motocicleta de sua propriedade, sendo o responsável por sua manutenção. Como bem salientado a quo, ao prestar serviços com extrema liberdade de comparecimento e liberdade para recusar serviços, não restou configurada a subordinação jurídica entre as partes, decorrente da limitação contratual da autonomia da vontade. Irreparável o julgado, sendo improcedentes os pedidos. Recurso ordinário do obreiro a que se nega provimento. (TRT-2 - RO: 00021492920135020261 SP 00021492920135020261 A28, Relator: MARIA CRISTINA FISCH, Data de Julgamento: 15/10/2014, 18ª TURMA, Data de Publicação: 17/10/2014).

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ENTREGA DE MEDICAMENTOS - MOTOBOY INTEGRANTE DE LISTA DE PROFISSIONAIS DA ÁREA - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA SUBORDINAÇÃO, PESSOALIDADE E CONTINUIDADE - INVIABILIDADE DE RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. O vínculo empregatício se revela apenas na presença concomitante dos requisitos do artigo 2º e 3º da CLT. Não é trabalhador subordinado, portanto, não é empregado, aquele que administra sua força de trabalho segundo sua conveniência, podendo alterar o roteiro de entrega e ser substituído por terceiros, prestando serviços de forma descontínua, segundo seus interesses particulares e não de acordo com as exigências da empresa. (grifo nosso) (TRT-2 - RO: 00026675520125020034 SP 00026675520125020034 A28, Relator: ROSA MARIA VILLA, Data de Julgamento: 23/04/2014, 2ª TURMA, Data de Publicação: 29/04/2014).

Logo, consolidando todas as informações acima, a segunda corrente entende que a utilização do aplicativo em si, quando inexistentes os requisitos do vínculo empregatício, em nada caracteriza fraude trabalhista, pois é totalmente viável a prestação de serviços autônomos de frete no Brasil, sendo que tal corrente nos parece mais acertada.

Pois bem. Diante do exposto até o momento, pode-se concluir que a criação dos aplicativos eletrônicos em nada influenciou nas duas formas de prestação de serviços que sempre existiram no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam:

a) prestação de serviços autônomos, regulados pela legislação civil em vigor;

b) prestação de serviços com vínculo empregatício, regulados pela CLT e pelas demais normas trabalhistas.

Pelo contrário, pode-se entender que o aplicativo somente é mais uma ferramenta que pode ser utilizada tanto pelo prestador quanto pelo usuário final do serviço, a seus únicos e exclusivos critérios, para facilitar a intermediação do serviço, sendo que o próprio prestador é também um cliente da empresa de aplicativo, não existindo ingerência por parte da empresa de aplicativo na efetiva prestação do mesmo.

Ademais, embora a utilização de tais aplicativos seja uma criação recente no cenário brasileiro, vislumbra-se que seu uso cumpre com sua pertinente função social e em nada viola o ordenamento jurídico, haja vista que:

a) os prestadores cadastrados acabam por usufruir de uma melhor renda mensal e, consequentemente, podem gozar de melhores condições de vida;

b) a existência dos aplicativos não impede que o prestador, por livre e espontânea vontade, opte por laborar em empresa transportadora com o efetivo registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), caso assim prefira;

c) não ocorre a exclusividade na prestação do serviço, ou seja, o prestador pode fornecer seus serviços para vários usuários finais e não para um único empregador, sendo que nesta última hipótese perceberia apenas um salário fixo;

d) inexiste a subordinação entre o prestador e a empresa de aplicativo, ou seja, o prestador pode atuar com maior autonomia, sem a necessidade de fornecer quaisquer perspectivas, obedecer ordens, enfim, dar retorno a respeito da prestação do serviço, sendo que, por tal liberdade, não precisa se preocupar com punições ou ingerência inerentes a um empregador nos termos da CLT;

e) por fim, mas não menos importante, a este prestador de serviço é inclusive legalmente prevista a participação no sistema previdenciário, pois a Lei número 8.212/1991, que trata exatamente da organização da Seguridade Social no que se refere ao Plano de Custeio, abarca tanto a contribuição feita por profissional autônomo quanto por pessoa jurídica, não havendo como apurar qualquer tipo de falta de amparo previdenciário a estes profissionais.

Deve-se ainda considerar que o ser humano tem o direito de optar se deseja prestar serviços como empregado ou como autônomo ou até mesmo em ambas as formas, vez que cada maneira de prestação de serviços possuirá seus benefícios e supostos malefícios, prestigiando a liberdade e autonomia do prestador.

Conclui-se, portanto, que deve haver muita cautela antes de se taxar, de forma preconceituosa, a utilização de aplicativos eletrônicos como fraude aos direitos trabalhistas dos prestadores de serviços cadastrados, uma vez que, conforme o caso concreto, é possível perceber que inúmeras empresas de aplicativos seguem corretamente a legislação em vigor, não havendo vínculo empregatício entre as partes por ausência de todos os requisitos, tratando-se efetiva e exclusivamente de prestação de serviços autônomos, formato que também é regulamentado e aceito no Brasil atualmente.

Assim, somente a efetiva análise de cada caso concreto é que poderá delimitar se há ou não o vínculo de emprego.

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1 Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo, Saraiva: 2008. Fl. 649.

2 Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo, Saraiva: 2008. Fl. 651.

3 Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo, Saraiva: 2008. Fl. 654.

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*Mateus Itavo Reis e Pedro Gomes Miranda e Moreira são advogados e sócios da banca Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.

 

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