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I-Juca Pirama

Lembrando o último ano de faculdade, o promotor de Justiça aposentado nos conta como sua turma foi salva, após uma noite inteira de "pendura", de ir não ir para a delegacia: recitando o poema "I-Juca Pirama". Confira a curiosa história

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Atualizado em 10 de agosto de 2015 14:52

Cursava o 5º ano de Direito na Faculdade de Direito de Bauru, no ano de 1975, da Instituição Toledo de Ensino. No último ano você olha para trás para ver o que foi feito e, ao mesmo tempo, com sérias preocupações, divisa seu futuro muitas vezes incerto, provocando a normal insegurança. Muitos colegas chegam carregados de planos no primeiro ano e com o passar do tempo vão aliviando o fardo, despejando-o pela estrada acadêmica, juntamente com suas frustrações. Os que vencem todo o percurso chegam eufóricos e encontram inúmeros motivos para comemorar.

Naquele ano, por ser o derradeiro, alguns colegas de rotineira convivência, incluindo-me, resolveram dar a cartada final no tradicional dia da pendura. Conversa de cá, conversa de lá, sem celular, é claro, as sugestões foram aparecendo e frequentando a galeria das preferidas. Até que, em plena sessão solene na sala de aula, ficou definido o local: G Petisco, uma lanchonete e restaurante tradicional, como o trote e, com ele familiarizado. Frequentada na maioria das vezes por estudantes de várias faculdades e de quando em quando superlotava, obrigando a moçada a aguardar em grupos na calçada, sem prejuízo das rodadas de cerveja.

Era uma segunda-feira e "cabulamos" as aulas de Direito Civil e Processo Penal, essa última do inesquecível Fernando Tourinho. Ocupamos uma mesa estratégica e dali divisávamos todos os ambientes ocupados. A noite caia gostosa com o calor típico do interior. O garçom, que tinha um apelido interessante, mas que não me lembro mais, servia com satisfação nossa turma, que contava com dez bons entusiastas de chope. Depois de muita escolha, apontamos os pratos que nos apeteciam. E assim foi rolando a comemoração, todo mundo comendo, bebendo e tínhamos a impressão que todos os frequentadores que lá se encontravam eram alunos de Direito.

Já pelo final da noite, todos já satisfeitos, um representante do nosso grupo chamou o gerente à mesa e explicou que comemorávamos o dia da fundação dos cursos jurídicos no país, daí que, em razão da isenção concedida pelo Imperador D. Pedro I, já transitada em julgado, não iríamos pagar a conta. O gerente já se antecipou parabenizando-nos, mas dizendo que nada tinha a ver com a data. Propusemo-nos, então, a fazer um discurso típico da nossa área falando a respeito de direito ambiental, que começava a aflorar naquele período, ou uma saudação a todos os presentes, elogiando e referendando o restaurante. Pior ainda. Não só o gerente, mas os garçons com as bandejas fincadas nos braços, já assumiram seus postos formando uma espécie de frente de ataque. Os frequentadores, que por nosso azar não eram estudantes de Direito, fizeram o cerco do outro lado e abraçaram a causa do restaurante. Sentimo-nos acuados, como os espartanos.

Todo o ensinamento do Direito despencou sobre nossas cabeças, num repente. Neminem laedere, suum cuique tribuere, honestae vivere, de Justiniano, que decoramos pela insistência do professor de Direito Civil e que compunham a Digesta, recomendava outra estratégia porque já sentíamos o amargo gosto de sermos conduzidos à delegacia de polícia, que ficava bem próxima. Situação indigesta, na certa.

Parece que a deusa Themis veio em nosso socorro. Um cidadão, que a tudo assistia e sabia que nosso espírito não era o de cometer um ilícito, mas de dar continuidade a um ritual que se transformou em tradição, levantou-se e discursou de forma pausada e convincente em favor da nossa causa, arrancando aplausos de todos os frequentadores. Conseguiu até que os garçons abaixassem a guarda e abandonassem as bandejas, numa demonstração de rendição.

Mas não parou por aí. Acrescentou que como se tratava de uma comemoração acadêmica, tinha que ser coroada com algo significativo. Propôs, então, que nosso grupo recitasse, lendo, é claro, o poema indianista I-Juca Pirama, que soma 484 versos decassílabos e alexandrinos, além de 10 cantos, de Gonçalves Dias, e, em contrapartida, o gerente cobraria somente a metade do valor da conta. Proposta aceita. Abriu sua pasta e retirou o livro que trazia a poesia e cada um tomava seu lugar sobre a mesa e deliciosamente recitava seu canto.

Assim foi feito e o início daquela madrugada se tornou em verdadeiro sarau literário.

Aplausos e mais aplausos pela exibição em que um colega procurava interpretar melhor que o outro. Teve um que quando entoou "...Sou bravo, sou forte/Sou filho do Norte/Meu canto de morte/ Guerreiros, ouvi", ameaçou um tom melancólico na voz, seguido de uma pequena lágrima que insistia em cair, mas rapidamente foi contido.

A conta foi paga com satisfação e a isenção atingiu também o interveniente frequentador, que se apresentou como professor de literatura de um cursinho preparatório para vestibulares. Ganhou o apelido de Santo Ivo.

Saímos felizes com a nossa última comemoração e com a sensação do dever cumprido, por manter a tradição. No caminho para a república, um dos colegas exibiu gloriosamente uma faca de mesa alegando que a subtraiu do estabelecimento. "Garfei uma faca", dizia ele cantando em voz alta e todo sorridente, pensando que contaria com o apoio da turma. Imediatamente voltamos ao bar e humildemente pedidos as devidas desculpas ao gerente, entregando a ele a tal da res furtiva. O gerente olhou atentamente para o utensílio, foi até a cozinha e retornou afirmando com convicção que a faca não era do estabelecimento, pois não fazia parte de nenhum dos cinco jogos que utilizavam. Mesmo assim, elogiou a honestidade do grupo, com a certeza que tudo não passava de um engano. E entregou a faca.

Até hoje não sei se a faca não era mesmo do restaurante....

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, Reitor da Unorp, advogado.

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