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Aedes aegypti e invasão de domicílio, por Eudes Quintino de Oliveira Júnior

Aedes aegypti e invasão de domicílio

A preservação da vida humana, além de reger o sincronismo constitucional, possibilita a prática de atos compatíveis para sua defesa, levando de roldão qualquer interesse contrário.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Atualizado em 5 de fevereiro de 2016 11:28

A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou emergência de saúde pública, com alcance mundial, assim como tinha feito anteriormente com a epidemia de Ebola, contra a propagação do vírus Zika, responsável até agora, segundo os estudos científicos apresentados, pela multiplicação das más-formações congênitas, principalmente no Brasil, reconhecidamente identificado como o maior foco de transmissão.

A emergência carrega inquestionável sustentação, pois a cada dia o vírus está se espalhando de forma incontrolada, com possibilidade de infectar um número imensurável de pessoas. De há muito tempo o Aedes aegypti vem sinalizando sua capacidade de proliferação e propagação, vez que seus ovos podem suportar até um ano para eclodirem em contato com a água. Sua resistência é bem superior às efêmeras estratégias de atuação programadas pelas autoridades públicas.

Nesta linha de decretação de emergência relacionada com a saúde pública, a presidente da República editou a Medida Provisória 712, de 29/1/20161, com força de lei, adotando medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do vírus da Dengue, do vírus Chikungunya e do Zika vírus. Dentre as medidas determinadas, uma delas carrega interessante conotação jurídica, que é o ingresso forçado em imóveis públicos e particulares, no caso de situação de abandono ou de ausência de pessoa que possa permitir o acesso de agente público, regularmente designado e identificado, para o serviço de busca e eliminação dos criadouros.

O Código Penal, seguindo a determinação constitucional de que a casa é asilo inviolável, traz o tipo de violação de domicílio que, na realidade, protege a casa e suas dependências, enquanto lar e local de abrigo do ser humano e permite, excepcionalmente, o acesso em caso de prisão, de desastre, prestação de socorro ou, durante o dia, por determinação judicial.

A Medida Provisória referida abandona o conceito de domicílio ou moradia e utiliza a expressão "imóveis públicos ou particulares", em duas modalidades distintas: a primeira, em situação de abandono, compreendida ausência prolongada de utilização, o que pode ser verificado por suas características físicas, por sinais de inexistência de conservação, pelo relato de moradores da área ou por outros indícios que evidenciem a sua não utilização; a segunda, pela ausência de pessoa que possa autorizar a entrada do agente, devendo, para tanto, realizar duas visitas devidamente notificadas, em dias e períodos alternados, no intervalo de dez dias.

Antes, em caso de mutirão de prefeitura municipal, com a premente necessidade de eliminar possíveis criadouros do mosquito, para que os agentes de saúde pudessem ter acesso às áreas construídas ou em construção, assim como em obras inacabadas, recomendava-se a obtenção de autorização judicial para permitir as medidas coercitivas necessárias contra aqueles que negassem a entrada e que, inevitavelmente, colocavam em perigo a saúde dos demais.

É indiscutível que o interesse público fala muito mais alto do que o individual, principalmente daquele que é desidioso nos cuidados com sua propriedade. O Estado, pela sua própria estruturação, tem obrigação de agir para defender os cidadãos que se encontram em situação de perigo com relação à saúde, proporcionando-lhe a assistência necessária, sob pena de ser responsabilizado pela sua omissão ou até mesmo pela prática da mistanásia. Daí que, em certas oportunidades, deve fazer uso da força, não para que seja aceita sua autoridade, mas para que possa implementar programas necessários e urgentes de assistência à saúde da comunidade que se encontra em situação de risco. "O Estado, na visão de Engelhardt Jr., é a estrutura social na qual podemos entender uma autoridade moral que une as pessoas e comunidades dotadas de diferentes visões morais, e pela qual os direitos gerais de tolerância podem ser garantidos e protegidos"2.

Pode, também, neste espaço, ser encartada a biopolítica de Michel Foucault, tão propagada por ele em defesa da sociedade, visando estabelecer mecanismos reguladores para extirpar doenças existentes em determinada população, como epidemias e que causam a morte com certa frequência. Procura-se buscar o equilíbrio da saúde social e na sequência otimizá-la.

E, para tanto, o interesse público se torna preponderante e se vê obrigado a praticar atos, que numa análise distante dos problemas apresentados, poderiam ser considerados inadequados para o Estado Democrático de Direito que, dentre outras tutelas, preserva o direito de propriedade. Mas, no caso ora discutido, a preservação da vida humana, além de reger o sincronismo constitucional, possibilita a prática de atos compatíveis para sua defesa, levando de roldão qualquer interesse contrário.

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1 MP 712, de 29/1/2016.

2 Engelhardt Jr., H. Tristram. Fundamentos da Bioética. Tradução de José A. Ceschin. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 226.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.



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