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Prisão preventiva no estupro coletivo

O clamor público, por si só, não é suficiente para a decretação da segregação cautelar.

domingo, 5 de junho de 2016

Atualizado às 20:36

Muito se falou pela imprensa, estimulando debates calorosos, a respeito da atuação do delegado de polícia inicialmente designado para realizar a investigação referente ao hediondo estupro coletivo, ocorrido no Rio de Janeiro. A repercussão da notícia extrapolou as fronteiras brasileiras e provocou inúmeros protestos de instituições internacionais condenando a brutalidade do ato e exigindo maior proteção aos direitos das mulheres.

E, internamente, uma das condutas contestadas e que provavelmente tenha provocado a substituição da autoridade policial que coordenava o serviço investigativo, está relacionada com a inércia em não representar contra os envolvidos pleiteando suas prisões, vez que o material probatório existente, consubstanciado na gravação de um vídeo, dava conta que mais de trinta pessoas teriam participado da prática do hediondo crime.

Algumas questões a respeito devem ser enfrentadas, exclusivamente no campo jurídico, já que, inevitavelmente, a comunidade, com total razão, emitiu de forma antecipada sua repulsa pelo crime cometido de forma animalesca.

Trata-se de notitia criminis de cognição imediata, quer dizer, a autoridade policial tomou conhecimento do fato pela publicação feita nas redes sociais, não contando, portanto, com o relato da própria vítima ou de pessoa que possa representá-la para pleitear o início da atividade persecutória estatal, apesar de regida pelas regras da ação penal pública incondicionada.

Assim, diante da exposição do relato criminoso pela mídia, imperiosa se tornava a oitiva da vítima para que fornecesse sua versão a respeito dos fatos, visando apurar a autoria e materialidade para, posteriormente, presentes os requisitos legais, pudesse a autoridade policial representar contra os envolvidos pela decretação da prisão preventiva. Mas é conveniente ressaltar que a prisão preventiva não comporta uma interpretação subjetiva do agente policial responsável pela investigação, em razão única e exclusivamente do brado popular.

É indiscutível que na mente de qualquer pessoa do povo tal prisão cautelar deveria ser decretada contra todos que se encontravam no local, levando-se em consideração que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, teriam colaborado com a prática criminosa, formando, assim, uma indissolúvel coautoria coletiva. Diante de tal raciocínio, abrevia-se a função investigativa e o Estado, vítima conjunta das condutas ilícitas, fica liberado para decidir a respeito da custódia provisória.

Ocorre que a prisão preventiva para ser decretada, de acordo com o pensamento do legislador processual penal e com a interpretação de nossos tribunais, por se tratar de ato de exceção, aconselha uma interpretação cum grano salis. Em primeiro lugar, diferentemente do que ocorre na prisão flagrancial, não são oferecidos, de pronto, elementos autorizadores e indicativos da autoria e materialidade. Em segundo, por se tratar de uma prisão laboratorial, há necessidade de se pinçar os fatos e circunstâncias com lentes adequadas ao bom senso, para que sejam apurados corretamente atendendo os critérios de legalidade, conveniência e necessidade. Em nada irá resultar a investigação afoita feita pelo Delegado de Polícia, desprovida das informações consideradas imprescindíveis. É muito provável que não terá o pedido de prisão endossado pelo Ministério Público e muito menos atendido pelo Magistrado.

O clamor público, por si só, não é suficiente para a decretação da segregação cautelar. É importante e dimensiona a pretensão da comunidade, mas há necessidade que seja acompanhado dos requisitos estabelecidos no artigo 312 do Código de Processo Penal, que são taxativos, para fazer prevalecer com segurança o fumus boni juris e o periculum libertatis. Além do que, para a garantia do devido processo legal, o juiz tem a obrigação de fundamentar de forma convincente a decisão concessiva de prisão.

Por estas razões que nem sempre o anseio popular, por mais justo que possa parecer, tem condições de ser prontamente atendimento pelo Judiciário, encarregado de realizar o crivo de viabilidade jurídica e legal da medida restritiva. Geralmente resulta de uma manifestação difusa que vai se espraiando até adquirir uma consistente forma coletiva, revelando a intenção de defender os valores atingidos por uma conduta repugnante e ilícita, sem se preocupar com a demarcação do procedimento judicial para a aplicação da segregação. Em nada se assemelha à ordem pública, que é uma das exigências para a decretação da prisão, em que ocorre a intervenção judicial para proporcionar a paz e a tranquilidade após um fato que tenha abalado a convivência social, com o intuito de restabelecer o status quo ante da ofensa praticada.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.


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