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A audiência de custódia na lei Maria da Penha, por Eudes Quintino e Antonelli Secanho

A audiência de custódia na lei Maria da Penha

O que se tem visto é uma violência crescente na convivência familiar, minando a credibilidade da população cada vez mais acuada com o torniquete da liberdade apertado ao extremo.

domingo, 31 de julho de 2016

Atualizado em 29 de julho de 2016 14:22

A violência doméstica é um tema cada vez mais presente nos debates acadêmicos e com frequência garantida nos tribunais. Justamente porque se apresenta como uma triste realidade social com reflexos diretos na área jurídica. E a edição de uma lei especial, própria para tratar do assunto, parece ainda não ter sido suficiente para regular a matéria e trazer aspectos e normas jurídicas que possam, com eficácia, iniciar o combate - pelo Direito Penal - desta odiosa prática criminosa. O que se tem visto é uma violência crescente na convivência familiar, minando a credibilidade da população cada vez mais acuada com o torniquete da liberdade apertado ao extremo.

Como é sabido, a lei penal especial não está isolada no arcabouço jurídico que a cerca. Muito pelo contrário, ela é parte integrante do ordenamento legal, pelo que precisa respeitar normas hierarquicamente superiores e, ainda, estar de acordo com eventuais alterações constitucionais e até mesmo com a integração de tratados e convenções internacionais.

Sendo assim, inicialmente, é preciso dizer que o Pacto de San José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de que o Brasil é signatário desde 1992, prevê, expressamente, no item 7.5, que toda pessoa presa "deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz...". Este é, então, o berço da audiência de custódia, que visa garantir a qualquer cidadão que se encontre preso em flagrante, a imediata apresentação a um juiz de direito, que poderá, por seu turno, analisar todo o contexto fático-jurídico em que se deu a prisão e, então, decidir pela continuidade, ou não, dessa medida extrema de restrição da liberdade do indivíduo.

Deste modo, embora não seja o objetivo do presente estudo, faz-se necessário destacar que a assinatura do referido Tratado sobre Direitos Humanos se deu antes da vigência da Emenda Constitucional 45/04, que incluiu o parágrafo 3º ao artigo 5º, da Constituição Federal. Esta nova regra, em apertada síntese, prevê que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, que forem aprovados seguindo o trâmite de aprovação para as emendas constitucionais1, serão hierarquicamente a elas equivalentes, isto é, na conhecida pirâmide normativa de Kelsen, ocuparão o mesmo local das emendas constitucionais.

Ocorre que, como já mencionado, o referido Pacto de San José foi assinado em 1992, antes da vigência desta regra constitucional. Então, o Supremo Tribunal Federal precisou se manifestar quanto ao patamar hierárquico em que este Pacto se encontrava em nosso ordenamento, pelo que, quando da edição da Súmula Vinculante 25, ao decidir sobre a prisão do depositário infiel, o Pretório Excelso entendeu que o Pacto de San José possui um status normativo supralegal, ou seja, abaixo da Constituição Federal, mas acima da legislação interna, acima das leis complementares e ordinárias, portanto. Logo, o Pacto de San Jose possui plena vigência em nosso ordenamento e suas disposições devem ser respeitadas pelos operadores do Direito.

Esta breve introdução se faz necessária porque não há, em nosso país, ainda2, uma lei federal que preveja, expressamente, a criação e a realização da audiência de custódia. O que se verifica, apenas, é a existência de regras editadas pelos Tribunais de Justiça, criando e regulamentando esta audiência em todas as capitais do país. Porém, evidentemente, ainda se reside na esfera estadual.

Não por outra razão, é que o Supremo reconheceu, na ADI 5.240, relatada pelo Min. Luiz Fux, que a norma paulista (pioneira) que criou a audiência de custódia no Estado de São Paulo é válida: está de acordo com as disposições do Pacto de San José.

Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento proferido no dia 19/4/2016, entendeu que a falta da realização da audiência de custódia não torna ilegal a prisão cautelar3, desde que a prisão seja imediatamente comunicada ao juiz.

Após todos estes breves apontamentos, indaga-se: a realização da audiência de custódia, no âmbito da violência doméstica, é plausível? Seria eficaz?

Existem inúmeras críticas quanto à realização desta audiência, pois haveria a possibilidade de se conceder liberdade provisória, fiança, ou demais medidas alternativas à prisão, quase que imediatamente após a prática de algum crime que seja tipificado na lei Maria da Penha.

Todavia, não se pode perder de vista que a finalidade desta audiência é verificar se estão presentes os requisitos para a prisão cautelar do indivíduo, além, é claro, da verificação da legalidade da prisão flagrancial. Logo, havendo necessidade de manter o agressor detido, não se fala em concessão de liberdade.

E não se olvida, também, que ainda que não se faça esta audiência, o Código de Processo Penal determina, em seu artigo 306 e parágrafos, que em até 24 horas após a realização da prisão em flagrante, os autos serão encaminhados ao juiz competente e à Defensoria Pública. Logo, este magistrado pode, da mesma forma que o encarregado de realizar a audiência, determinar as medidas que entenda cabíveis.

Aliás, justamente por esta previsão do artigo 306, do referido diploma legal, é que não há falar em nulidade, caso não seja realizada a audiência de custódia: se outro magistrado analisa os autos do flagrante, não há qualquer prejuízo ao preso. E, em não havendo prejuízo, não há como se falar em nulidade: pas de nullité sans grief ­- princípio da instrumentalidade das formas.

Portanto, acredita-se que dois vetores precisam ser conciliados: a pessoa presa em flagrante, por qualquer modalidade criminosa, precisa ter seu auto de prisão em flagrante analisado por um juiz de direito, seja o responsável pela audiência de custódia, seja o competente para analisar a prisão.

De outro lado, não se pode perder de vista, jamais, que há uma vítima de violência doméstica que necessita de uma resposta estatal, tanto na seara social, quanto na criminal: havendo indícios suficientes de autoria e prova da materialidade, bem como presentes os requisitos do artigo 312, do Código de Processo Penal, o infrator deverá permanecer recluso, convertendo-se a prisão em flagrante para a preventiva.

E caso não seja a hipótese de se decretar a prisão preventiva, há que se atentar para quais medidas alternativas serão fixadas para o agressor, sob pena de completa ineficácia da inicial prestação jurisdicional.

É sabido que nossa realidade social exige do Poder Judiciário uma contundente resposta quanto a este grave crime que é, rotineiramente, praticado contra a mulher, no âmbito familiar. Justamente por essa razão, é que a audiência de custódia não pode se tornar um meio para simplesmente livrar solto o indivíduo que não merece retornar ao convívio familiar. A cautela mostra-se necessária quando da prestação jurisdicional.

Por fim, a questão da existência ou não de previsão legal a respeito parece nortear algumas soluções que se apresentam pelos Tribunais estaduais brasileiros. Talvez porque o costume de nossos operadores resida na verificação, simples e objetiva, dos estatutos vigentes em nosso território.

Mas o Supremo foi claro ao reforçar que a realização das audiências de custódia é válida e, portanto, constitucional, à luz do Pacto de San José.

Então, é forçoso concluir que sua realização é possível, muito embora sua falta não tenha força para macular qualquer medida cautelar atribuída ao agente preso, desde que um magistrado analise, na forma da lei, as circunstâncias da prisão em flagrante.

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1 Ser aprovado, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros.

2 Há projeto de lei no Congresso.

3 HC 344.989/RJ - Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.







*Antonelli Antonio Moreira Secanho
é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.



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