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Reserva de mercado obsoleto: o fim do App

André Ramos Tavares

A rápida assimilação de inovações tecnológicas e incremento do setor de serviços é uma rotina na sociedade pós-industrial e da informação. O que temos, hoje e em todos lugares, é o uso massivo dos aplicativos.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Atualizado em 24 de outubro de 2016 07:38

A rápida assimilação de inovações tecnológicas e incremento do setor de serviços é uma rotina na sociedade pós-industrial e da informação. O que temos, hoje e em todos lugares, é o uso massivo dos aplicativos (app.), especialmente a partir de smartphones e tablets. Esse processo de assimilação não é nem neutro nem um irrelevante em termos de desenvolvimento socioeconômico, pois a inovação e as novas tecnologias em geral permitem um incremento importante no horizonte socioeconômico do país.

Mas a apropriação de avanços tecnológicos, além de ser imprescindível em face da competitiva economia atual, integra diretriz constitucional desenvolvimentista. Ao Estado, no Brasil, cumpre promover e incentivar a inovação e a tecnologia, nos termos dos artigos 218 a 219-B da CF em vigor.

É a partir dessas ocorrências, de ordem histórica, econômica e jurídica, que devemos nos posicionar acerca de certos aplicativos, como os que são direcionados ao segmento do transporte. Mesmo que consideremos apenas o transporte que se utiliza do sistema de vias públicas, espécies distintas de transporte são abarcadas - muitas das quais extremamente relevantes para a economia nacional -, como o transporte de passageiros e o transporte de cargas leves e pesadas ou excedentes. Vou falar especificamente, aqui, apenas do uso de aplicativos para o transporte de encomendas.

Aplicativos com essa finalidade propiciam maior divulgação, agilidade e segurança à contratação de profissionais autônomos de motofrete. É um tipo de inovação inserida, sem dúvida, na categoria dos bens imateriais de aplicação econômica, elemento de maior valor na economia contemporânea, no contexto da emergência da chamada "sociedade do conhecimento", que privilegia bens intangíveis decorrentes da inventividade humana.

Apesar desse cenário muito nítido, o Estado de São Paulo está a um passo de entrar em um estágio de xenofobia tecnológica, cujo risco de se espalhar para outros setores não está de todo afastado neste momento. É que Projeto de lei em tramitação (PL 569/16) pretende estabelecer, com urgência, a inusitada proibição de uso de aplicativos no setor de motofrete. Por mais inverossímil que pareça, a disposição do PL é expressa e direta. Ou seja, ao contrário do que se poderia esperar, o PL não trata de detalhar e disciplina essa tecnologia de inegável utilidade econômica, nem a incentiva ou promove; pelo contrário, pretende-se banir sua presença.

A vedação, observe-se, alcança tanto empresas de tecnologia e cuja atividade central seja ou pretenda ser a de gerir um aplicativo nessa área, como também alcança empresas cuja atividade principal é o transporte propriamente dito, mas que usem para tanto um app..

Como tentativa de justificar a arbitrária medida, presume-se "clandestinidade" se a empresa for gestora ou usuária de aplicativo. Invoca-se, ainda, uma imaginária e confusa ideia de concorrência desleal com empresas sem tecnologia. Analiso os argumentos a seguir.

Em primeiro lugar, a atividade de administrar plataformas tecnológicas é plenamente lícita, exercida sob o manto constitucional da livre iniciativa econômica tecnológica, encontrando respaldo e proteção também nas leis específicas. Dentre estas destaco o já bem conhecido Marco Civil da internet (lei.12.965/14), que protege a inovação e difusão de novas tecnologias. Assim sendo, as empresas do setor, que estão regularmente registradas perante os cadastros empresariais exigidos para sua atividade, não podem ser chamadas de "clandestinas", nem podem ter bloqueada sua atividade tecnologicamente centrada.

A alegação de concorrência desleal, imputada apenas pelo emprego de tecnologia, não é juridicamente crível, mesmo que queiramos ignorar, como faz o PL, a importante distinção entre empresas que geram plataformas tecnológicas e empresas de transporte propriamente ditas, fato este que empresta às empresas de aplicativos uma área de atuação muito específica.

Ademais, vivemos em um livre mercado tecnológico. Não é proibido a nenhum dos concorrentes supostamente prejudicados em seu mercado "regular" o aprimoramento de suas atividades, inclusive desenvolvendo aplicativos tecnológicos, respeitados, evidentemente, os direitos autorais sobre os pré-existentes. O mercado tecnológico é aberto a todo agente privado que pretenda nele empreender de maneira regular e lícita, atentando aos padrões constitucionais do desenvolvimento socioeconômico, configurando-se, assim, o livre mercado tecnológico constitucionalmente tutelado.

O ato de desenvolver e aplicar com êxito inovação tecnológica na prestação de serviços cumpre as finalidades constitucionais da livre concorrência, gera bem-estar ao consumidor e contribui para a superação de estruturas arcaicas. Nesses termos, a inovação tecnológica, acima do fato de não estar elencada em nenhuma das práticas anti concorrenciais descritas na legislação antitruste, é conduta legítima e incentivada constitucionalmente.

Ao contrário do que é alardeado com o PL, esse dinamismo inovador é um dos vetores do que se espera de um competidor qualificado do sistema, que incremente de forma saudável e qualitativa a atividade econômica. Vale observar a importância de que as plataformas admitam apenas profissionais devidamente regularizados de motofrete.

Assim, devassadas suas falsas premissas, pode-se concluir que o verdadeiro efeito do PL, caso aprovado, será criar uma reserva de mercado para empresas avessas à inovação tecnológica, comprometendo o desenvolvimento nacional pelo compromisso espúrio com um passado rudimentar e intolerante. De quebra, a suspeita de uma nova onda xenofóbica.
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*André Ramos Tavares é professor titular da faculdade de Direito da USP e professor da PUC/SP.

 

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