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Bens da igreja x bens do pastor: o perigo da confusão patrimonial

Taís Amorim de Andrade Piccinini

Por ser o pastor o líder responsável da igreja, que responde como representante legal da entidade, muitos são os que acabam por misturar suas finanças com as da igreja.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Atualizado às 07:11

A natureza jurídica de uma igreja pode ser equiparada a uma entidade do terceiro setor (associação): é uma reunião de pessoas com um fim comum, dirigidas por uma (ou mais) delas, sendo que nenhuma possui interesse econômico e por tal motivo, a entidade não tem fins lucrativos.

Em assim sendo, a entidade religiosa não é uma pessoa jurídica em que os envolvidos na direção buscam interesses próprios nem financeiros, como numa empresa comercial. O interesse é coletivo e, portanto, os dirigentes não podem buscar vantagens pessoais. (Ou ao menos, não deveria ser assim.)

Além de sua natureza jurídica especial, no âmbito legal, podemos dizer que as igrejas são instituições extremamente específicas, atípicas, já que tratam de coisas espirituais e que, por óbvio, nem sempre são compreendidas pelo homem natural (ou ao menos por aquele que não coadune da mesma crença).

Por exemplo, não é fácil compreender o princípio do dízimo, se não tiver discernimento da Palavra, se não tiver discernimento espiritual. Também não é fácil compreender o princípio da obediência, sujeitando-se às orientações de um pastor, se não estiver conectado num plano espiritual com essa ordenança.

Não bastassem essas questões de ordem estritamente espiritual, temos questões naturais que nos remetem também a essa especificidade da entidade religiosa. A igreja, por ordem constitucional, não está obrigada a recolher imposto do que arrecada e o que arrecada, advém de ofertas voluntárias. Ou seja, não se vende produtos ou serviços (não como uma atividade principal). E, por consequência, a igreja não possui um procedimento legal padrão para controle de entrada de recursos, como no caso de empresas comerciais em que o controle de entradas é feito por emissão de notas fiscais.

Pois bem.

Em virtude dessa mescla de situações atípicas, muitas são as igrejas que acabam por tratar seus controles internos de forma muito insuficiente e equivocada. Essa condição deixa tanto a igreja, como seus líderes, vulneráveis. E, na mesma linha de pensamento, temos que até os membros ficam vulneráveis, na medida em que a igreja pode acabar se apresentando como uma entidade frágil e não confiável.

Por não recolher imposto, muitas são as igrejas que simplesmente não cumprem a obrigação de entregar a declaração de imposto de renda anual. Sequer mantém uma contabilidade em dia.

Por ser o pastor o líder responsável da igreja, que responde como representante legal da entidade, muitos são os que acabam por misturar suas finanças com as da igreja.

Assim, não raro vemos igrejas que pagam contas pessoais do pastor, diretamente da conta da igreja. Contas de luz, escola dos filhos, cartões de crédito...

No entanto, do ponto de vista tributário, tal procedimento é equivocado.

Ainda que o valor seja legítimo (isso faça parte da remuneração pastoral, por exemplo), não se pode efetuar pagamentos em nome do pastor pela conta da igreja, porque tal fato pode ensejar a sonegação fiscal.

E porque?

Porque pagamentos de contas em nome do pastor, em sua grande maioria, não são considerados benefícios e, portanto, sofrem a incidência de imposto, já que a remuneração pastoral é considera renda.

Vamos considerar, por exemplo, que a igreja pague contas de escola, empregado doméstico, aluguel, cartão de crédito. Sobre esse valor já incidiria a aplicação de imposto de renda, conforme tabela do Fisco (para remuneração acima de R$ 1.787,78 já incide IR).

Vejamos o que determina a Receita Federal:

SOLUÇÃO DE CONSULTA Nº 63 de 25 de Setembro de 2009

ASSUNTO: Imposto sobre a Renda Retido na Fonte - IRRF

EMENTA: INCIDÊNCIA. MINISTROS DE CONFISSÃO RELIGIOSA. Os valores pagos por instituição religiosa a seus ministros (pastores, padres, missionários) em razão do ofício constituem rendimentos do trabalho, submetendo-se à incidência do imposto de renda na fonte e na Declaração de Ajuste Anual. São tributáveis, da mesma forma, as despesas particulares dos ministros pagas pela instituição (salário de empregado doméstico e encargos sociais; contribuição previdenciária e plano de saúde do ministro)

Portanto, pagar diretamente as contas do pastor, de pronto, implica num equívoco tributário que pode até ensejar penalidade e condenação por sonegação fiscal.

Por outro lado temos o fato de que ao unir as contas do pastor com as da igreja, damos margem à confusão patrimonial, que é a não separação do patrimônio da pessoa jurídica do de seus responsáveis, o que pode ser motivo, inclusive, de ação fiscal com desconsideração da natureza jurídica da igreja. Ou seja, numa eventual fiscalização pelo poder público, pode-se concluir que o pastor estaria se beneficiando da entidade religiosa, na medida em que tem suprido interesses pessoais por meio da igreja. Evidente que tudo isso deve ser considerado mediante uma análise das ações por parte do pastor.

O fato é que, por muitas vezes, vemos igrejas em que os pastores líderes confundem sua condição e se posicionam como verdadeiros "proprietários" das igrejas, lidando com os assuntos de forma tão pessoal que por vezes parece-nos mais que estamos diante de uma empresa comercial (que visa interesses próprios) do que de uma entidade que tem como finalidade agregar pessoas para pregação e propagação do evangelho.

Essa prática se reflete também na utilização de bens de propriedade da igreja. Na hipótese de o pastor utilizar os bens da igreja em benefício próprio, de forma inadequada (leia-se exacerbada e desproporcional), sem prévia organização do formal, acarretar-se-á também a já citada confusão patrimonial.

Analisando somente sob o aspecto de bens de pequeno valor, essa confusão pode parecer injusta, porém a situação é grave quando há o intuito de desviar a atividade-fim da entidade religiosa ou, sobretudo, permitir indevidamente o benefício do pastor.

Vemos, portanto, que no trato com as finanças da igreja, com o seu patrimônio e pagamento de remuneração pastoral, há que se aplicar o máximo de rigor e controle possível, com indicação clara e inequívoca das entradas e saídas, com separação do pagamento da remuneração pastoral e devido recolhimento do imposto de renda, bem como cuidando para o eventual uso do patrimônio da igreja pelo pastor (veículos ou imóveis), se dê de forma comedida e razoável, condizente com sua atuação pastoral, sob pena de incorrer a igreja e o pastor responsável nas penalidades legais, antes abordadas, as quais, sem dúvida, trarão maior prejuízo de ordem moral e espiritual, já que falamos de uma entidade religiosa em que o foco é congregar pessoas e apregoar o evangelho de Jesus Cristo.

Daí por que se faz importante ter sempre em mente o conceito de que uma igreja não é detentora de seus próprios bens ou de seu dinheiro; ela administra bens e valores de terceiros para um bem comum. Assim, a quem foi dada a responsabilidade de gerir tais bens, que entenda a responsabilidade assumida.

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*Taís Amorim de Andrade Piccinini é advogada do Amorim & Leão Advogados.


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