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O casamento homossexual e a igreja sob a ótica do Direito Eclesiástico

Taís Amorim de Andrade Piccinini

No Brasil, em virtude da liberdade religiosa, a igreja pode professar sua fé e promover seus cultos com base no que crê.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Atualizado às 08:06

Recentemente foi motivo de manifestações calorosas no Brasil, a decisão dos EUA de aprovar o casamento homossexual.

Esse assunto para o Brasil, não é novo, visto que em 2011 o STF reconheceu a equiparação da união homossexual e em 2013 o CNJ decidiu que os cartórios brasileiros seriam obrigados a celebrar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Mas, no âmbito eclesiástico, muitas dúvidas e questionamentos se instalaram e, na condição de advogada especialista na área, atendi muitos pastores e líderes eclesiásticos preocupados com situações diversas, tais como:

- serei obrigado a realizar casamento homossexual na minha igreja?
- sou obrigado a manter um membro que seja homossexual e não esteja buscando retomar sua verdadeira identidade?
- devo consagrar crianças que são filhas de casais homossexuais ?

Bom, há que se esclarecer que a questão, tanto nos EUA, quanto no Brasil, restringe-se tão somente à esfera pública. Ou seja, a imputação de tal obrigação é restrita aos órgãos públicos; os cartórios são obrigados a reconhecer a união de homossexuais, não alcançando essa obrigação as entidades privadas, como é o caso das entidades religiosas.

No Brasil gozamos de liberdade religiosa, e é isso que garante às igrejas evangélicas o direito de não terem que celebrar cerimonias de casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Isso porque, em virtude dessa liberdade religiosa, a igreja pode professar sua fé e promover seus cultos com base no que crê.

Ora, se a base da igreja evangélica é a Bíblia e se dentre os preceitos cristãos está o entendimento de que o casamento homossexual é condenado por Deus, ao Estado não cabe obrigar as igrejas a realiza-lo!

Note-se que a liberdade religiosa é um direito constitucional que abrange inclusive a liturgia das igrejas:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
..
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

O fato é que a liberdade religiosa abrange uma complexidade de direitos, dentre os quais podemos destacar:

- liberdade de consciência
- liberdade de crer ou não crer
- liberdade de culto enquanto manifestação da crença
- direito à organização religiosa
- respeito à religião

Nesse entendimento, temos por certo que concordar ou não com o casamento homossexual na esfera das práticas eclesiásticas está intrinsecamente relacionado ao direito de praticar a própria fé, conforme a liberdade religiosa nos permite. E ainda nessa linha de pensamento, ao não celebrar um casamento homossexual a igreja está promovendo sua liberdade de prática da fé, culto e de liturgia.

Ainda no âmbito legal, o nosso Código Civil atual destacou a organização religiosa como um ente dotado de personalidade jurídica de direito privado e determinou, em seu artigo 44, § 1º que a igreja tem liberdade de promover sua estruturação interna:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
.
IV - as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)

§ 1o São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)

É a igreja, portanto, livre para promover sua fé, desde que suas práticas não infrinjam alguma lei. Daí porque, enquanto prevalecer nossa Constituição Federal atual, não pode a igreja ser tolhida em sua crença e isso inclui não ter que se sujeitar a aceitar a condição de homossexualidade e consequentemente, promover cerimonias religiosas entre pessoas do mesmo sexo.

Ainda, com base no artigo supracitado, a igreja tem autonomia para promover sua estruturação interna (ressalte-se que a igreja, como já dito, é um ente de direito privado, e não público), o que significa que tem legitimidade para estabelecer suas regras de funcionamento. Tal qual um clube estabelece regras aos seus associados, a igreja pode estabelecer regras aos seus membros, inclusive deliberando quem pode e quem não pode ser membro da igreja.

Nesse sentido, temos que o preceito constitucional e legal da liberdade religiosa estende-se a qualquer outro dilema envolvendo questões dessa ordem: não, a igreja não é obrigada a ter em seu rol de membros, pessoas que sejam e queiram continuar na condição de homossexuais; também não é obrigada a consagrar filhos de casais homossexuais. Tudo isso com base na sua fé, na prática da sua fé. No entanto, a proteção das práticas eclesiásticas da igreja se consolida e se formaliza por meio de um estatuto bem elaborado, que indique de forma clara quais os fundamentos e objetivos da igreja, aliados a um regimento interno que delimite as regras para convívio, condições de membresia, relação entre os membros, obreiros, dentre outros. Ou seja, deve a igreja deixar claro e formalizado quais são suas bases de prática eclesiástica, estabelecendo seus critérios de atuação e seu alcance. E é dessa forma que a igreja, pode, por exemplo, consignar quais os casamentos que realizará; quem pode ou não pode ser batizado, consagrado; quem pode servir como obreiro; as condições para ser membro e etc.

Conclui-se, portanto, que sob a ótica do Direito Eclesiástico, a aprovação do casamento entre homossexuais não atinge a igreja, vez que à tais entidades aplica-se o conceito da liberdade religiosa, que lhes concede legitimidade para estabelecerem seus próprios critérios de organização eclesiástica e de administração, respeitando-se suas práticas de culto, liturgias e, principalmente, a própria fé que professam, sendo, sem dúvida alguma, vedado ao poder público ou mesmo ao indivíduo impor-lhe qualquer ação que contrarie tal condição.
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*Taís Amorim de Andrade Piccinini é advogada do Amorim & Leão Advogados.

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