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Improcedência da demanda e tutela do meio ambiente

Como se estivéssemos acometidos por uma miopia limitadora da nossa visão que nos impedisse de enxergar um palmo além do nariz, nós nos acostumamos a ver a tutela dos interesses difusos apenas e tão somente quando um ente coletivo promove uma ação coletiva, ou seja, na condição de legitimado ativo.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Atualizado em 4 de abril de 2017 09:05

Publicado em 19/12/16 o acórdão proferido no REsp. 1457851/RN de relatoria do ministro Herman e Benjamin é um importante reconhecimento (mais um exemplo do STJ) de que a tutela jurisdicional dos interesses coletivos pode ser prestada mesmo quando tais interesses apresentam-se representados em situações jurídicas passivas (neste caso em uma demanda proposta por um indivíduo). No aresto citado a tutela do meio ambiente está no acertamento obtido a partir da improcedência da demanda proposta pelo autor.

O acórdão mencionado refere-se a uma "ação declaratória proposta por estabelecimento hoteleiro contra a União, buscando reconhecimento judicial de que o imóvel litigioso não se encontra em terreno de domínio público; alternativamente, pede que se declare que a empresa detém posse legal da área, bem como que se afirme a ilicitude de pretensão demolitória da Administração".

Colhe-se da narrativa do julgado que o contraditório se desenvolveu em torno do objeto do conflito delimitado pelo autor, ou seja, saber se a tal área onde foi erguido o Hotel e suas benfeitorias era ou não de domínio público, se havia posse ilegal e se a ordem de demolição emanada de ato administrativo da União era ou não ilegal.

Para elucidar estas questões de fato e de direito que surgidas no desenrolar da demanda investigou-se as características em concreto da referida área, inclusive com laudo do IBAMA como consta na narrativa do acórdão. Nesta toada, ao final houve o reconhecimento de que a ocupação era ilegal, porque a área era de marinha, porque houve violação da área de preservação permanente, tratava-se de área de praia, também era um local de ninho de quelônios (tartarugas) e ainda por cima teria ocorrido violação de regras de licenciamento ambiental.

Como se estivéssemos acometidos por uma miopia limitadora da nossa visão que nos impedisse de enxergar um palmo além do nariz, nós nos acostumamos a ver a tutela dos interesses difusos apenas e tão somente quando um ente coletivo promove uma ação coletiva, ou seja, na condição de legitimado ativo. Contudo, a atual dogmática do CPC, atento ao modelo constitucional de processo (Bueno, Cassio. Curso Sistematizado, vol. 1) nos impõe o dever de ultrapassar este limitado campo visual, abrindo horizontes para mirar a tutela dos direitos sob todas as perspectivas ofertadas no conflito deduzido em juízo, desde que respeitadas as garantias fundamentais. Neste acórdão as perspectivas de tutela jurisdicional vão além do insuficiente binômio pedido do autor-sentença do juiz.

No presente caso, na resolução do conflito de interesses constatou-se que houve uma série de ilícitos praticados pelo autor da demanda quando ocupou área que explorou economicamente, mas que só emergiram no processo a partir das questões nascidas do contraditório processual. Nesse diapasão, relembre-se que a atual dogmática processual do CPC, graças ao papel fundamental e pioneiro do saudoso Ministro Teori Zavaschi (Executividade das sentenças de improcedência em ações declaratórias negativas, Revista de Processo. São Paulo: RT, 2012, vol. 208), permite a formação de títulos executivos judiciais a partir de qualquer tipo de decisão judicial, seja ela condenatória, constitutiva ou declaratória (inclusive de improcedência), desde que nela estejam reconhecidas a "exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa" (art. 515, I do CPC).

É preciso abrir a viseira ou melhorar os óculos e ver que a improcedência não é apenas o reconhecimento judicial de que o autor da demanda não tem razão em relação ao réu naquele conflito de interesses instaurados em juízo, mas, também o é, sob a perspectiva do réu, o reconhecimento de que ele possui razão em relação ao autor sobre tudo o que foi objeto de contraditório e que foi decidido no processo.

Há mais de 100 anos Adolf Wach (Der Feststellungsanspruch: Ein Beitrag zur Lehre vom Rechtsschutzanspruch. Dunker e Humblot 1889) e posteriormente Chiovenda (Istituzioni di diritto processuale civile. v.1. I concetti fondamentali, la dottrina delle azioni -- v.2 t.1 I rapporti processuali, il rapporto processuale ordinario di cognizione) já diziam que o réu exerce uma pretensão e que a improcedência é o reconhecimento do direito à tutela jurisdicional em favor do réu. Em 2008, sob orientação do Prof. José Rogério Cruz e Tucci, em bela tese de doutoramento na USP, Heitor Sica retomou o tema sob a perspectiva do moderno processo civil brasileiro.

No aresto citado, mais do que reconhecer que o autor não tem o direito reclamado, ao contrário, concedeu tutela jurisdicional em favor do réu, União, que, no caso, defendia interesse difuso de natureza essencial à sadia qualidade de vida, num típico exemplo, mas pouco explorado, de tutela jurisdicional coletiva passiva (Didier e Zaneti, Curso. Vol.4). E, prosseguimos, essa tutela jurisdicional em favor dos interesses difusos, tem força executiva em relação aos deveres jurídicos que nele foram reconhecidos, ou seja, trocando em miúdos, tal acordão pode lastrear um cumprimento definitivo de deveres de fazer em busca de uma tutela específica restauradora ou reparatória do meio ambiente, a despeito da possibilidade de que tal decisão também sirva de título liquidatório para eventual apuração do quantum devido em caso de ser impossível a tutela específica, sem contar, é claro, com a possibilidade de reclamar o dano moral coletivo pelo dano ambiental causado. Tudo isso valendo-se do mesmo acertamento judicial já obtido pela improcedência.

É preciso ter em mente, e atenção, que ao se propor uma demanda o que está em jogo é a tutela de direitos em favor daqueles que estão em juízo em busca de uma solução do conflito, seja ele o autor, seja ele o réu. O processo não é um método de solução de conflitos à disposição exclusivamente do autor, tanto que há limites para a desistência da ação (art. 485, §4º e 343, §2º).

Neste caso do acórdão, mais do que uma tutela coletiva passiva, o que se tem é a formação de um título executivo judicial que protege um dever fundamental do poder público e da coletividade de proteger e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput da CF/88). Não houve só a improcedência do direito do autor, e tampouco a ratificação da sanção administrativa questionada na ação declaratória, mas sim a formação de título executivo judicial em favor da tutela do meio ambiente sobre diversos deveres fundamentais que poderão ser objeto de cumprimento definitivo da decisão judicial transitada em julgado.

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*Marcelo Abelha Rodrigues é advogado e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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