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Incorporação imobiliária: em que momento, afinal, nasce o condomínio edilício?

Há, inclusive, quem considere que essa criação ocorre com o registro da convenção.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Atualizado em 12 de abril de 2017 12:32

Certa vez um espanhol, pouco depois de ficar milionário na loteria com um bilhete premiado que terminava com o número 48, revelou orgulhosamente a sua teoria de sucesso: "sonhei com o número 7 por 7 noites consecutivas", afirmou, "e 7 vezes 7 é 48".

A isso se dá o nome de intuição. Nadar contra a corrente da intuição não é uma tarefa fácil. O cérebro humano, resultado de bilhões de anos de evolução, foi moldado para encontrar padrões em tudo o que seu portador vê, escuta, cheira, toca e prova. Na maioria das vezes esse comportamento nos salvou de um predador, de um acidente ou coisa pior, e por isso estamos aqui hoje. É natural e esperado que ajamos assim. Mas, ao mesmo tempo, essa forma pensar nos leva, em certas situações, a erros bastante sérios, que podem custar a nossa vida, o nosso sucesso ou o desenvolvimento de um mercado inteiro.

Um desses erros, acreditem, é o entendimento arraigado, no meio imobiliário, de que o condomínio edilício é criado, ou instituído, por ocasião da averbação do habite-se do empreendimento. Há, inclusive, quem considere que essa criação ocorre com o registro da convenção. Da mesma forma, prevalece o pensamento intuitivo - e equivocado - de que a fração ideal é proporcional à área privativa da unidade (trataremos da fração em outra oportunidade).

Porque pensamos assim? Ora, é muito simples: a edificação (ou conjunto de edificações) só está concluída com o habite-se e sua averbação na matrícula do imóvel. Como então, falar em condomínio edilício antes desse momento, em que as unidades imobiliárias não estão prontas? E, com base nesse pensamento, incorporadores fazem o seu planejamento, advogados assessoram seus clientes, e registradores promovem seus registros e formulam as suas exigências.

É como se o art. 1.332 do Código Civil simplesmente não existisse. Afinal, estamos no bojo de uma incorporação imobiliária, regrada por lei especial. Para que, então, deitar olhos sobre o restante da legislação? Esquecemo-nos, com isso, que o nosso ordenamento jurídico é sistema unitário, ordenado, móvel e aberto (CANARIS), e que não existem microssistemas isolados. Todo o tecido normativo está interligado.

Pois bem. O citado dispositivo, repetindo o que já constava do art. 7º da lei 4.591/64, é claro em estabelecer que o condomínio edilício, um direito real, sem personalidade jurídica (o que será objeto de outro artigo), é instituído, criado "por ato entre vivos... registrado no Cartório de Registro de Imóveis", devendo constar desse ato "a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns", "a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade" e "o fim a que as unidades se destinam".

Abra-se um parêntese. Em uma incorporação imobiliária, esse "ato entre vivos" é, para alguns, o próprio memorial de incorporação, que atende a todos os requisitos do art. 1.332. Registrado o memorial (ou para ser mais técnico, registrada a incorporação), surge, neste momento, o direito real de condomínio edilício, e com ele, nascem as unidades autônomas a serem construídas (mas não a serem criadas). Para outros, como eu, o incorporador deveria juntar ao memorial uma escritura pública de instituição de condomínio edilício, pois o art. 108 do Código Civil reza que "não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição... de direitos reais sobre imóveis", e não há na Lei de Incorporações nenhum dispositivo permitindo a instituição desse condomínio por instrumento particular. Porém, isso não tem relação com o que nos propomos a discutir agora, que é momento (e não o meio) de criação do condomínio. Com ou sem escritura de instituição, o importante é que o condomínio, juridicamente falando, nasce com o registro da incorporação, antes, muito antes, portanto, da construção das unidades imobiliárias. Feche-se.

Mas eu divago. O art. 44 da Lei de Incorporações dispõe que "após a concessão do habite-se. o incorporador deverá requerer a averbação da construção das edificações, para efeito de individualização e discriminação das unidades". Eureka? Nada disso.

A interpretação literal é, de longe, o método hermenêutico mais frágil. Não podemos concluir que a expressão "para efeito de individualização e discriminação das unidades" significa criar o direito real de condomínio edilício se isso contradiz todo o sistema.

O legislador, convenhamos, diversas vezes escreve mal. Só para ficar no Código Civil:

- o art. 1.344 diz incumbir "ao proprietário do terraço de cobertura" as despesas de sua conservação. Ora, então o titular do direito de uso exclusivo não precisa conservá-lo?

- segundo o art. 504, "não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto", e "o condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos". Obra prima que nos levaria a um festival de horrores se seguíssemos a interpretação literal. Sim, pois pela letra do artigo: (i) a venda em violação da preferência seria ato ilícito ("não pode"), irregistrável, quando sabemos que ela é um negócio jurídico válido e eficaz, ficando o comprador, durante o prazo decadencial, sujeito à venda compulsória (adjudicação) da fração para o condômino; (ii) não haveria direito de preferência na venda de fração de imóvel divisível (um grande terreno, por exemplo); e (iii) o condômino "a quem se deu conhecimento da venda", e cuja resposta foi ignorada, não teria a adjudicação compulsória, eis que a lei só preveria tal ação "a quem não se der conhecimento".

Como se vê, todo cuidado é pouco com a interpretação literal.

Nunca li este argumento, mas ao refletir sobre o tema, me perguntei se o art. 483 do Código Civil, ao estabelecer que "a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura", jogaria por terra o que está acima. A resposta é não.

Para os imóveis, temos princípios e regras de direito registral (lembrem-se, o ordenamento é uno, não compartimentalizado) que tornam impossível o registro da instituição e da transmissão de um bem imóvel que ainda não existe no mundo jurídico. Nenhum oficial pode registrar a venda de um terreno ainda não desmembrado, nem a venda de um lote em loteamento não registrado, nem a venda de uma unidade autônoma de condomínio edilício ainda não instituído. Pois nesses três casos, a propriedade ainda não foi fracionada, dividida, e o bem resultante dessa divisão (área desmembrada, lote, unidade autônoma) ainda não existe.

Não estou afirmando que o art. 483 do CC não poderia ser aplicado a certos contratos sobre bens imóveis. Estou apenas defendendo que esses contratos, mesmo nos casos em que sejam válidos, jamais terão acesso ao fólio real, e com isso, nunca gerarão efeitos reais.

Diante disso, posso afirmar, com segurança, que não é possível vender licitamente - por contrato válido apto a transmitir direito real - uma unidade autônoma futura, que ainda não existe no mundo jurídico.

Então, precisamos ser coerentes:

(i) ou continuamos afirmando que o condomínio edilício e as unidades autônomas só surgem com a averbação do habite-se, caso em que não poderemos admitir, antes do habite-se, nem a sua alienação, nem a constituição de garantias reais, nem a criação de matrículas, violando o art. 32, cujo caput autoriza, desde o registro da incorporação, essa negociação;

(ii) ou então consideramos lícitos tais negócios jurídicos pré-habite-se (alguma dúvida de que são legais?), e para isso precisamos aceitar a realidade de que o condomínio edilício e as unidades imobiliárias a serem construídas existem desde o registro da incorporação.

Para que, então, serve o art. 44 da Lei de Incorporações? Que "efeito" ele realmente gera? Simples: a averbação do habite-se não só põe fim à incorporação imobiliária (permanecendo alguns efeitos dela decorrentes, como as obrigações e responsabilidades do incorporador), como altera a qualificação das unidades autônomas. O bem imóvel, presente, existente, e "a ser construído", transforma-se em bem imóvel, presente, existente e construído. O sistema é coerente por si só; não precisamos complicá-lo.

Quando a realidade desbancar a intuição e nos libertarmos dessa amarra imaginária, muitas portas se abrirão para o desenvolvimento de interessantes estruturas jurídicas nas incorporações. O mercado imobiliário só terá a agradecer.

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*André Abelha é sócio do escritório Castier/Abelha Advogados.

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