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Comarcas, só com dinheiro

A renda da comarca, no raciocínio dessa gente, constitui o alicerce para a instalação ou manutenção da "unidade de divisão judiciária autônoma".

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Atualizado às 08:44

No mundo capitalista selvagem no qual vivemos, envolvido por desenfreada corrupção, o dinheiro e o poder constituem a base para a manipulação da vida do cidadão. O dinheiro, em busca do poder, tem servido para comprar consciências, para socorrer bandidos e para desgraçar com a honestidade dos homens de bem. Nada mais atual do que a expressão de Ruy Barbosa: "De tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a rir-se da honra, desanimar-se de justiça e ter vergonha de ser honesto".

Os poderes Executivo e Legislativo no plano Federal, Estadual e Municipal transformaram-se num lamaçal, onde poucos se salvam. E o pior é que, as "lições" oferecidas por empresários ou políticos, difundidas em profusão na imprensa falada e escrita, são copiadas e praticadas nas grandes e pequenas cidades.

Os municípios, células menores da divisão politico-administrativa do país, as comarcas, partição menor da organização Judiciária dos tribunais, navegam sem rumo. Os poderes Legislativo e Executivo estão presentes em cada uma das mais de 5.500 cidades do país, mas o Judiciário, tão requisitado pelo povo, distancia-se cada vez mais da população.

Dentre os serviços essenciais, prestados pelo Estado ao cidadão, insere-se o ofício do Judiciário, que se destina a proteger o direito violado, principalmente dos menos favorecidos, porque os mais visados pela sanha dos gananciosos. Descobre-se, entretanto, que essa lógica não funciona, porquanto o próprio Judiciário fecha as portas de fóruns nas cidades mais pobres e mais necessitadas.

O Conselho Nacional de Justiça, responsável pelo aumento de férias dos juízes de 60 para 75 dias, passou a instruir aos presidentes dos tribunais dos Estados para desativar comarcas que não rendem o suficiente para suportar as despesas da unidade. Tudo gira em torno do dinheiro, sem se aquilatar das reais privações da gente humilde que continua oprimida e cada vez mais, diante de obstáculos para ter acesso à Justiça. Já não basta a falta de juízes, de servidores, de estrutura, de defensores públicos, de promotores; investem contra a existência de comarcas, criadas centenas de anos atrás.

Nenhuma autoridade dos poderes constituídos levanta a voz contra essa ignominia, essa insólita e canhestra orientação. Todos obedecem cegamente à recomendação que vem de cima.

Será que o CNJ não sabe que o lucro da empresa "Tribunal S/A" é constituído de "serviços" e não de rendimento do dinheiro? Por que o Judiciário não dispõe de órgãos administrativos, deixando a diretoria dos tribunais competentes somente para a atividade jurisdicional? Isso é o que ocorre com grandes países, como Estados Unidos, e médios, como o Chile. No Brasil, as diretorias dos tribunais, que nada ou pouco sabem sobre administração, passam de uma hora para outra a gerir volumosos recursos e acontece o choque entre uma diretoria que abre comarcas e outra que fecha comarcas.

A renda da comarca, no raciocínio dessa gente, constitui o alicerce para a instalação ou manutenção da "unidade de divisão judiciária autônoma". Não se importa com a Constituição do Estado ou com a lei de organização judiciária que assenta a premissa:

"Entende-se como Comarca Não-Instalada, todo município que ainda não seja sede de Comarca".

Isso está escrito na lei de organização judiciária, art. 15, § 1º, inc. VIII, elaborada por desembargadores do TJ/BA e ratificada pela Assembleia Legislativa.

E para que serve a Constituição do Estado, quando estabelece:

Art. 121 - "A cada Município corresponderá uma comarca, dependente a sua instalação de requisitos e condições instituídos por lei de organização judiciária".

De nada vale; nem se fala na criação, mas no fechamento daquelas que foram criadas, observando as leis que tratam do assunto, respeitando todos os requisitos legais; açodadamente, o TJ/BA resolve desativar, sangrando o direito do povo de ter acesso à Justiça.

Já disse e vou repetir para evitar o argumento de que são lacradas unidades que tem pouco movimento:

Uma escola só funciona se tem professor e estrutura para atender aos alunos; um hospital só desempenha sua atribuição, se dispor de médicos, enfermeiros e de toda a infraestrutura necessária; uma empresa privada só produz lucros se tem produtos para venda, se dispõe de funcionários em quantidade suficiente para atender à clientela. Enfim, não se pode fechar uma empresa, sob a justificativa de que não dá lucro, se não há mercadoria para venda, nem dispõe de funcionários suficientes para atender à demanda; um hospital não pode ser desativado porque é composto por poucos pacientes, se não tem médicos, nem enfermeiros; uma escola não pode ser desmontada se não tem professores; da mesma forma, uma comarca não pode nem deve ser fechada porque tem poucas demandas judiciais.

Cinco anos depois das desativações/agregações, 66 unidades, acumulada com 25 varas fechadas, deixam às populações dessas comarcas, quase um milhão de jurisdicionados padecerem pelos obstáculos criados para acessar a Justiça. E o pior é que os serviços em todas elas, que já não eram bons, arruinaram, porque sem alteração alguma na estrutura. Os servidores aposentam-se pelo desencanto e pela estafa no trabalho, os juízes enlouquecem com substituições em comarcas distantes 500 ou mais quilômetros.

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*Antonio Pessoa Cardoso é desembargador aposentado e advogado do escritório Pessoa Cardoso Advogados.

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