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O discurso de guerra e a crise do sistema penal brasileiro

Negligência com sistema penitenciário reflete "tendência belicista" adotada por autoridades e pela população no combate à criminalidade

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Atualizado às 08:37

Quando apenas as classes mais vulneráveis economicamente de um país são encarceradas; quando a violência policial produz milhares de vítimas; quando rebeliões nos presídios se transformam em chacinas; quando juízes, promotores e delegados são assassinados por cumprirem com seus deveres; quando o Estado se despe de garantidor da norma e se converte no principal violador da mesma, isso é sinal que o sistema penal e o discurso que o sustenta perdeu a legitimidade.

Há muito tempo a crise nos presídios é denunciada pela comunidade jurídica e nada foi feito. Os órgãos de persecução penal (Ministério Público, Autoridade Policial e Poder Judiciário) sabiam das condições do presídio privatizado de Manaus e de Roraima, os governantes também sabiam, a mídia tinha conhecimento e nada foi feito1. Quem se importa com o sistema prisional brasileiro? Quem deseja melhorias nas prisões? Afinal de contas vivemos em tempos em que defender a lei e a constituição é sinônimo de "defender bandidos".

Isso é reflexo da ausência de ética na esfera pública, do senso comum teórico que norteia o imaginário popular e da crise de gerenciamento dos recursos públicos. O Poder Judiciário, que deveria funcionar como um guardião de direitos e garantias fundamentais se filiou (salvo algumas exceções) aos princípios defendidos pelo movimento "lei e ordem".2

O discurso utilizado pelas autoridades e por grande parte da população é um discurso de guerra, ou seja, a criminalidade deve ser enfrentada com o uso de técnicas bélicas e o "inimigo" deve ser extinto a qualquer custo. Contudo, esquece-se que tal ideologia não apresenta coerência com os próprios princípios reitores do Direito Penal, tais como princípio da limitação das penas, da proporcionalidade, da humanidade das penas, da intervenção mínima etc.

O direito penal do inimigo, germinado por Günther Jakobs se configura como uma espécie de direito penal parcial, isto é, o sujeito que se comporta como inimigo da sociedade, assim deve ser tratado por ela. Em outras palavras, o criminoso representa uma fonte de perigo e por causa disso deve ser aniquilado3.

Essa tendência belicista de combate à criminalidade é uma nova tendência do Direito Penal hodierno. Para Jakobs o "inimigo" deve ser interceptado já no estágio prévio e deve ter sua periculosidade combatida, pois atenta contra os valores normativos de uma dada sociedade.4

Tal discurso de guerra é propagandeado pela mídia, por alguns setores da intelectualidade e por boa parte da sociedade civil, a qual acredita que é dessa maneira que se faz justiça, quando na verdade apenas reproduz aquilo que se chama de senso comum teórico ou ideologia penal dominante.

O Estado, ente responsável por excelência em prover segurança aos cidadãos deve agir para retomar o controle dos presídios, os quais estão nas mãos das facções e seus membros. Além disso, políticas de ressocialização devem ser aplicadas de maneira eficaz para coibir a reincidência criminal por parte dos reeducandos. A ideologia a ser empregada deve ser de regenerar o interno e não de soltá-lo ainda mais revoltado com a sociedade.

Por falta de investimentos em setores estratégicos como educação (no sentido de prevenir o crime) e segurança (no sentido de reprimir a criminalidade) a crise carcerária nacional caminha a passos largos. A melhor forma de evitar práticas delituosas não é reforçar os bairros das cidades com presídios de segurança máxima e sim reforçar tais lugares com escolas bem estruturadas e professores qualificados. Ademais, cabe ressaltar que o massacre de Manaus foi previsto por uma Convenção de prevenção à tortura no ano de 20155. Entretanto, mais uma vez cabe perguntar: Quem liga para o sistema penitenciário brasileiro?

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1 30% das cirurgias jurídicas dão errado. O que há com os "médicos"? - Lenio Luiz Streck.

2 Mortes em presídios não são acidente nem indicativo de crise no sistema - Leonardo Marcondes Machado.

3 D'ÁVILA, Fabio Roberto. O inimigo no Direito Penal contemporâneo. Algumas reflexões sobre o contributo crítico de um Direito Penal de base onto-antropológica. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 96-97.

4 JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. 4. ed. atual. e ampl. Poro Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 36.

5 Brasil caiu nas mãos de quatro grupos de crimes organizados - Luiz Flávio Gomes. Disponível em: (Clique aqui).

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*Alexandre José Trovão Brito é advogado da SEAP - MA (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Maranhão); especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA.


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