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O direito constitucional da atividade intelectual e científica fronte aos direitos coletivos

Importante frisar que não se almeja com o presente a discussão acerca da opção sexual de cada um, mas tão somente diz respeito ao direito que os profissionais têm de iniciarem e progredirem suas pesquisas, e, até onde podem chegar com elas, respeitando o livre arbítrio de cada um, bem como a dignidade individual e o direito coletivo.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Atualizado às 08:32

Após a decisão em sede liminar proferida pelo Juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, no bojo da ação popular 1011189-79.2017.4.01.3400, não se fala em outra coisa no Brasil que não seja a suposta "cura gay".

O que não se percebe na discussão criada é que novamente vem à tona o imbróglio acerca dos limites da ciência; até onde suas pesquisas podem adentrar para a melhoria da qualidade de vida sem que isso interfira na vida de alguns indivíduos; o livre arbítrio do ser humano; e o princípio da dignidade da pessoa humana.

Importante frisar que não se almeja com o presente a discussão acerca da opção sexual de cada um, mas tão somente diz respeito ao direito que os profissionais têm de iniciarem e progredirem suas pesquisas, e, até onde podem chegar com elas, respeitando o livre arbítrio de cada um, bem como a dignidade individual e o direito coletivo.

Pois bem, deve-se analisar a decisão do MM. juiz de forma sensata e coerente, fora da visão viciada e distorcida, muitas vezes transmitida pelos veículos de informação.

Sendo assim, deve ser destacado o instituto da hierarquia das leis, este criado pelo jusfilósofo Hans Kelsen, que ilustrou a hierarquia das leis em uma pirâmide, intitulada de "Pirâmide de Kelsen", onde, no topo desta se encontra a Lei Maior, ou seja, a Constituição Federal.

Partindo desta premissa, temos que nenhuma lei, medida provisória, resolução ou qualquer norma infraconstitucional pode afrontar a Constituição, e, com base nisso, foi proferida a decisão que tanto está sendo alvo de críticas por parte da grande mídia e alguns cidadãos.

Tal decisão se deu no bojo de ação popular no início citada, e foi proposta com base no inciso LXXIII, do art. 5º da Constituição, que assegura que:

LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

O objetivo da ação em comento é suspender os efeitos da resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia, pois os psicólogos estavam sendo proibidos de conduzir/produzir qualquer estudo acerca da homossexualidade, bem como clinicar sobre orientação sexual de qualquer natureza.

Diz a resolução:

"O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais,

CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde;

CONSIDERANDO que na prática profissional, independentemente da área em que esteja atuando, o psicólogo é freqüentemente interpelado por questões ligadas à sexualidade.

CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade;

CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão;

CONSIDERANDO que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida sócio-culturalmente;

CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações;

Art. 1° - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.

Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.

Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.

Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.[...]"

A liminar que foi deferida, por sua vez, não suspendeu o efeito da resolução, somente determinou interpretação diferente da que vem sendo utilizada, e para tanto o Magistrado designou audiência prévia, dada a complexidade do caso, tendo elaborado os seguintes questionamentos: a) pretendem os autores divulgar ou propor terapias tendentes à reorientação sexual?; b) os autores estão impedidos ou foram punidos pelo C.F.P. por prestarem suporte psicológico, ainda que solicitados e de forma reservada, às pessoas desejosas de uma reorientação sexual?; c) no campo científico da sexualidade, em especial no que diz respeito ao comportamento ou às práticas homoeróticas, o que se permite ao psicólogo estudar ou clinicar sem contrariar a resolução 01/99 da C.F.P.?

Existem alguns pontos de maior relevância que merecem destaque na fundamentação do Magistrado:

"4º) já em seu Preâmbulo, a Constituição Republicana de 1988 começa por estabelecer uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos; elencando como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º IV), além de garantir a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX)"

Em outro ponto destaca ser dever de todos psicólogos, por atuarem em uma área da Ciência da Saúde:

"[...] aprimora-se profissionalmente, envidando esforços na promoção da qualidade de vida das pessoas a das coletividades, baseando seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano [...]"

E por fim decidiu (in verbis):

"Sendo assim, defiro, em parte, a liminar requerida para, sem suspender os efeitos da Resolução nº 001/1990, determinar ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade e licença prevista por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5º, inciso IX, da Constituição de 1988."

Entende-se, portanto, que o Magistrado apenas respeitou a hierarquia das leis, não deixando que uma resolução afronte a previsão Constitucional Republicana.

Tal decisão é de suma importância, pois respeitou a liberdade da atividade intelectual e científica, fazendo assim com que os estudos acerca do tema não cessem, porém, que sejam feitos de forma discreta e sem causar malefícios a outrem e/ou a coletividade.

Em julgado de bastante repercussão já decidiu o Supremo Tribunal Federal sobre o tema:

"O termo "ciência", enquanto atividade individual, faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da pessoa humana (inciso IX do art. 5º da CF). Liberdade de expressão que se afigura como clássico direito constitucional-civil ou genuíno direito de personalidade. Por isso que exigente do máximo de proteção jurídica, até como signo de vida coletiva civilizada. Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da Ciência que o Magno Texto Federal abre todo um autonomizado capítulo para prestigiá-la por modo superlativo (Capítulo IV do Título VIII). A regra de que "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas" (art. 218, caput) é de logo complementada com o preceito (§ 1º do mesmo art. 218) que autoriza a edição de normas como a constante do art. 5º da Lei de Biossegurança. A compatibilização da liberdade de expressão científica com os deveres estatais de propulsão das ciências que sirvam à melhoria das condições de vida para todos os indivíduos. Assegurada, sempre, a dignidade da pessoa humana, a CF dota o bloco normativo posto no art. 5º da Lei 11.105/2005 do necessário fundamento para dele afastar qualquer invalidade jurídica" (min. Cármen Lúcia). [ADI 3.510, rel. min. Ayres Britto, j. 29-5-2008, P, DJE de 28-5-2010.] (grifei)

Óbvio e notório que os direitos da coletividade devem ser respeitados, principalmente quando se tratar de tema de grande relevância, como é o caso.

Porém, vale destacar também o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o livre arbítrio do indivíduo, podendo este procurar orientação acerca de qualquer tema com qualquer profissional da saúde, quando julgar necessário para o seu bem-estar, podendo, inclusive, se assim entender, se submeter a avaliações.

Posto isso, não se vislumbra qualquer afronta a qualquer direito, seja individual ou coletivo, pois, a decisão proferida, não determina a extinção da resolução, e sim a sua interpretação diferente, como já exposto anteriormente, garantindo apenas o direito ao avanço da ciência como um todo e preservando o livre arbítrio de cada ser humano.

Destarte, deve o Estado assegurar a todas as ciências, independente do seu objeto, o sagrado e constitucional direito ao estudo de qualquer tema, seja ele complexo ou não, pois, somente assim uma nação consegue progredir, por meio da ciência e das soluções dela emanadas.

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*Paulo Vitor Reginato é advogado, fundador do escritório PVR Advocacia e Consultoria Jurídica em Cuiabá - MT e pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal.

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