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O contraditório na desconsideração da personalidade jurídica

Vale observar que a garantia do contraditório é medida importante, de modo a evitar surpresas processuais, com o acolhimento do pedido inaudita altera parte e consequente adoção de medidas constritivas.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Atualizado em 17 de outubro de 2017 17:36

A desconsideração da personalidade jurídica, lastreada na teoria da disregard doctrine ou disregard legal entity, ganhou largo espaço normativo, tendo sido admitida no âmbito do direito consumerista (art. 28 do CDC)1, do direito civil (art. 50 do CC)2, no direito ambiental (art. 4º da lei 9.605/98)3 e no campo do direito econômico (art. 34 da lei 12.529/11)4, bem como possui grande aplicação no âmbito da Justiça do Trabalho.

Entretanto, padecia o direito processual da ausência de uma regulamentação quanto ao procedimento para apuração e eventual reconhecimento da desconsideração. A matéria restou finalmente disciplinada nos artigos 133 a 137 do novo Código de Processo Civil.

Com efeito, considerando que o incidente é aplicável às diversas áreas do direito, a pretensão de desconsideração deverá ser deduzida levando-se em conta os pressupostos materiais exigidos em cada sistema normativo.

Interessante salientar que o legislador acertadamente optou pela adoção do contraditório no incidente, que é admitido em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial (art. 795, § 4º, do CPC), bem como nos processos de competência dos Juizados Especiais (art. 1.062 do CPC).

Portanto, ressalvada a hipótese em que o pleito seja deduzido na inicial, oportunidade em que será aberto o contraditório ordinário, o incidente implica na suspensão do processo, conferindo-se em seguida a oportunidade do contraditório, inclusive com prerrogativa de produção probatória (art. 135).

Assim, constitui ônus processual do requerente a efetiva demonstração do "preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica" (art. 134, § 4º). Neste caso, é imperiosa a necessidade de deduzir as provas existentes e requerer eventuais provas a serem produzidas em instrução.

Vale observar que a garantia do contraditório é medida importante, de modo a evitar surpresas processuais, com o acolhimento do pedido inaudita altera parte e consequente adoção de medidas constritivas.

Nesta linha, o procedimento evita circunstâncias algumas vezes identificadas na prática forense, de reconhecimento açodado da desconsideração da personalidade jurídica, sem o prévio contraditório e com a imputação de responsabilidades e constrição de bens ou valores, cujas decisões por vezes restaram revertidas em sede recursal, mas com efeitos colaterais negativos.

Entretanto, diante da nova perspectiva normativa é inevitável questionar se ainda teria pertinência a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que vem reconhecendo a possibilidade de contraditório diferido para a decretação de desconsideração de personalidade jurídica. Nesta linha, do voto proferido pelo Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento do REsp 1.412.997-SP, depreende-se o seguinte:

"Por ocasião do julgamento do REsp 1.096.604/DF, a Quarta Turma concluiu pela prescindibilidade da citação prévia dos ex-sócios cujo patrimônio fora atingido pela decisão de desconsideração, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade."5

A propósito, no julgamento do REsp 1.182.620/SP restou estabelecido o seguinte:

"Garantido o direito ao contraditório, ainda que diferido, não há falar em nulidade de decisão que desconsidera a personalidade jurídica [...]". (Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/12/13, DJe 04/02/14).

Com efeito, considerando que a nova orientação normativa exige o contraditório prévio seria possível concluir pela superação da aludida orientação jurisprudencial? Não parece ser esta a concepção acertada.

Os arestos evidenciam a possibilidade de contraditório deferido, desde que prévia e inequivocamente comprovados nos autos os "pressupostos autorizadores da medida", caracterizados pelo abuso da personalidade jurídica, a confusão patrimonial ou a má-fé. Aliás, salientam que a demonstração desde logo da existência dos referidos pressupostos exige conduta célere do Poder Judiciário, com o escopo de adotar medidas, notadamente as constritivas, sob pena de "esvaziamento do instituto nobre."

Portanto, desde que presentes as referidas condições o Poder Judiciário estaria apto a estabelecer o diferimento do contraditório, sem com isso incorrer em violação normativa, coadunando-se, assim, a posição jurisprudencial com a sistemática vigente.

Contudo, cumpre reafirmar que tal comportamento deve ocorrer com muita temperança, sob pena de desvirtuamento do sistema normativo.

Não obstante seja louvável e necessária a atribuição do contraditório prévio, por outro lado não se pode desprezar o fato de que em determinadas circunstâncias a abertura do contraditório poderá constituir motivo de frustração do objetivo pretendido com o incidente, que em síntese é a implementação da obrigação consubstanciada no processo, tendo em vista a possibilidade da prática de esvaziamento patrimonial, sobretudo mediante retirada de recursos mantidos em instituições financeiras e dissipação de bens móveis, atitudes estas muitas vezes não passíveis de reversão.

Nesta perspectiva é possível admitir, mas em caráter de absoluta e efetiva excepcionalidade, a adoção de medida inaudita altera parte, quando manifestamente evidentes desde logo, pela robustez das provas previamente produzidas, a viabilidade do reconhecimento da desconsideração e o risco de dilapidação patrimonial, com frustração dos objetivos preconizados pelo incidente.

Portanto, não se trata de simplesmente dispensar incondicionalmente o contraditório, valendo-se desta conduta como panaceia, mas de estabelecer o diferimento do contraditório apenas em situações excepcionais.

Aliás, é interessante observar e ressaltar que no julgamento do REsp 1.096.604/DF houve a admissão do diferimento do contraditório porque previamente revelados os pressupostos autorizadores da desconsideração e evidenciado o risco de frustração da medida, denotando, assim, a excepcionalidade nesta medida.

Entretanto, o que não se admite é que haja um afrouxamento desta concepção, passando a ser admitido o diferimento de modo indistinto, como lamentavelmente ocorre no âmbito da Justiça do Trabalho, que simplesmente despreza a sistemática processual em matéria de contraditório prévio.

Portanto, há um claro posicionamento do tema no sistema processual vigente assegurando o contraditório como pressuposto lógico da medida de desconsideração, embora não se possa descartar o seu diferimento desde que mediante a efetiva identificação das condições configuradoras da excepcionalidade.

__________

1 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.
§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

2
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

3
Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

4
Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.
Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

5
A ementa do referido acórdão tem o seguinte conteúdo: "DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E MATERIAIS. OBSERVÂNCIA. CITAÇÃO DOS SÓCIOS EM PREJUÍZO DE QUEM FOI DECRETADA A DESCONSIDERAÇÃO. DESNECESSIDADE. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO GARANTIDOS COM A INTIMAÇÃO DA CONSTRIÇÃO. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. VIA ADEQUADA PARA A DISCUSSÃO ACERCA DO CABIMENTO DA DISREGARD. RELAÇÃO DE CONSUMO. ESPAÇO PRÓPRIO PARA A INCIDÊNCIA DA TEORIA MENOR DA DESCONSIDERAÇÃO. ART. 28, § 5º, CDC. PRECEDENTES. 1. A desconsideração da personalidade jurídica é instrumento afeito a situações limítrofes, nas quais a má-fé, o abuso da personalidade jurídica ou confusão patrimonial estão revelados, circunstâncias que reclamam, a toda evidência, providência expedita por parte do Judiciário. Com efeito, exigir o amplo e prévio contraditório em ação de conhecimento própria para tal mister, no mais das vezes, redundaria em esvaziamento do instituto nobre. 2. A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade. 3. Assim, não prospera a tese segundo a qual não seria cabível, em sede de impugnação ao cumprimento de sentença, a discussão acerca da validade da desconsideração da personalidade jurídica. Em realidade, se no caso concreto e no campo do direito material fosse descabida a aplicação da Disregard Doctrine, estar-se-ia diante de ilegitimidade passiva para responder pelo débito, insurgência apreciável na via da impugnação, consoante art. 475-L, inciso IV. Ainda que assim não fosse, poder-se-ia cogitar de oposição de exceção de pré-executividade, a qual, segundo entendimento de doutrina autorizada, não só foi mantida, como ganhou mais relevo a partir da lei n. 11.232/05. 4. Portanto, não se havendo falar em prejuízo à ampla defesa e ao contraditório, em razão da ausência de citação ou de intimação para o pagamento da dívida (art. 475-J do CPC), e sob pena de tornar-se infrutuosa a desconsideração da personalidade jurídica, afigura-se bastante - quando, no âmbito do direito material, forem detectados os pressupostos autorizadores da medida - a intimação superveniente da penhora dos bens dos ex-sócios, providência que, em concreto, foi realizada. [...] 8. Recurso especial não provido. (REsp 1096604/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 02/08/12, DJe 16/10/12).

No mesmo sentido: "AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONFUSÃO PATRIMONIAL. EMPRESAS DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. EX-SÓCIOS. CITAÇÃO. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES. SÚMULA 83 DO STJ. VIOLAÇÃO A COISA JULGADA. NÃO OCORRÊNCIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO E PROBATÓRIO. SÚMULA 07 DO STJ. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO." (AgRg no AREsp 224.113/MS, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 18/02/14, DJe 28/02/14)

"FALÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. SENTENÇA DECLARATÓRIA. ENCOL. FRAUDE À EXECUÇÃO. FRAUDE PELA VIOLAÇÃO AO TERMO LEGAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INEFICÁCIA DE DETERMINADOS ATOS E TERMOS CONTRATUAIS. REVISÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULAS 5 E 7 DO STJ. PREQUESTIONAMENTO. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 283 E 284 DO STF. DESNECESSIDADE DE AÇÃO AUTÔNOMA. DECRETAÇÃO NO PROCESSO FALIMENTAR. DESRESPEITO AO CONTRADITÓRIO, AMPLA DEFESA E DEVIDO PROCESSO LEGAL. INOCORRÊNCIA. FALÊNCIA. EXTENSÃO DOS EFEITOS. CONFUSÃO PATRIMONIAL. POSSIBILIDADE. DESCONSIDERAÇÃO. PRESCINDIBILIDADE DE CITAÇÃO PRÉVIA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. [...] 4. É pacífico na jurisprudência desta Corte a possibilidade de, no curso do feito falimentar e de forma cautelar, haver a desconsideração da personalidade jurídica independente de ação autônoma para tanto. Além disso, é firme o entendimento da prescindibilidade de citação prévia. [...] 11. Recursos especiais a que se nega provimento." (REsp 476.452/GO, Rel. Ministro Raul Araújo, Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 05/12/13, DJe 11/02/14)

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*Adilson Pinto Pereira Júnior é mestre em Direito Civil e sócio do escritório Pedroso Advogados Associados.

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